Processo familiar

Orfandades precoces clamam pelos seus órfãos da pandemia

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

26 de julho de 2020, 8h02

O existencialista francês Jean Paul Sartre (1905/1980) tinha apenas quinze meses quando seu pai morreu. Assim também aconteceu com Jean Jacques Rosseau (1712/1778), tendo sua mãe falecido dias depois de seu nascimento. Órfão na infância, Thomas Hobbes foi tutelado por um tio rico. Alberto Camus, nascido na Argélia (1913) teve seu pai morto um ano depois, na Primeira Guerra Mundial. São exemplos de orfandades precoces.

O que sucede com milhares de órfãos que perderam seu(s) pai(s), durante a pandemia da Covid-19, na irreversibilidade das vidas perdidas e que os deixam afetados vida afora, vida a sempre?

É uma nova geração que se coloca no pós-pandemia sob os impactos de uma devastação familiar provocada pelo coronavírus, desprovidas dos cuidados parentais, a merecer tratamentos normativos e políticas sociais adequadas, na urgência de inúmeras soluções exigidas.

São os órfãos da Covid-19, tais como foram os órfãos da gripe espanhola (1918-1919), que matou mais de 50 milhões de pessoas, onde um extraordinário número de vítimas eram jovens adultos de 20 a 30 anos, sem explicação alguma de a letalidade da doença vir mais atingi-los.

Então, no século passado, essa maior carência de proteção aos órfãos da pandemia, rompidas as famílias de suas unidades familiares, conduziu inúmeros países a aprovar legislações sobre adoção infantil, destacando-se a França (1923) e a Inglaterra (1926).

Agora, os problemas se repetem, à semelhança das orfandades e das inseguranças do futuro, experenciadas em tantas pandemias anteriores. Como a que atingiu Atenas, no verão de 430 aC e por quatro anos seguidos, dizimando um terço de sua população de 200 mil habitantes, como relatou o historiador grego Tucídides.

Essa “new generation of orphans” é antevista nos Estados Unidos por organizações sociais, como a Abrazo Adoption Associates, com preocupações sensíveis. Em 02 de abril passado, em seu site, a Abrazo já advertia: “A perspectiva da pandemia de coronavírus criar uma nova geração de órfãos americanos é aterrorizante. No entanto, é uma possibilidade para a qual todos precisamos nos preparar. E não mencionar isso não impedirá que isso aconteça”. (01)

No Brasil, as preocupações também são notáveis, evidenciando a gravidade da questão:

(i) Durante o recente XXV ENAPA – Encontro Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção – tendo como tema central “Família: como garantir esse direito?” (11-13/06), o desembargador Luiz Carlos de Barros Figueirêdo (TJ-PE), maior autoridade no país em Direito da Criança e do Adolescente e no instituto jurídico da adoção, em palestra magna no evento, indicou as percepções do aumento exponencial dos acolhidos em razão de orfandade ou de abandono durante a pandemia. O jurista pernambucano sugeriu e conclamou por um fluxo emergencial para a entrega mais rápida dos órfãos e abandonados, mediante termos de responsabilidade, aos que estão cadastrados no Sistema Nacional de Adoção, famílias acolhedoras, agilizando-se as providências e decisões judiciais. (02)

A propósito, dados do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA) de até 13.05.2020, do Conselho Nacional de Justiça, registraram 47.369 crianças e adolescentes em situação de acolhimento no país, evidenciando os problemas sociais existentes. O Cadastro foi implantado pela Resolução n° 93, em complemento ao Cadastro Nacional de Adoção (CNA), instituído pela Resolução n° 54, de 29.04.2008.

(ii) No último 25 de maio, quando comemorado o Dia Mundial da Adoção, inúmeros Grupos Especiais de Apoio à Adoção (GEAA) de todo o país, reuniram-se em seminários e lives tendo, prioritariamente, como tema central, o de “Os Órfãos da Pandemia”.

(iii) A Coordenadoria da Infância e da Juventude (C.I.J.) do Tribunal de Justiça de Pernambuco, dirigida pelo desembargador Stênio José de Sousa Neiva Coelho, no interesse de otimizar o desempenho dos procedimentos de adoção, instituiu cursos aos pretendentes à adoção, por meio da modalidade de Ensino à Distância (EAD). Os cursos são de etapa obrigatória a ser cumprida por aqueles que desejam adotar, nos termos do artigo 197-C §1º do Estatuto da Criança e do Adolescente. (03)

(iv) Lado outro, o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça de Pernambuco, quinta-feira última (23.07.20) por nossa proposição, indicou sugerir à C.I.J./TJ-PE estabelecer programas de apadrinhamento social dirigidos aos órfãos da pandemia, na Primeira Infância, estimulando intervenções de apoio por parte da iniciativa privada.

A Coordenadoria já conta com exitoso Programa de Apadrinhamento, o “Pernambuco que acolhe”, destinado a crianças (a partir dos 10 anos) e adolescentes, “que permanecem nas instituições de acolhimento sem a possibilidade de retornar à família de origem e com poucas perspectivas de adoção”, em três linhas de apadrinhamento: (i) afetivo; (ii) provedor e (iii) profissional (04).

