Improbidade em debate

PL admite quantificação do dano em liquidação posterior de condenação

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24 de julho de 2020, 8h00

O Projeto de Lei n. 10.887/2018 propõe o acréscimo do artigo 18-A à Lei n. 8.429/1992, nele consagrando posição do Superior Tribunal de Justiça no sentido de admitir a quantificação do dano (quantum debeatur) em liquidação posterior de decisão condenatória (an debeatur).

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Como já pudemos externar algumas vezes, o ônus argumentativo imposto à petição inicial de ação de improbidade, associado à possibilidade de instauração ministerial prévia de inquérito civil público, conspiram em favor de que o pedido genérico de ressarcimento ao erário seja absolutamente excepcional; isto é, sempre que em tese possível o cálculo, deve o autor da ação, a bem da ampla defesa e do contraditório do réu, bem assim para demonstração do elemento objetivo de vários dos tipos contidos na Lei n. 8.429/1992 (em especial aqueles constantes do artigo 10), proceder à discriminação do valor em que se escora a título de prejuízo, não merecendo ter lugar pretensões que se pretendam lacônicas sob o singelo fundamento de que a quantificação seria complexa ou desnecessária ao tempo do manejo da ação. Em suma, deve-se realmente prestigiar o artigo 324, § 1º, II, do Código de Processo Civil, apenas admitindo-se a formulação genérica do pedido quando de fato “não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato”.

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Genérico que seja o pedido, ou seja, na hipótese em que verdadeiramente se justifique a remissão do quantum debeatur para momento posterior à definição do an debeatur, sendo possível, após a instrução processual, reunir os subsídios necessários, impõe o artigo 491 do Código de Processo Civil que o juízo defina desde logo “a extensão da obrigação, o índice de correção monetária, a taxa de juros, o termo inicial de ambos e a periodicidade da capitalização dos juros”, proferindo sentença líquida. Naturalmente, não será preciso fazê-lo quando “não for possível determinar, de modo definitivo, o montante devido” ou quando “a apuração do valor devido depender da produção de prova de realização demorada ou excessivamente dispendiosa, assim reconhecida na sentença.

É dizer, frisamos, que a liquidação terá lugar excepcional, apenas sendo admitida quando (i) for inviável, de início, a determinação do pedido formulado na inicial e, cumulativamente, (ii) ao tempo em que proferida a sentença, e sendo ela condenatória, ainda for impossível ou extremamente oneroso quantificar o dano. Daí por que rechaçamos o pedido genérico que busque ver ressarcidos danos extrapatrimoniais: se são eles de impossível cálculo ao tempo do aviamento da inicial, seguirão sendo de impossível cálculo quando da prolação da sentença ou de sua liquidação. Baseados que são em estimativa, que os danos extrapatrimoniais sejam estimados desde o início, favorecendo impugnação por parte do réu em lugar de funcionar como um cheque em branco a ser preenchido pós-condenação.

Ainda perquirindo sobre a questão da liquidação do dano ao erário em improbidade, uma indagação interessante nos ocorre: imagine-se ação de improbidade em que se alega a prática de um dos tipos do artigo 10, que partilham como elemento objetivo de seu tipo a existência de lesão ao erário. Imagine-se, ainda, que, formulado pedido genérico, sobrevém sentença condenatória ilíquida, que remete para fase de liquidação a apuração do dano. Pois bem, e eis aqui o ponto de complexidade: imagine-se que, no curso da liquidação, ao fim e ao cabo, se constata prejuízo igual a zero; em outras palavras, a liquidação é bem sucedida, eis que define um valor, acontece que resultou ele em zero, do que deflui a inexistência de prejuízo ao erário. O que fazer, então, diante dessa situação extraordinária, mas em tese possível?

