Justiça tributária

Três problemas na reforma tributária do PIS e da Cofins

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

27 de julho de 2020, 8h00

O ministro Paulo Guedes entregou ao Congresso a primeira das quatro fases em que se desdobrará sua proposta de reforma dos tributos federais. Esta primeira tem 54 páginas de mudanças normativas , sem considerar a exposição de motivos, e tramitará em regime de urgência como PL 3.887, visando unificar o PIS e a Cofins sob o nome de CBS — Contribuição sobre operações com Bens e Serviços. As demais, a serem apresentadas, são (2) a reforma do IPI, transformando-o em um imposto seletivo, (3) a reforma do IRPF e IRPJ, com tributação de dividendos, e (4) a desoneração da folha de salários, com a criação de um tributo sobre transações. Essas propostas de alteração da legislação devem ser acopladas às propostas de alteração da Constituição já em curso no Congresso (PEC 45 e PEC 110), embora a tramitação legislativa de cada qual seja diferente.

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Não descerei a detalhes da proposta já apresentada, pois,ou o espaço não seria suficiente, ou acabaria torturando o raro leitor. Comentarei apenas alguns aspectos gerais, apontando os principais pontos positivos e negativos.

Os pontos positivos são claríssimos e de fácil percepção em face do pandemônio tributário em que vivemos. Visa simplificar o sistema acabando com vários formulários (obrigações acessórias) desnecessários e unificar duas contribuições que, na prática, são superpostas. A proposta, porém, é mais ambiciosa, pois, além de unificar, visa reformar o sistema criando as bases de um IVA — Imposto sobre o Valor Agregado nacional, ao qual deverão ser futuramente somados o ICMS (estadual) e o ISS (municipal). Para isso, alega-se que (1) toda aquisição de bens e serviços gerará crédito a ser compensado, e que (2) não haverá aumento de carga tributária, a despeito de ser proposta uma alíquota de 12%.

Os pontos negativos são vários, mas me concentrarei em apenas três, que possuem mais destaque em meu ponto de vista, e que, de certa maneira, estão entrelaçados: (1) o timing, (2) a alíquota proposta e (3) o sistema de compensação de créditos.

Primeiro, sobre o timing. Estamos em plena crise econômica decorrente da pandemia sanitária. Apenas a arrecadação de tributos federais teve queda real de 33% no mês de maio/20 e em abril já havia caído 29%. Considere-se que ano passado, base para essas comparações, a atividade econômica já não era boa. Nesse sentido, há receio que qualquer proposta no âmbito tributário aponte para maior carga tributária do que seria adequado para o desenvolvimento econômico.

Para ultrapassar a presente crise, que é distinta de todas as anteriores, o correto é olhar para a solução adotada pela União Europeia, que acabou de criar um Fundo no valor de 750 bilhões de euros, fruto de endividamento, para soerguer a atividade econômica daqueles países confederados a ser pago em 30 anos. No Brasil estamos buscando uma saída que possibilita o aumento da carga tributária para já (prazo de seis meses), gerando insegurança jurídica e econômica, o que espanta os investimentos. Seria melhor adotarmos a alternativa europeia, e a União se endividar e organizar um plano de recuperação da economia, apoiando empresas e combatendo o desemprego, de forma federativamente organizada, conforme escrevi antes da Lei Complementar 173/20, a qual se revela insuficiente.

Quem sabe se, ao invés das 54 páginas de projeto de lei visando a reforma do sistema, não fosse melhor apenas umas poucas páginas para unificação do PIS e da Cofins, limpando os excessos? A segurança jurídica sairia fortalecida.

Segundo, sobre a alíquota. A proposta apresentada unifica duas contribuições que, somadas, possuem hoje duas alíquotas básicas: 3,65% para a incidência cumulativa, e 9,25% para a incidência não-cumulativa. A alíquota proposta é única, de 12%. Só isso já aponta para dois fatos: (1) haverá aumento da carga tributária, pois a alíquota de 3,65% desaparecerá; e (2) a nova alíquota sugerida empurra o problema para Estados e Municípios, pois invade seu espaço de tributação, uma vez queestes deverão encolher suas alíquotas para se chegar a algum valor adequado para o futuro IVA, que comporá a tributação integral sobre o consumo.

A equipe tributária do Ministro Guedes aponta para dois aspectos acerca desse ponto: que a alíquota será por fora, e não como é hoje, por dentro; e que toda aquisição de insumos gerará crédito.

