Entre os vários impactos oriundos da pandemia da Covid-19, temos, no âmbito nacional, desafios postos à realização das eleições municipais. Esse tema que, nos últimos meses, circundou entre as principais pautas de debate de nossas instituições, sobretudo do Congresso Nacional e do Tribunal Superior Eleitoral, resultando na aprovação da EC nº 107/2020 que adiou as eleições de outubro para os dias 15 de novembro, em primeiro turno, e 29 de novembro, em segundo turno.
A aprovação da referida emenda constitucional, no entanto, não encerra o debate sobre as consequências do atual cenário de pandemia nas eleições de 2020. Faz-se necessária a continuidade da discussão a fim de se compreender as múltiplas dimensões e desafios que perpassam a realização de um pleito eleitoral em meio a uma crise de saúde mundial.
Certo é que a eclosão da Covid-19 impôs uma nova realidade à população, alterando o cotidiano da sociedade em suas mais diversas quadras e impulsionando mudança ainda mais audaciosa do que a pretendida pelo famoso Plano JK. Se Kubitschek planejou uma modernização acelerada sintetizada no slogan "50 anos em cinco", o novo coronavírus promoveu o processo de virtualização da vida no que podemos chamar de "50 anos em cinco meses".
O mundo real foi predominantemente substituído pelo virtual, em que telas de computadores, tablets e smartphones se apoderaram de nossa realidade social, tornando-se os principais meios de trabalho, estudo e entretenimento.
Esse novo cenário também repercute significativamente nas eleições de 2020. Não é de hoje que a Justiça Eleitoral caminha no sentido de incorporar instrumentos da era digital. Nesse sentido, temos o vanguardismo no uso da urna eletrônica — ainda objeto de profundas polêmicas, vide ADI 5889, em que se discute o voto híbrido no Brasil — passando, em momento mais recente, à adoção do Processo Judicial Eletrônico (PJe). Este que, não obstante as inúmeras críticas à época das Eleições 2018, resultou em substancial avanço no âmbito da Justiça Eleitoral ao conferir maior celeridade e transparência à tramitação processual.
No entanto, não há dúvidas de que o "novo normal" decorrente da pandemia, marcado pela amplificação da virtualização, terá impactos ainda mais significativos no pleito de 2020. A título exemplificativo, temos a aprovação pelo TSE da realização de convenções partidárias virtuais, o que também altera a promoção das propagandas intrapartidárias, que tendem a seguir os mesmos moldes.
O período de campanhas não será diferente. A previsão de uso massivo das plataformas digitais durante as propagandas eleitorais se intensifica, amplificando também a necessidade de fiscalização e controle de tais canais. Nesse contexto, algumas questões ou "não ditos" devem ser enfrentados.
Se por um lado a nova tendência de virtualização das eleições promove uma maior difusão e publicidade das propostas e dos candidatos concorrentes ao pleito de 2020, por outro pode promover a exclusão daqueles que não possuem acesso à internet e se encontram alijados de tais plataformas. Como sabemos, o Brasil, antes mesmo de ser atingido pelo novo coronavírus, já enfrentava uma realidade de profundas desigualdades sociais e econômicas, as quais foram agravadas pelos efeitos deletérios da pandemia.
Em um cenário de crescente desemprego no país, ter acesso a condições mínimas de sobrevivência virou artigo de luxo. Sendo assim, como se falar em inclusão e publicidade quando os destinatários efetivos de propagandas virtuais constituem uma elite de cidadãos que não precisam escolher entre pagar a conta de luz ou comprar o pão?
Se a democracia é caracterizada pelo governo de todos, limitar o acesso à informação no âmbito de eleições àqueles que possuem acesso à internet constitui receita para o aprofundamento da crise de representatividade vivenciada nos dias atuais pelas nossas instituições. Ainda pior, desvirtua nosso sistema de governo para coroar uma aristocracia "em pele" democrática — em alusão ao brocardo popular "lobo em pele de cordeiro".