Cremos que, cuidando-se de liquidação ainda provisória (artigo 512 do CPC), que pressupõe a inexistência de trânsito em julgado, o fato deve ser tratado como superveniente e tomado em conta pelo juízo perante o qual o processo estiver tramitando, seja de ofício, seja a requerimento (artigo 493 do CPC). Se, por outro lado, a condenação já houver transitado em julgado, seria a hipótese de se aviar ação rescisória fulcrada no artigo 966, V[1], do CPC, dado que a decisão inegavelmente terá violado a norma tipificadora da conduta censurada ao fazê-la incidir sem que se fizesse presente o elemento objetivo de seu tipo.

Não desconhecemos, naturalmente, a dicção do artigo 21, I, da Lei n. 8.429/1990, que dispensa a ocorrência de dano para enquadramento de conduta como ímproba. Para os tipos do artigo 10, sem embargo, por cuidar a lesão de elemento objetivo do tipo, o dano, a nosso ver, é indispensável, de modo que, uma vez afastado por liquidação resultante em zero, faz cair o enquadramento da conduta no tipo. A ser o caso, sem embargo, de ter incidir tipo diverso, presente nos artigos 9º ou 11, o valor zero terá o condão de afastar a sanção de ressarcimento, conquanto possam ser mantidas as demais punições, aí, sim, prestigiando-se o artigo 21, I.

Vamos além, agora para enfrentar prática judicial observada com alguma frequência no sentido de vincular o valor a ser cobrado a título de pena de multa ao valor da lesão ao erário, estratégia essa inclusive encampada pelo Projeto de Lei n. 10.887/2018, em seu artigo 12, II, para estabelecer como parâmetro máximo de multa o valor em dobro do prejuízo ao erário. O ponto aqui, nada obstante, é que notamos julgados (REsp 1.513.925/BA, DJ de 13.9.2017) que aplicaram o entendimento acima mesmo quando remetida a quantificação do dano para fase de liquidação. Dito de outro modo, se condena em multa no valor de duas vezes o prejuízo que vier a ser constatado quando da sua apuração.

Respeitosamente, não podemos concordar com esse entendimento. Isso porque o valor correspondente ao dobro da lesão, proposto pelo artigo 12, II, do Projeto de Lei n. 10.887/2018, é um teto, é um limita máximo, não uma regra a ser aplicada indiscriminadamente. Mais bem explicando, se é possível oscilar de zero até o dobro do valor do prejuízo, seguramente repercutirá na dosimetria da sanção pecuniária a base sobre a qual ela incidirá. Nossa ressalva, por conseguinte, é quanto à fixação apriorística da pena em variável “x” sobre um valor ainda não conhecido, que poderá adiante se revelar excessivo ou irrisório. Assim, pensamos que a multa, nessa hipótese peculiar, deve ser estabelecida já na decisão condenatória a partir dos demais elementos de aferição de culpabilidade existentes, merecendo “detração” se, após a liquidação, se perceber tenha ela sido estabelecida para além do limite máximo de duas vez o dano ao erário que houver sido posteriormente alcançado (uma possibilidade, em tendo a multa já sido paga, é a compensação parcial, com desconto sobre o valor do ressarcimento ainda a ser recolhido).

Encerrando nosso comentário, uma observação conclusiva, que soa óbvia, mas é de suma relevância: sempre que a liquidação exigir alegação ou prova de fato novo, será indispensável que a modalidade da apuração seja o procedimento comum (artigo 511 do Código de Processo Civil), assegurando o contraditório e a ampla defesa do réu. Trata-se, como dito, de algo claro, mas que merece ser repisado sobretudo em razão do fato de por vezes se revelar difícil a separação entre o que é matéria não contemplada anteriormente pela fase cognitiva, a exigir debate amplo, daquilo que já haja sido endereçado pela coisa julgada formada.


[1] Não entendemos possível rescisória arrimada na obtenção de prova nova porque a liquidação terá sido posterior ao trânsito em julgado, tampouco assumimos como possibilidade o erro de fato, eis que a questão sobre a existência ou não de prejuízo fatalmente terá sido controvertida ao longo da fase cognitiva.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

  • é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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