Diário de Classe

A base jurídica para uma concertação democrática

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25 de julho de 2020, 8h00

1) Desfazendo uma caricatura
Conforme os ataques às instituições foram se tornando algo corriqueiro, começou a tomar forma a ideia de um movimento social e suprapartidário em defesa do Estado democrático de direito. A pandemia gerada pelo novo Coronavírus tornou essa demanda mais urgente. Somos obrigados a nos questionar, todos os dias, quantas milhares de mortes poderiam ter sido evitadas se tivéssemos uma boa coordenação estatal para gerir a crise sanitária. Passando da ideia à ação, cabe perguntar: o que seria mesmo essa tal concertação democrática? E por que ela não deve ser confundida com uma utopia, na qual todos os adversários históricos subitamente se dariam as mãos?

Um de seus principais teóricos no Brasil, o filósofo e cientista político Marcos Nobre, tem falado em uma repactuação dos marcos da disputa política, sem implicações eleitorais diretas. Seus principais articuladores precisariam se colocar fora das urnas. Não se trata aqui de costurar chapas, alianças, nem mesmo programas de governo. Essa bandeira comum deve se limitar à viabilização de uma convivência não destrutiva, fixando as condutas que seriam combatidas por todos.

No que diz respeito ao direito, isso significa (obviamente) condenar os ataques abertos dos atores políticos à legalidade. A meu ver, também significa condenar uma forma mais insidiosa de ataque, conhecido como “jogo duro constitucional”[2], que tem sido comum nas democracias em crise. Nessa dinâmica, os atores se comportam forçando os limites da legalidade e usando seus poderes e competências do modo mais beligerante possível. Diante de qualquer impasse, torna-se comum recorrer à chamada “opção nuclear”, capaz de causar dano aos seus inimigos[3], mas também a si mesmos e à própria institucionalidade. Como lembra Alberto Carlos Almeida, bomba nuclear existe para não ser usada. É uma arma cujo principal poder é o dissuasório. Quando diferentes países a possuem, ela evita uma escalada no conflito por levar à destruição mútua assegurada.

Veja-se que tal visão é bastante diferente, por exemplo, do "grande pacto republicano" entre os Três Poderes que havia sido proposto pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli. Segundo ele: "Esse pacto envolve, com absoluta prioridade, que deliberemos sobre as reformas previdenciária e tributária/fiscal e enfrentemos os problemas da segurança pública […]. Nesse concerto, o papel do Poder Judiciário será o garantidor da segurança jurídica e da harmonia social. Temos um Judiciário fortalecido, independente e atuante, que cumpre sua função de garantir a autoridade do direito e da Constituição".

Primeiro, é absolutamente inadequado que esse tipo de proposta sobre reformas políticas específicas — que não eram bem quistas por grande parte da população — parta do Judiciário. De que maneira o STF ajudaria no seu trâmite? Se omitindo quando chamado a exercer seu controle de constitucionalidade?[4]

Segundo, uma concertação democrática no sentido que se está discutindo aqui não precisa entrar em acordos sobre reformas políticas. Ela precisa apenas organizar a maneira como discordamos. E o Judiciário pode contribuir para isso, sem ter que subir em palanques. Para tanto, o STF poderia começar simplesmente aplicando a Constituição e deixando claro que sua violação não será admitida — um bônus seria usar argumentos compartilhados pelo colegiado, fixar pautas de modo republicano, não pedir vistas de processos indefinidamente, não tomar decisões atravessando a competência de colegas, etc. Sinalizar complacência só incentivou abusos. Muitas vezes, o decisionismo judicial quer inventar as condições para seu próprio heroísmo, ao invés de simplesmente cumprir bem seu papel, e termina aumentando o problema para todos.

O bom funcionamento das instituições implica que expectativas normativas de comportamento estejam sendo cumpridas, sem depender da invencionice dos atores. Como o professor Lenio Streck costuma dizer em suas aulas, os juristas precisam aprender o valor de uma boa burocracia, evitando os personalismos.

Portanto, a fixação de um quadro jurídico previsível pode ter um efeito saneador no debate público. Do contrário, quando os atores percebem que o direito passa a funcionar no mesmo código que a política, os juízes passam a ser vistos como aliados ou opositores. E a serem tratados como tal.

2) Da utopia à distopia
Já afastei a visão utópica sobre a concertação democrática. Agora, me permito explorar uma visão distópica sobre o acirramento dos conflitos sociais, e o papel que os juristas podem desempenhar nesse processo. Para esse exercício contrafacutal, recorro ao filme “Os curados” (The cured, de 2017), do diretor irlandês David Freyne.

