Opinião

Tríade dos repetitivos de saúde: a judicialização após vereditos de STJ e STF

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24 de julho de 2020, 17h11

Em março, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Tema 006 de Repercussão Geral, o último dos temas repetitivos que tratam da judicialização da saúde, que foram apreciados pelos tribunais superiores:

I) Tema 106 de Recurso Repetitivo STJ (REsp nº 1.657.156);

II) Tema 500 de Repercussão Geral STF (RE 657.718);

III) Tema 006 de Repercussão Geral – STF (RE 566.471).  

O Superior Tribunal de Justiça apreciou a questão à luz da Lei federal nº 8.080/90 (Lei do SUS) e perquiriu sobre a obrigatoriedade, ou não, de o poder público fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS. O Tema 106 de Recursos Repetitivos do STJ foi decidido no ano de 2018, com a fixação da seguinte tese:

"A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

IK) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

II) Incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;

III) Existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência".

A tese fixada pelo STJ estabeleceu balizamentos e limites claros à judicialização da saúde. Apesar do avanço verificado, sua aplicação nos processos de base mostrou-se fragilizada em razão dos Temas 006 e 500 de repercussão geral, então pendentes de julgamento pelo STF.

Os Temas 006/RG/STF e 500/RG/STF, reunidos, resultavam na mesma dimensão do tema 106/RR/STJ. Desse modo, a definição de todas as teses era medida essencial para efetiva e segura aplicação pelo Poder Judiciário. 

Em 2019, o STF concluiu o julgamento do Tema 500/RG, que trata de medicamentos não registrados na Anvisa. O debate, portanto, foi travado em torno do controle sanitário, da segurança e da eficácia de fármacos não disponíveis no mercado brasileiro, porque não registrados na Anvisa.

Já o Tema 006/RG, que veio a ser julgado em 11 de março, diferencia-se do Tema 500/RG porque trata de medicamentos de alto custo, fármacos registrados na Anvisa, disponíveis no mercado brasileiro, mas não incorporados à política pública de dispensação gratuita do SUS.

Feita a necessária distinção entre o objeto discutido em cada tema de repercussão geral, retomo o relato quanto ao Tema 500/RG, julgado em 2019, cuja tese restou assim definida:

"1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais;

2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial;

3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:

I) A existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);

II) A existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e

III) A inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

4) As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União".

A regra, portanto, é que não existe obrigação de o poder público dispensar medicamento não registrado na Anvisa. Os requisitos e critérios que autorizam, de modo excepcional, a dispensação, devem ser observados cumulativamente e foram elencados de modo objetivo pelo STF.

Além disso, também restou definido que, preenchidos os requisitos para determinação judicial de fornecimento do medicamento, o ente público que deverá arcar com os custos é a União.

A tese fixada para o Tema 500/RG se amolda com perfeição aos casos de tratamento médico/hospitalar que não têm protocolo clínico aprovado no Brasil. É dizer: tratamentos não realizados no país também não podem ser custeados pelo poder público, sendo a ratio decidendi que permeou o julgamento do Tema 500/RG perfeitamente aplicável para tal situação.

Nesse sentido, aliás, precedentes recentes do TRF da 1ª Região:

"DIREITO À SAÚDE. DISTROFIA MUSCULAR PROGRESSIVA TIPO CINTURAS. TRANSPLANTE DE MIOBLASTOS. TRATAMENTO NO EXTERIOR (CHINA OU EUA). PROCEDIMENTO EXPERIMENTAL. INDICAÇÃO MÉDICA. IMPRESCINDIBILIDADE: INEXISTÊNCIA. 1. Embora tratando de 'medicamentos', já decidiu o Supremo Tribunal Federal, em 22/05/2019, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 657.718-RG (Tema 500), Relator o ministro Marco Aurélio: 'O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais'. 2. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.657.156/RJ, ocorrido em 25.04.2018 na sistemática do artigo 1.036 do CPC/2015 (recursos repetitivos), estabeleceu requisitos cumulativos para o fornecimento de 'medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS', cabendo destaque ao 1º: 'comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS'. (…) 4. Não há como impor ao Estado o ônus de custear tratamento médico experimental de elevado custo se sua eficácia não é reconhecida cientificamente e se os médicos que assistem a autora/paciente não o recomendam. 5. Apelação da parte autora não provida. (AC 0022717-04.2011.4.01.3800, Rel. Des. Fed. João Batista Moreira, TRF/1, 6ª T., j. 01/07/2019). No mesmo sentido, precedente do Estado do Pará: AC 0003601-55.2015.4.01.3902, Rel. Des. Jirair Meguerian, TRF/1, 6ª T., j. 09/12/2019".  

