Opinião

O Estado não deve limitar, mas garantir a liberdade de expressão

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27 de julho de 2020, 17h20

Ter liberdade de expressão é ter a possibilidade de manifestar opinião, sem repressão dos aparelhos de Estado. É certo que existem parâmetros de convivência que impõem limites à possibilidade de dizermos o que quisermos sobre o assunto de nossa escolha. A questão é que esses parâmetros, em uma sociedade civilizada, devem ser culturais, e não modulados pela força repressiva do Estado. Todo tipo de repressão à liberdade de expressão compromete o próprio discurso de manutenção da ordem. Só é possível seguir acreditando que de alguma forma somos livres para contratar e conviver em sociedade se o Estado agir como garantidor dessas liberdades e dar condições materiais de vida que permitem exercê-las.

Desde a abertura democrática no Brasil, após as mais de duas décadas de ditadura civil-militar, nunca se percebeu tamanha restrição à liberdade de expressão. O patrulhamento ideológico nas escolas [1] e a tentativa de silenciar a imprensa [2] são exemplos importantes.

Em relação à magistratura brasileira, a Resolução 305 do CNJ disciplina o uso das redes sociais por parte das juízas e juízes, referindo-se à impossibilidade de manifestações que demonstrem "atuação em atividade político-partidária". Até aí poderíamos estar, em tese, nos limites da ordem constitucional. Ocorre que a exemplificação e a ampliação da compreensão do que é um agir político-partidário, para tudo o que é política no sentido amplo, ou seja, o conjunto de princípios e de opiniões [3], o envolvimento em tudo o que interessa à pólis implica vedar praticamente todas as manifestações públicas. Implica, portanto, suprimir o direito à livre manifestação do pensamento [4]. Implica censura [5].

No dia 27 de fevereiro, o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, instaurou, de ofício, pedido de providências para que a Corregedoria Regional do Trabalho do TRT da 4ª Região apurasse manifestação na rede social Facebook realizada pelo juiz do Trabalho Rui Ferreira dos Santos [6]. O print da postagem apontada como "político-partidária" foi feito apenas 45 minutos após a sua publicação.

Em 12 de maio, o mesmo ministro proibiu, liminarmente, o juiz Douglas de Melo Martins, do Maranhão, de participar de "debates públicos virtuais que possam ter conotação político-partidária, com ou sem a presença de políticos", invocando o artigo 25 da mesma Resolução [7].

Na última quinta-feira (22/7), soube por este prestigiado site, ou seja, antes de qualquer notificação formal, que também contra mim houve instauração, de ofício, de procedimento "considerando a necessidade de averiguar os fatos que, em tese, podem caracterizar conduta que infringe os deveres dos magistrados" [8]. Há referência a um artigo científico, publicado por mim, na qualidade de doutora em Direito do Trabalho e presidenta de entidade de classe, com base em pesquisas de pós-doutoramento em ciências políticas. Um artigo de análise jurídica e política do momento que vivemos no país, que utiliza a expressão "política genocida" [9]. Uma expressão que, aliás, vem ganhando espaço diante das atrocidades que temos vivenciado no Brasil [10].

Do ponto de vista jurídico formal, poderia ser questionada a regularidade do procedimento. Com efeito, o Conselho Nacional de Justiça, criado com a EC 45, tem por atribuição (artigo 103B) exercer o "controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes", zelando pela autonomia da magistratura. No inciso que atribui ao CNJ a função de zelar pela observância do artigo 37 em relação a atos administrativos, há referência expressa à atuação "de ofício ou mediante provocação" (II). Naquele que se refere a "reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário", a expressão constitucional é "receber e conhecer" (III). Nada há, portanto, que autorize, expressamente, a possibilidade de atuação de ofício. Nem mesmo a Resolução 305 do CNJ, cujos termos são objeto de discussão na ADI 4168, refere-se à possibilidade de atuar sem provocação.

Impõe-se também refletir sobre a enorme contradição de se censurar o uso das redes judiciais por magistrados e magistradas e se utilizar justamente dessa mesma via, a mídia virtual, que circula nas redes, como veículo para a admoestação e constrangimento. As juízas e juízes têm sido cientificados dos procedimentos administrativos por intermédio de notícias públicas, antes mesmo da intimação pessoal. É curioso pensar que as redes e mídias sociais sejam vedadas para a instauração de discussões políticas de relevância para a sociedade, mas sejam o justamente o recurso utilizado para a publicização de procedimentos "disciplinares" contra a magistratura brasileira.

Mas nada disso é o mais importante. O mais relevante mesmo é compreender que todos esses vícios, de fato, constituem sintoma de que ainda não fomos capazes de admitir, superando as amarras dos regimes totalitários, o quanto a independência da magistratura, que requer profissionais juridicamente habilitados e socialmente engajados, é essencial ao Estado democrático de Direito.

 


[4] "Artigo 5º, IV é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".

[5] "Censura é a desaprovação e consequente remoção da circulação pública de informação, visando à proteção dos interesses de um estado, organização ou indivíduo. Ela consiste em toda e qualquer tentativa de suprimir a circulação de informações, opiniões ou expressões artísticas". https://pt.wikipedia.org/wiki/Censura, acesso em 28/2/2020.

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