Opinião

Emergência de momento grave não pode comprometer o Estado de Direito

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27 de julho de 2020, 19h20

A pandemia da Covid-19 é, sem dúvida, um fato extraordinariamente grave, que não encontra precedentes em nossa história recente. Além dos impactos diretos na área da saúde, há inúmeros efeitos adversos indiretos sobre a economia e a sociedade.

Nesse contexto, há quem defenda que a crise decorrente da pandemia estaria inaugurando uma nova fase do Direito Administrativo, na qual direitos fundamentais deveriam ser relativizados, dando lugar a um verdadeiro "Direito Administrativo de emergência", decorrente de uma suposta impossibilidade de coexistência da observância do princípio da legalidade administrativa, de um lado, e do funcionamento dos serviços públicos e atendimento das necessidades essenciais da população, de outro lado.

Não se questiona que aqueles que defendem essa posição estejam imbuídos do mais claro espírito público. No entanto, alguns alertas precisam ser feitos, para maior reflexão no meio jurídico, quanto aos grandes riscos envolvidos na disseminação desse tipo de tese.

Infelizmente, as calamidades não são novidade para o Direito. No passado, a humanidade já teve de lidar com outras crises decorrentes de eventos extraordinários e o Direito Público já dispõe de instrumentos para o enfrentamento de situações de tamanha gravidade e amplitude.

A Constituição de 1988 estabeleceu dois regimes jurídicos excepcionais: o estado de defesa e o estado de sítio. Como indica José Afonso da Silva, tais regimes são chamados de sistema constitucional das crises, uma vez que, apesar de lidarem com situações de altíssima gravidade, foram concebidos para proteger — e não deformar — o sistema constitucional. Durante esses estados de exceção, o legislador fica proibido de promover reformas constitucionais, circunstância essa bastante ilustrativa do extremo cuidado que se deve ter nesses períodos com impulsos autoritários travestidos de interesse público, que podem pôr em risco o Estado democrático de Direito.

Em relação à pandemia da Covid-19, o Brasil — acertadamente — não adotou nenhum desses dois regimes para seu enfrentamento, o que significa dizer que não vigora atualmente no país nenhum regime constitucional excepcional. Como se sabe, foi tão somente editado o Decreto Legislativo n° 06/2020, que reconheceu a situação de calamidade pública para fins do artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, dispensando a obtenção de resultados fiscais e limitação de empenho e, consequentemente, abrindo espaço orçamentário para a destinação de recursos para as áreas mais afetadas pela crise sanitária.

Não se está defendendo aqui que autoridades públicas sejam incompetentes para tomar decisões enérgicas e fundamentadas contra a disseminação da doença e mitigação dos efeitos adversos mais agudos sobre a população no curto prazo. Ao contrário, o princípio da prevenção impõe a adoção de medidas necessárias ao combate da crise sanitária. Exemplo disso foi a acertada e ágil decisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de, já no início da pandemia, ter proibido temporariamente a possibilidade de corte no fornecimento de energia elétrica em consequência do atraso no pagamento de contas de luz. Por outro lado, não se pode sacrificar direitos individuais sem respeito à liturgia legal, pois não foi decretado nenhum dos regimes jurídicos excepcionais previstos constitucionalmente.

No âmbito do Direito Administrativo, o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, e em especial dos contratos de concessão de serviços públicos, não é somente constitucionalmente assegurado como também fundamental em momentos de crise porque o bem-estar da população e a própria administração da crise dependem da continuidade da prestação dos serviços públicos. Justamente por isso, a Lei n° 8.666/1993 dispõe que os contratos administrativos deverão ser revistos para assegurar o equilíbrio contratual na ocorrência de eventos extraordinários (artigo 65, II, "d"). É justamente tal dispositivo que positivou sob o Direito Administrativo brasileiro a teoria da imprevisão.