Impende lembrar, em oportuno, nos termos do art. 12 da citada lei, que:

 “a sociedade participa solidariamente com a família e o Estado da proteção e da promoção da criança na primeira infância, nos termos do caput e do § 7º do art. 227, combinado com o inciso II do art. 204, da Constituição Federal (…)”.

É neste atual quadro agudo de tragédia social que mais se exigem novas formulações e implementações de políticas públicas para a Primeira Infância, nos exatos termos do seu Marco Civil, ditado pela Lei nº 13.257/2016, de 08 de março. Com maior destaque pontual em favor das crianças que se encontrem em condições de hipervulnerabilidade, mais afetadas pela pobreza.

Urge, portanto, a edição de uma Política Nacional Intersetorial destinada especificamente aos Órfãos da Primeira Infância, para reduzir as desigualdades sociais e econômicas contra si ampliadas pela pandemia e, sobretudo, mitigar os danos advenientes de suas próprias orfandades precoces, refletidos nas insuficiências de apoio familiar e nos decréscimos dos indicadores socioafetivos. Este deve ser um novo Marco Legal, a partir da Lei nº 13.257/2016. Nosso país tem cerca de 20 milhões de crianças com até seis anos de idade; urgenciando saber, agora, quantas se acham em orfandades decorrentes da pandemia.

De fato. Cuidem-se inexatas as estatísticas que possam configurar essas orfandades, diante de um déficit registral das realidades constantes nos assentos de óbitos lavrados acerca de filhos menores. Não obstante disponha o art. 80, inc. 7º, da Lei nº 6.015/1973, que o assento de óbito deverá conter se o extinto “deixou filhos, nome e idade de cada um”, nem sempre as declarações são feitas pela pessoa competente que tenha efetiva ciência que identifique, com exatidão, os vínculos familiares do falecido.

Demais disso, a Portaria Conjunta nº 01/CNJ-M.Saúde, de 30.03.2020, diante dos problemas da pandemia e das suas situações excepcionalíssimas, admitiu a partir do que determina o art. 78 da reportada Lei n. 6.015/73, no sentido de que o registro civil de óbito poderá ser lavrado de forma diferida ante a existência de motivo relevante, autorizar os estabelecimentos de saúde, na hipótese de ausência de familiares ou pessoas conhecidas do obituado ou em razão de exigência de saúde pública, a encaminhar à coordenação cemiterial do município, para o sepultamento ou cremação, os corpos sem prévia lavratura do registro civil de óbito” (art. 1º).

Com os registros civis de óbito, em casos que tais, diferidos em seu prazo de lavratura (art. 2º), certo é que algumas informações se apresentam incompletas. Tais circunstâncias tem, aliás, apresentado recentemente um aumento significativo nas retificações dos assentos registrais de óbito.

Pois bem. Quando cerca de “61% das crianças e dos adolescentes brasileiros são afetados pela pobreza, em suas múltiplas dimensões” (estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância — Unicef -14.08.2018), eclodindo prejuízos aos seus direitos fundamentais, mais se percebe, no atual momento da coronacrise, o incremento das privações sociais e dos direitos, tudo a indicar a amplitude percentual antes verificada.

Essas privações múltiplas que afetam crianças e adolescentes órfãos devem receber medições oficiais pelos órgãos competentes, com monitoramento permanente para permitir soluções que são, inexoravelmente, inadiáveis. Como referido antes, impõe-se um cadastro oficial das orfandades precoces. Somente assim, programas sociais e políticas públicas de proteção terão suporte para o implemento de recursos financeiros e destinações orçamentárias, nesse intento.

No ponto, o Projeto de Lei do Senado nº 2.528, de 11 de maio, representa importante politica legislativa em face dos órfãos, notadamente diante da pandemia, para conferir-lhes o acesso prioritário a programas públicos de financiamento estudantil, acesso ao primeiro emprego, entre outros, e a vagas de estágio em órgãos públicos.

O projeto estabelece a destinação pelos serviços sociais autônomos de aprendizagem profissional do “Sistema S” de cinco por cento das vagas gratuitas em cursos e programas de educação profissional a adolescentes órfãos e reajusta o valor do benefício mensal do Projovem-Trabalhador e do Projovem-Urbano (art. 6º da Lei nº 11.692, de 10 de junho de 2008). Também altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, para dispor sobre o acesso ao trabalho dos adolescentes e dos jovens órfãos em instituições de acolhimento e guarda ou delas egresso à preparação e acesso ao mercado de trabalho, a condição de dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social e o direito ao benefício do Bolsa Família (05).

Em outro viés, atente-se, ademais, que as orfandades precoces, sem um apoio familiar direto e satisfatório e dos poderes públicos, conduzirão crianças aos estigmas sociais que agudizam a pobreza, como o da (i) imposição de sobrevivência pelo trabalho infantil; (ii) as situações de maior vulnerabilidade pelo abandono, colocando-os em situação de rua; (iii) os incidentes frequentes de violência de todos os níveis.