Concentremo-nos, por ora, no primeiro argumento. Até agora não foi apresentada a fórmula financeira que comprove o alegado. Como uma alíquota de 9,25%, por dentro equivale a 12% por fora. Seria importante que essa comprovação técnica aflorasse para poder comprovar a alegação. Cálculos de padeiro não apontam para isso, considerando ainda que o sistema “por fora”nãosignificaaadoção do sistema norte-americano, mas o afastamento da superposição de bases de cálculo. Até prova técnica em contrário, a alíquota está majorada — sem considerar a questão da extinção do regime cumulativo, com alíquota atual de 3,65%.

Terceiro ponto, a questão do amplo creditamento na compra de insumos. Este é o argumento principal para se alegar que não haverá aumento de carga tributária — o que não condiz com o que se verifica em concreto. Registre-se que a própria equipe tributária vem variando o discurso. Inicialmente dizia-se, de forma peremptória, que não haveria aumento de carga tributária, e que o setor de serviços "não entendeu como funciona o imposto", para, após, dizer que "não existe em lugar nenhum do mundo reforma tributária nula", o que é completamente diferente, pois, o "nula" aponta para a macroeconomia, afirmando que alguns ganharão e outros perderão — o que está correto.

Já está identificado quem vai perder: o setor de serviços. O aumento da carga tributária será brutal. Isso foi bem apontado pelo economista e Presidente do Insper, Marcos Lisboa. O exemplo dele é didático. Olha para um escritório de advocacia que presta serviços no valor de R$ 100, e que hoje, após recolher PIS e Cofins, fica com pouco mais de R$ 96.Depois da reforma, com o tributo a 12%, o serviço passará a custar R$ 112, e "o desembolso da empresa contratante continuará sendo de R$100, pois poderá descontar R$ 12 dos seus tributos devidos". Nesse caso, "o escritório vai receber R$ 112, irá recolher R$ 12 ao Fisco e ficará com R$ 100, mais do que ganha atualmente". E arremata, "aparentemente, há advogados que não entendem como funciona o IVA, imposto adotado em mais de 160 países".

Como disse, o exemplo é didático — porém esconde diversos aspectos em sua simplicidade e na soberba ao afirmara ignorância de advogados. Desloquemos o olhar para o setor de educação. Será que o Insper, qualificada instituição de ensino superior presidida pelo economista Marcos Lisboa, conseguirá transferir o acréscimo de 12% do novo tributo para as mensalidades escolares aos alunos? Se caro leitor for aluno do Insper, ou de qualquer outra instituição de educação, aceitará o aumento do preço?

O que está oculto no exemplo é que o setor de serviços não trabalha apenas para empresas, que tomarão esse crédito. E ainda, nem todas aceitarão o aumento de preços. E se aceitarem, isso tem nítida conotação inflacionária.

O fato é que o setor de serviços, exatamente por prestar “serviços”, não tem créditos a serem compensados. Olhemos para os escritórios de advocacia – o que se adquire para prestar serviços advocatícios? Papel, tinta, energia elétrica, água, aluguel, condomínio? Mesmo que tudo isso gere crédito, o que é duvidoso, ainda assim será grande o impacto fiscal, pois o principal insumo de qualquer prestador de serviços é a mão-de-obra — que não gerará crédito, segundo a proposta. Seguramente o Insper tem como principal custo os salários de seu qualificado corpo docente. Aqui está o problema.

Como solucioná-lo? Duas alternativas me ocorrem, a serem testadas: ou se utiliza para o setor de serviços a mesma alíquota proposta para o setor financeiro, de 5,8% (o que já representa aumento da carga tributária); ou se concede crédito (pleno ou presumido) para o custo de mão-de-obra, principal insumo do setor de serviços — e também do setor financeiro.

Enfim, mantenho o que já afirmei anteriormente. Não é hora de fazer reforma tributária, embora meros ajustes sejam sempre bem vindos, em face da atual complexidade do sistema. Mexer nessa casa de marimbondos sempre acaba em aumento de carga tributária, embora isso seja negado, como de hábito.

No passado inflacionário brasileiro, de triste memória, dizia-se que os ministros da Economia (ou da Fazenda) tinham o direito de mentir a cada vez que lançavam mais um pacote para conter a inflação. Usa-se agora deste expediente para as reformas tributárias, que são necessárias, mas inoportunas, alegando-se que não haverá aumento de carga tributária — é ver para crer.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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