Opinião

A incompatibilidade da lavratura do termo circunstanciado pela autoridade judiciária

Autor

  • Rosberg de Souza Crozara

    é juiz de Direito do TJ-AM mestre em Direito Público especialista em Ciências Criminais e professor licenciado de Processo Penal da Universidade do Estado da Bahia.

25 de julho de 2020, 17h25

Em recente manifestação da jurisdição constitucional, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu que a autoridade policial pode lavrar Termo Circunstanciado de Ocorrência e requisitar exames e perícias em caso de flagrante de uso ou posse de entorpecentes para consumo próprio, desde que ausente a autoridade judicial.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.807, ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil contra a sistemática do artigo 48, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, dispondo, in verbis:

"Artigo 48  O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

§1º. O agente de qualquer das condutas previstas no artigo 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos artigos 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos artigos 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.

§2º. Tratando-se da conduta prevista no artigo 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.

§3º. Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.

§4º. Concluídos os procedimentos de que trata o § 2º deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado.

§5º. Para os fins do disposto no artigo 76 da Lei nº 9.099, de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena prevista no artigo 28 desta Lei, a ser especificada na proposta".

Para a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a sistemática do procedimento penal [1] previsto no artigo 48 da Lei nº 11.343/2006, sob a condução do voto da relatora, entende que "presente a autoridade judicial, cabe a ela a adoção dos procedimentos, até mesmo quanto à lavratura do termo circunstanciado. Em qualquer dos casos, é vedada a detenção do autor. Essa interpretação, a seu ver, é a que mais se amolda à finalidade dos dispositivos, que é a despenalização do usuário de drogas" [2].

Nessa esteira, havendo circunstância de identificação de usuário de drogas pelos agentes policiais (ou qualquer um do povo [3]) o indivíduo deve ser "encaminhado diretamente ao juízo competente, se disponível, para que ali seja lavrado o termo circunstanciado de ocorrência e requisitados os exames e perícias necessários" [4].

Por fim, por obter dictum, afirmou-se que "o dispositivo não atribuiu ao órgão judicial competências de polícia judiciária, pois a lavratura de TCO não configura ato de investigação, mas peça informativa, com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato" [5].

Com efeito, observo, data máxima vênia, que o entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal merece algumas considerações.

O ponto de incompatibilidade entre o ato de lavratura do termo circunstanciado e a posição acusatória do juiz é a inexorável vinculação do julgado a um ato investigatório (apuração de fatos).

Observo que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn 1.570, da relatoria do ministro Maurício Corrêa, entendeu por declarar inconstitucional o artigo 3º da Lei nº 9.034/95 (a lei foi posteriormente revogada pela Lei nº 12.850/2013), em razão da autorização legal de realização de ato de investigação pessoalmente pelo magistrado, visto a violação do princípio da imparcialidade e do decido processo legal [6].

Nessa esteira, o Superior Tribunal de Justiça, no exercício da competência constitucional de conferir a interpretação de lei federal, consolidou entendimento de que o termo circunstanciado é procedimento de natureza penal, no entanto, "embora a lei não faça referência especificamente ao termo circunstanciado, este possui natureza jurídica similar ao inquérito policial, no que tange às infrações penais de menor potencial ofensivo" [7].

Corroborando ao entendimento exposto pelo Superior Tribunal de Justiça, a doutrina de Afrânio Silva Jardim expõe a natureza persecutória do termo circunstanciado [8], a partir da sistemática prevista na Lei nº 9.099/95.

Com efeito, torna-se verdadeiramente incompatível a participação do magistrado na realização de atos persecutórios, máxime à necessidade de resguardar a figura imparcial do julgador.

O procedimento sumaríssimo previsto na Lei nº 9.099/95 tem aplicação aos crimes de menor potencial ofensivo, por força do artigo 98, inciso I, da Constituição da República de 1988 e do artigo 61 da Lei nº 9.099/95.

Nesse contexto, o artigo 48, §1º, da Lei nº 11.343/2006 determina que as condutas previstas no artigo 28 da respectiva Lei de Drogas será, via de regra [9], processado e julgado na forma dos artigos 60 e seguintes da Lei nº 9.099, que dispõem sobre os Juizados Especiais Criminais [10].

Em observação ao procedimento da fase preliminar, o artigo 69 da Lei nº 9.099/95, especifica que caberá à autoridade policial a lavratura do termo circunstanciado, o qual, juntamente com o suposto autor do fato serão encaminhados imediatamente ao juizado.

Conclui-se, em princípio, que o suposto autor do fato (inclusive o fato previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006) será encaminhado à presença do juiz após a lavratura do termo circunstanciado.

Noutro giro, na Lei nº 11.343/2006, o parágrafo 2º do artigo 48 não inova o procedimento a ponto de se ter, a par da determinação do artigo 69 da Lei 9.099/95, um novo rito procedimental.

Renato Brasileiro de Lima defende que "a lavratura do termo circunstanciado pela própria autoridade judiciária feriria de morte a garantia da imparcialidade (CADH Dec. 678/92, artigo 8º, §1º) e o próprio sistema acusatório adotado pela Constituição Federal (artigo 129, I), no qual há nítida separação das funções de acusar, defender e julgar" [11]

Desse modo, prevalecendo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, teríamos uma situação sui generis: a Polícia Militar conduzindo cidadão por suposto crime de tráfico para a unidade policial, no entanto, a autoridade policial entende que é caso de aplicação do artigo 28, remetendo, imediatamente, o cidadão para o juizado, a fim de lavratura do termo circunstanciado pela autoridade judicial, porém o magistrado não concorda com a tipificação aduzida pelo delegado de polícia. Pergunta-se: o juiz requisitará a prisão em flagrante?

Portanto, evidentemente, não compete ao magistrado exercer opinio delicti.

 


[1] Posição topográfica do dispositivo encontra-se no capítulo III, do Título IV – Da Repressão à Produção Não Autorizada e ao Tráfico Ilícito de Drogas, da Lei nº 11.343/2006, é denominada “DO PROCEDIMENTO PENAL”.

[3] "Artigo 301  Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito".

[6] ADI 1570, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 12/02/2004, DJ 22-10-2004 PP-00004 EMENT VOL-02169-01 PP-00046 RDDP n. 24, 2005, p. 137-146 RTJ VOL-00192-03 PP-00838.

[7] REsp 1528269/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/05/2016, DJe 14/09/2016.

[8] Nesta Lei nº 9.099/95, o legislador tratou de modo diferente; hoje se instaura a persecução penal – porque o termo circunstanciado não deixa de ser uma atividade persecutória do Estado – com a apresentação do autor do fato à presença do juiz, mesmo se tratando de um crime de ação penal privada ou condicionada à representação sem se saber se o ofendido deseja aquele procedimento todo. (JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pág. 346).

[9] A lei expressa a ressalva na aplicação do procedimento sumaríssimo para os casos em que houver concurso com os crimes previstos nos artigos 33 a 37 da Lei de Drogas.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 354. “Procedimento preliminar e sumaríssimo: determinando-se a aplicação do disposto no artigo 60 e seguintes da Lei 9.099/95 estão abrangidas todas as fases, desde a pré-processual até o procedimento a ser usado em juízo, caso não seja aplicável a transação. Seria desnecessário, pois, o disposto nos §§ 2º a 5º do artigo 48 desta Lei”.

[11] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 5.ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Juspodium, 2017, pág. 1.093.

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