Outro ponto a ser destacado relaciona-se à quebra de paradigma promovida pela descentralização dos protagonistas das propagandas eleitorais nas redes sociais. Isso porque, com a migração massiva da campanha eleitoral para o âmbito digital, não apenas o candidato e seu respectivo partido são veiculadores de conteúdo. Também os próprios eleitores passam a adquirir papel ativo substantivo na conquista de votos. Nesse sentido, pode-se dizer que há um fortalecimento da consciência política do cidadão, que não mais é um mero expectador de propostas, mas participante ativo capaz de influenciar o resultado das eleições.
Essa descentralização, no entanto, enseja desafio (ainda maior) à Justiça Eleitoral quanto ao controle da lisura das propagandas eleitorais, uma vez que se consubstancia tarefa hercúlea, senão impossível, fiscalizar as diversas plataformas digitais existentes e seus milhões de usuários. Tal situação se agrava quando pensada no contexto de eleições municipais, em que há uma cediça pulverização das campanhas.
Ainda nesse contexto, insere-se a grande celeuma que envolve o combate às fake news. Se essa já era uma das principais agendas previstas para as eleições de 2020, com a virtualização promovida pela pandemia o tema se tornou ainda mais relevante e controverso. O desenvolvimento de eleições regulares e verdadeiramente democráticas envolve a garantia de liberdade de expressão e de informação aos seus diversos participantes.
É constitutivo de democracias plurais como a brasileira o intercâmbio de posições, ideais e propostas que não raro culminam em verdadeiros entrechoques. Tal conflito não apenas é constitutivo como benéfico à formação da consciência política dos cidadãos [1].
O problema exsurge quando a liberdade de expressão se transmuda em instrumento de veiculação de notícias falsas que maculam o direito do eleitor de ser propriamente informado. Ditas fake news que comprometem o direito fundamental ao voto dos nossos cidadãos e, por consequência, a nossa democracia.
Se a veiculação de notícias falsas afronta nossas bases democráticas, um cerceamento indevido da liberdade de expressão, com a censura prévia dos cidadãos, igualmente se mostra incompatível com o projeto constitucional estabelecido em 1988. Em nossa história política, não podemos esquecer das marcas de governos autoritários que utilizaram do silenciamento do povo para violar direitos fundamentais. Garantir a liberdade de expressão, nesse sentido, é garantir a permanência da nossa recente democracia [2]. Como é possível antever, hão há resposta fácil à questão.
Como dito, a promulgação da Emenda Constitucional 107/2020, que adiou as eleições municipais para novembro, não colocou termo aos diversos desafios que ainda se apresentam à realização do pleito eleitoral de 2020. Ainda é necessário desenvolver espaços de discussão e atuação direcionados à superação dos impactos da pandemia nas eleições, sendo certo que é através do diálogo e do esforço conjunto entre a sociedade, cientistas sanitários, o TSE e nossas instituições políticas, que caminharemos em direção à realização de eleições regulares, democráticas e seguras.
Referências bibliográficas
HABERMAS, Jürgenº. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I e v. II. Trad. Flávio Beno S. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997
SARMENTO, Daniel. "A liberdade de expressão e o problema do 'hate speech'". Disponível em: <http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/4888/material/a-liberdade-de-expressao-e-o-problema-do-hate-speech-daniel-sarmento.pdf> . Acesso em 16 de julho de 2020.
[1] Levando-se em consideração o desenvolvimento de uma democracia deliberativa nos moldes habermasianos (HABERMAS, Jürgenº Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I e v. II. Trad. Flávio Beno S. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997).
[2] SARMENTO, Daniel. "A liberdade de expressão e o problema do 'hate speech'". Disponível em: <http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/4888/material/a-liberdade-de-expressao-e-o-problema-do-hate-speech-daniel-sarmento.pdf> . Acesso em 16 de julho de 2020.
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