A teoria da imprevisão foi concebida justamente para prover o ordenamento jurídico com uma solução diante de eventos extraordinários como a pandemia. As origens de tal teoria remontam ao Direito romano, tendo caído em desuso no século XVII com o primado do pacta sunt servanda. Contudo, a ideia contida na tradição da cláusula rebus sic stantibus foi retomada na França do século XX, em função do advento de uma catástrofe, a Primeira Grande Guerra. Tendo a teoria da imprevisão sido concebida precisamente para tratar de situações com gravidade e abrangência semelhantes às da pandemia de Covid-19, e tendo o artigo 65, II, "d", da Lei nº 8.666/93 positivado sob o Direito Administrativo brasileiro tal teoria, dando-lhe contornos próprios, sua observância é de rigor para que se preserve a garantia constitucional de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos consagrada sob o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal.

O que não se pode fazer é argumentar que o regime jurídico dos contratos administrativos em vigor teria sido afastado em nome de conceitos vagos como: I) impossibilidade fática de sua aplicação; II) sopesamento de princípios que guiam a atividade estatal; ou, ainda, III) proteção aos interesses econômicos da nação.

Essa linha de argumentação, que parece se preocupar mais em resolver problemas de curto prazo durante a pandemia do que efetivamente em considerar o problema sob uma perspectiva de médio e longo prazos, seriamente compromete uma das dimensões mais importantes do princípio do equilíbrio econômico-financeiro: o interesse público na atração de capitais privados. Se o sinal que a Administração Pública der com relação aos contratos administrativos em vigor não respeitar os dispositivos constitucionais e legais aplicáveis à preservação do equilíbrio econômico-financeiro de tais contratos, a capacidade do país de atrair investimentos em novas rodadas de privatizações e concessões (como se pretende com o novo marco do saneamento, por exemplo) ficará prejudicada e a população terminará pagando um preço mais alto mais adiante porque os potenciais licitantes das futuras licitações embutirão nos preços de suas propostas o risco da insegurança jurídica decorrente da experiência com a pandemia.

Nunca é demais lembrar os princípios constitucionais que norteiam a atividade administrativa — a legalidade e a segurança jurídica —, segundo os quais, além de a atividade administrativa dever ser realizada nos limites estipulados em lei, ela deverá garantir a estabilidade das relações jurídicas e evitar mudanças bruscas e drásticas.

Assim, um modelo jurídico-administrativo que desrespeitasse a estabilidade no trato com a Administração em nome de causas excepcionais faria do administrado mero objeto, contra o qual o Estado exerceria seu poder de império de maneira irrestrita, obrigando-o a realizar ações em desconformidade com o que lhe seria exigido pela legislação até então em vigor.

Evidentemente, não se pretende impedir mudanças legais, regulatórias e contratuais para enfrentar os desafios que os momentos críticos impõem. Essas mudanças devem ser feitas, no entanto, respeitando os princípios e as leis que regem o Direito Administrativo, conforme alertado por André Portugal em artigo publicado recentemente.

A história complementa o aviso acima: o desapego à legalidade, bem como a aplicação de cláusulas gerais sob o manto da excepcionalidade, abrem espaço para o exercício arbitrário do poder, conforme atestam experiências autocráticas passadas. Como salienta Dawson, o uso de cláusulas abertas, que dão ampla margem de discricionariedade ao Estado, esteve presente nos momentos que precederam a instauração de regimes autoritários. Veja-se:

"It was on April 1, 1933, that Hedeman published his well-known tract: 'The Flight into the General Clauses, A Danger for Law and State'. (…) Its great danger in this view was that it had begun to obliterate legal rules as restraints on power, leaving discretion uncontrolled. (…) He solemnly warned that Rome had followed a similar path to the dictatorship of Byzantium. (…)

The predictions of Hedemann were realized also in another way: the advent of the Nazis on the whole promoted, it certainly did not arrest, the flight into the general clauses".

O meio jurídico e a Administração Pública devem estar permanentemente atentos para impedir o oportunismo da emergência. Não se deve em nome da emergência de um momento grave, mas efêmero, comprometer-se a permanência de nosso Estado de Direito. Aqui, as sábias palavras de Talleyrand não poderiam ser mais apropriadas: "é urgente esperar".

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