Definida a questão dos medicamentos não registrados na Anvisa (Tema 500/RG), restava ao STF fixar entendimento quanto à obrigação do poder público fornecer fármaco registrado, disponível no mercado, mas de alto custo e não incorporado à política pública de dispensação gratuita de medicamentos do SUS Tema 006/RG.

Como dito, a definição do Tema 006/RG veio em 11 de março. Apesar da sessão de julgamento ter chegado ao fim com a coleta de todos os votos, não foi possível fixar a tese na mesma oportunidade, pois foram invocados diversos critérios sobrepostos de limitação à judicialização da saúde, tendo o Plenário decidido por identificar tais critérios e os organizar para aprovação em sessão futura, a ser ainda designada.

Dos votos proferidos em Plenário, já é possível concluir que o STF considerou não existir obrigação do Poder Público fornecer medicamentos não constantes das listas de dispensação do SUS.

Na sessão de 11 de março se deu a continuação de julgamento, e sua retomada ocorreu com voto do ministro Alexandre de Moraes, que afirmou a validade dos arts. 19-Q e 19-R da Lei federal 8.080/90 (Lei do SUS).

Ao interpretar as normas constitucionais relacionadas ao direito à saúde, o ministro Moraes observou que a CF/88 considera a proteção à saúde, o direito à saúde, como um direito fundamental, a ser assegurado pelo poder público. Direito de todos e dever do Estado, com acesso universal e igualitário.

Foi assentado que a correta interpretação constitucional do direito à saúde deve se dar no cotejo "direito individual" versus "direito da coletividade". Não se trata, portanto, de contrapor o indivíduo ao Estado, mas sim confrontar e interpretar se em todas as hipóteses o Estado é obrigado a abandonar o seu planejamento, a sua estratégia de políticos públicas, para atender uma ação judicial específica.

O ministro Alexandre de Moraes concluiu que a universalidade e igualdade de acesso à saúde, assim previstas na CF/88, não podem ser substituídas por uma seletividade judicial.

Desse modo, o direito à saúde universal e igualitária deve se dar à luz dos pressupostos das políticas públicas voltadas à saúde, pois não é razoável que o poder público tenha a obrigação de fornecer e prestar todo tipo de demanda, até porque as necessidades humanas são infindáveis.

O ministro concluiu seu voto fazendo uma tabulação dos votos anteriormente proferidos, construindo, desse modo, voto médio, no qual reconheceu a constitucionalidade dos artigos 19-Q e 19-R da Lei 8.080/90, e reconheceu que é exigível, para dispensação de medicamentos pelo poder público, a incorporação do fármaco nas listas de dispensação previstas pelo Ministério da Saúde.

Já haviam votado antes do ministro Alexandre de Moraes o relator, ministro Marco Aurélio, e os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, todos com votos alinhados, e cujas linhas centrais foram tabuladas no voto proferido pelo ministro Moraes. Os votos dos demais ministros, que o sucederam, seguiram também a mesma linha, com nuances de maior ou menor prestígio aos direitos individuais, mas todos no sentido de que não é possível, como regra, obrigar o poder público a fornecer medicamentos não incorporados à política pública do SUS.

A sistemática de julgamento do Tema 006/RG, portanto, foi muito semelhante à adotada no Tema 500/RG:

I) O Poder Público não está obrigado a fornecer;

II) Pode ser obrigado excepcionalmente, desde que preenchidas uma séria de condicionantes e requisitos.