Mas não é só. Diante de indicadores sociais de mulheres grávidas que perderam os seus maridos, por mortes provocadas pela Covid19, ou de elas próprias falecerem em decorrência da pandemia (ou pela estigmatização da maternidade vulnerável) há considerar esses segmentos, também com as suas especificidades. Os nascituros órfãos e os filhos órfãos recém-nascidos, tornam-se, por uma linha de pensar de solidariedade institucional, filhos do Estado.

Faltam, igualmente, essas estatísticas de intensa dramaticidade, a exigir uma prospecção adequada à compreensão do novo problema social. Os veículos de comunicação social, em notável compromisso com o direito à informação, procuram colocar a face da questão, identificando, em todas as regiões do país, situações dessa ordem. Revelam-se as inúmeras situações onde genitoras foram à óbito, deixando filhos na Primeira Infância.

A propósito, o tema de nascituros órfãos tem sido incursionado pelo direito e pela jurisprudência, com a devida atualidade.

Em julgamento do Superior Tribunal de Justiça, expressou a relatora min. Nancy Andrigui que “se fosse possível alguma mensuração do sofrimento decorrente da ausência de um pai, arriscaria dizer que a dor do nascituro poderia ser considerada ainda maior do que aquela suportada por seus irmãos, já vivos quando do falecimento do genitor”.

Assinalou-se, então, que “maior do que a agonia de perder um pai, é a angústia de jamais ter podido conhecê-lo, de nunca ter recebido um gesto de carinho, enfim, de ser privado de qualquer lembrança ou contato, por mais remoto que seja, com aquele que lhe proporcionou a vida”. (05)

Nessa toada, tem sido de há muito admitido, pelos tribunais nacionais, que o nascituro tem direitos a danos morais, pela morte do pai – consagrando-se a teoria concepcionista – e sem distinção de valor indenizatório em relação aos filhos já nascidos.

Na mesma latitude, em acórdão de 03 de abril de 2014, a 2ª Seção do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal acabou por findar séria controvérsia jurisprudencial ao reconhecer que uma criança, hoje com sete anos, deva receber uma indenização de 20 mil euros por danos morais e mais 45 mil euros pela perda de alimentos, causados pela morte do pai que nunca chegou a conhecer. O julgado reformou decisão do Tribunal de Relação do Porto.

Enfatizou o Relator Álvaro Rodrigues:

“Repugna ao mais elementar sentido de justiça — e viola o direito constitucional da igualdade — que dois irmãos, que sofrem a perda do mesmo progenitor, tenham tratamento jurídico diferenciado pela circunstância de um deles já ter nascido à data do falecimento do pai (tendo 16 meses de idade) e o outro ter nascido apenas 18 dias depois de tal acontecimento fatídico, reconhecendo-se a um e negando-se a outro, respectivamente, a compensação por danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte do seu pai”.

A decisão invocou o art. 26º da Constituição Portuguesa, para dar uma interpretação não limitativa ou discriminativa ao art. 496º do Código Civil, superando, destarte, o art. 66º, II do mesmo estatuto civil (Proc. 436/07.6TBVRI.P1S1) (06).

Em ser assim, destaca-se, afinal, o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde. A Lei nº 11.634/2007, de 27.12.2007, assegura à gestante o direito à uma vinculação prévia à maternidade na qual será realizado seu parto e à maternidade na qual será atendida nos casos de intercorrência pré-natal (art. 1º, incisos I e II).

Quando chama a atenção o aumento de óbitos maternos durante a pandemia e, nessa consequência, novas orfandades precoces; cumpre reconhecer imperativo amparar todos os órfãos.

Eles terão, nesse período vital, a necessidade de uma existência mais protegida para o futuro; certo e consabido que “a criança é o pai do homem”.

Anotações:
(01) Web: https://abrazo.org/tag/coronavirus-orphans/
(02) Neste sentido comunicando-se aos dirigentes máximos dos Poderes do Estado brasileiro, ao Ministério de Direitos Humanos e a autoridades parlamentares e judiciárias.
(03) Web: https://www.cnj.jus.br/justica-de-pernambuco-promove-curso-para-pretendentes-a-adocao-por-meio-de-ead/
(04) Web: https://www.tjpe.jus.br/web/infancia-e-juventude/apadrinhamento/pernambuco-que-acolhe
(05) Web: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8108595&ts=1594026248053&disposition=inline
(06) STJ – REsp. nº 931556, j. em 17.06.2008. Conferir: Conjur, 19.06.2008. Web: https://www.conjur.com.br/2008-jun-19/stj_concede_indenizacao_nascituro_danos_morais
(07) ALVES, Jones Figueirêdo. O nascituro órfão. Web: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/121822692/artigo-de-jones-figueiredos-alves-o-nascituro-orfao

Autores

  • é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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