O filme retrata um mundo devastado por uma pandemia. Um vírus semelhante à raiva fazia com que os infectados se tornassem canibais agressivos, que se organizavam em hordas para caçar outras pessoas. A diferença nessa abordagem do já tradicional gênero “apocalipse zumbi” é que a história foca na descoberta de uma cura, capaz de fazer as pessoas retornarem a seu estado anterior. Contudo, os “curados” precisariam viver com a memória de tudo que fizeram durante seu estado bestial, lembrando das pessoas que caçaram e devoraram. Por outro lado, as pessoas que tinha conseguido escapar se viram obrigadas a receber em suas comunidades, e de volta em suas casas, aqueles cujas atrocidades testemunharam. O centro da narrativa trata da reconciliação em uma sociedade traumatizada.

Rapidamente, se estabelecem tensões entre os sadios e os curados, com ressentimentos e desconfianças mútuas. Algo diferente remanesceu nos curados, uma espécie de lembrança instintiva de seu comportamento de horda. Conforme a situação se deteriora, um ex-advogado com aspirações políticas desponta como o líder de um movimento dos curados. Buscando ocupar uma posição de mais destaque, explora as contradições desse frágil arranjo, levando a horda a libertar as multidões de infectados que haviam sido capturadas, destruindo o que havia restado de uma ordem vigente.

O filme é uma metáfora bem "na cara" sobre o momento então vivido pela Irlanda, onde a história se passa. O país se esforçava para superar seus violentos conflitos entre católicos e protestantes, sua história colonial com o Império Britânico e os traumas do terrorismo.

Mirando no passado, Freyne curiosamente acertou no futuro. O filme provoca inúmeras reflexões e associações possíveis com o momento que estamos vivendo. Desde seu lançamento, o mundo passou por movimentos populistas que agiram como hordas raivosas, caçando minorias vulneráveis. Um cenário pandêmico levou a milhares de mortes. O mundo que conhecíamos teve dificuldade de sobreviver. Agora, sua reconstrução depende da superação de desconfianças, e da volta à convivência daqueles contaminados pela "raiva". O papel dos atores jurídicos pode ser retomar as funções já conhecida de um sistema de justiça, por mais precárias que elas sejam, ou apostar na ruptura para construir um novo arranjo, em que eles tenham mais poder. O risco é, nesse processo, acabar destruindo o país.

3) Qual democracia?
Depois dessa minha reflexão sobre distopias, alguém pode inverter a chave de interpretação dessa coluna: ao invés de sonho irrealizável, minha concepção de concertação democrática seria na verdade um pessimismo acomodado que tenta salvar a todo custo um sistema falido. Preciso combater esse outro extremo, para calibrar bem o que estou tentando dizer.

Ainda acredito nos projetos de democracia deliberativa, nos quais tentamos construir instituições abertas ao controle racional e à participação popular. Nela devem prevalecer, tanto quanto possível, os melhores argumentos para as tomadas de decisão. Esse projeto sofre essas duas linhas de objeção[5].

A primeira objeção é justamente que ele se trata de um sonho irrealizável. Certamente, existem dificuldades práticas para melhorar o desempenho deliberativo das instituições, como déficits cognitivos e motivacionais dos atores que as compõem. Há um forte irracionalismo, uma disputa de paixões no debate público. Ainda assim, acredito que essas dificuldades podem ser enfrentadas, como têm demonstrado algumas pesquisas após a guinada empírica do deliberacionismo.

A segunda objeção, mais complexa, acusa o projeto deliberativo de ser um pessimismo acomodado. Ao defender esse tipo de reforma, ele acaba naturalizando o arranjo atual, sufocando demandas que não são reconhecidas no discurso da ordem vigente. Arranjos alternativos não são apenas possíveis, mas necessários. Muitas vezes, só rupturas podem dar voz aqueles que são subalternizados. Embora reconheça a legitimidade dessa crítica, não consigo vê-la como incompatível com o projeto deliberativo. Ele precisa ser continuamente aperfeiçoado para corrigir assimetrias no poder, para incluir e para não naturalizar uma visão particular de mundo como se ela fosse a própria racionalidade. Isso é um projeto a ser construído a partir das instituições, não havendo garantias de que sua destruição corrigirá os problemas a serem combatidos. Portanto, até o presente momento, não consigo visualizar um modelo alternativo de democracia suficientemente consolidado, embora reconheça o valor da chamada visão “agonista” para repensar o deliberacionismo.

Trazendo o debate sobre modelos teóricos de volta para nossa realidade, defendo que a concertação democrática não é um sonho irrealizável, tampouco uma acomodação fatalista. Trata-se de uma tarefa em nosso horizonte de ação, necessária para conter a erosão institucional que avança cada vez mais. Há muito a ser buscado e disputado politicamente. Mas isso começa por uma repactuação dos limites jurídicos dessa disputa.

[2] Atribuída a diferentes autores, como Mark Tushnet e Steve Levistky.

[3] Aí já não se fala em adversário.

[4] Sobre esse artigo de Toffoli, vejam-se as críticas de Juan Arias.

[5] Sobre as críticas ao modelo deliberativo e sua capacidade de gerar ou não emancipação, veja-se o interessante debate entre Ricardo Fabrino Mendonça e Luis Felipe Miguel.

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