Os critérios, condicionantes ou limites do Tema 006/RG, conforme já informado, não foram fixados na mesma sessão em que se concluiu seu julgamento. Dos votos proferidos, entretanto, já é possível antever que a judicialização da saúde será afunilada, somente sendo admitida:

1) Quando houver comprovação de hipossuficiência financeira;

2) Quando houver laudo médico comprovando a necessidade do medicamento;

3) Quando os laudos forem elaborados por perito de confiança do magistrado (ou pelos núcleos judiciais de saúde instaurados nos TJs);

4) Quando os laudos estiverem fundamentados na medicina baseada em evidências científicas;

5) Quando houver prova de que não há substituto terapêutico ou mediamente similar já dispensado pelo SUS (aferível, talvez, com certificação pelo Conitec/Ministério da Saúde);

6) Quando o medicamento esteja em análise para incorporação ao SUS e o prazo para análise tenha extrapolado (aqui, semelhante ao que fixado para o registro na Anvisa).

A despeito da tese ainda não ter sido fixada, já é possível suscitar tais elementos de convicção nos processos em curso atualmente.

Uma questão de grande importância tangenciou o julgamento do Tema 006/RG e, entretanto, não foi enfrentada e definida: a responsabilidade pelo custeio do medicamento de alto custo não constante das listas do SUS que, excepcionalmente, deva ser dispensado por decisão judicial.

Os Estados da federação e o DF atuaram no feito na condição de amici curiae, via Câmara Técnica do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e Distrito Federal, e requereram que os ônus da dispensação excepcional fossem atribuídos à União, considerando que é o Ministério da Saúde, por meio da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde), quem elabora os estudos técnicos para incorporação ou não, de determinado medicamento nas listas do SUS. Trata-se, portanto, de avaliação técnica e juízo de conveniência e oportunidade exercido única e exclusivamente pela União.

A questão, entretanto, não foi objeto de debates e não será tratada, ao que tudo indica, na tese a ser fixada. A questão da responsabilidade entre os entes públicos para fornecimento de medicamentos de alto custo (Tema 006/RG), deverá ser solucionada, portanto, mediante dois possíveis argumentos jurídicos:

I) Aplicação cumulativa dos Temas 500 e 006 aproveitando-se ao Tema 006 a parte final do Tema 500, já que também com relação ao medicamento de alto custo é a União quem deve suportar o ônus por deixar de implementar a política pública de saúde (Conitec-MS versus Anvisa);

II) Aplicação do Tema 793/RG/STF, o que também deverá direcionar o cumprimento da obrigação à União, considerando as normas de repartição de competências do SUS. 

O Tema 793/RG/STF trata da responsabilidade solidária para atender a obrigações na área da saúde. Em 2015, o STF fixou tese reconhecendo a responsabilidade solidária de União, Estados e municípios. Houve embargos de declaração julgados pelo Plenário do STF em 2019, ocasião em que a tese anteriormente fixada foi ajusta, passando a constar a seguinte redação:

"Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro".  

Na atualização do Tema 793/RG, o STF esclareceu que o cidadão pode ajuizar a demanda contra todos os entes públicos. Daí a legitimação processual para União, Estados e municípios figurarem no polo passivo da lide. No entanto, o Poder Judiciário deve atribuir a obrigação prestacional ao ente que, pelas normas do SUS, estaria obrigado a tanto.

O STF definiu, portanto, que o cidadão não tem obrigação de conhecer qual dos entes deve atender seu pleito. Quanto ao Poder Judiciário, entretanto, não lhe é dado desconhecer as normas de repartição de competências do SUS.

Desse modo, eventuais determinações judiciais para fornecimento de medicamentos ou prestação de tratamento médico devem ser suportadas financeiramente pelo ente público que, à luz das competências e normas do SUS, esteja vocacionado para tanto, sendo cabível, quando for o caso, o ressarcimento entre os entes públicos federativos.

O microssistema da judicialização da saúde, como se vê, está abrangido pelas teses fixadas nos Temas 106/RR/STJ, 500/RG/STF e 006/RG/STF, tendo ainda como arremate de interpretação o Tema 793/RG/STF, todos a fornecer, de modo vinculante, os balizamentos e limites indispensáveis a tais processos.

Como muito bem assentado no voto do ministro Alexandre de Moraes, a universalidade de acesso ao serviço público de saúde não pode ser confundida ou substituída pela seletividade judicial, sendo absolutamente indispensável que as políticas públicas de saúde sejam desenvolvidas à luz das necessidades da coletividade, sob pena do sistema não ser capaz de prestar o básico e indispensável.

A tríade de teses fixadas aponta para a racionalidade no uso dos recursos públicos, tendo STJ e STF promovido interpretação razoável e realista das normas legais e constitucionais que versam sobre a saúde pública.

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