Opinião

As mudanças no direito de arena provocadas pela MP 984/2020

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24 de julho de 2020, 6h34

Em edição extra do Diário Oficial da União do dia 18 de junho, foi publicada a MP 984/2020, trazendo poucas, mas substanciais, alterações na Lei nº 9.615/98, especialmente nas partes que regulam as autorizações para a transmissão audiovisual dos espetáculos desportivos e a celebração dos contratos de trabalho dos atletas profissionais. Conforme estabelecido na referida Lei 9.615/98 que trata das normas gerais sobre o desporto no país e também conhecida como Lei Pelé , o direito de arena consiste na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo.

Simplificando, temos que são os "direitos televisivos", ou seja, o direito de permitir que uma partida de futebol ou de qualquer outra modalidade desportiva possa ser transmitida pela TV ou por qualquer outro meio audiovisual, como, por exemplo, pela internet.

A Lei Pelé estabelece, em contrapartida à utilização da imagem dos atletas, que, do valor total pactuado para a transmissão, seja extraída a fração de 5% para distribuição, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo. Tal parcela, também denominada de direito de arena, foi definida pelo legislador como de natureza "civil" e, portanto, sem natureza salarial.

A Medida Provisória nº 984/2020 traz significativas alterações nestes dois pontos, convindo destacar que este instrumento legal tem eficácia imediata a partir de sua publicação (e ela foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União de 18 de junho de 2020), até que venha a ser modificada, rejeitada ou aprovada na íntegra pelo Congresso Nacional. Portanto, neste contexto, a MP 984/2020 está propondo consolidar a mudança de redação do artigo 42 da Lei Pelé, passando a prever que apenas a entidade de prática desportiva "mandante" do jogo a ser realizado, é quem detém a prerrogativa de autorizar e negociar as transmissões dos espetáculos desportivos. Dessa forma, a partir de agora, apenas o clube mandante é quem definirá se a partida será transmitida ou não, seja pelo TV ou outro meio de imagens.

Quais são as consequências imediatas dessa alteração para os clubes e para os atletas?

A mudança significa uma transformação no mercado de direitos de transmissão para os clubes, especialmente em face das possibilidades trazidas pelo novo mercado de streaming, que surge como uma possível redenção financeira para vários clubes, acarretando maior concorrência e, consequentemente, maior valorização do produto. Contudo, é preciso fazer aqui algumas observações fundamentais: 1) a primeira, é que: os contratos já celebrados sob a vigência da legislação anterior devem ser cumpridos, pois são negócios jurídicos perfeitos e seria inconstitucional uma regra nova ter eficácia retroativa; 2) em segundo lugar, o apetite comercial das grandes redes televisivas pode se voltar exclusivamente para os jogos que envolvam apenas os grandes times e não a grade total do campeonato —, resultando em desprestígio aos clubes pequenos, pois terão menos jogos de interesse como mandantes e, por conseguinte, os valores continuarão muito desequilibrados; por outro lado, a alteração legislativa também poderá ter um resultado benéfico, conforme já se manifestaram diversas entidades desportivas, desde que, para o ato de negociar a transmissão dos jogos, haja uma efetiva união entre eles para encontrarem valores justos.

De qualquer forma, a mudança é um avanço significativo, pois trará muito maior liberdade aos clubes que sejam os detentores do mando de campo na negociação da transmissão de suas partidas, não dependendo mais da concordância do time adversário. Assim, ampliam-se as possibilidades, especialmente aos clubes de menor expressão, de escolher o melhor parceiro comercial, que, no sistema anterior, eram praticamente obrigados a contratar com a empresa de comunicação que fechassem com os grandes clubes, diminuindo seu poder de barganha.

Já em relação aos atletas, embora não tenha sido alterado o percentual de 5% a eles destinado, as modificações poderão trazer enormes dificuldades quanto ao seu recebimento. Isso porque o repasse da parcela não será mais feito pelo sindicato de atletas profissionais, como até então previsto.

A MP 984/2020 não é clara a respeito, mas, considerando que o valor de transmissão, relativo a cada partida, será devido exclusivamente ao clube mandante, então dele também será a obrigação de efetuar a distribuição a todos os participantes, inclusive aos atletas do clube visitante, podendo fazê-lo diretamente ou por meio de repasse ao clube empregador que, por sua vez, fará a distribuição da cota devida aos seus jogadores.

Portanto, se já era difícil, antes da alteração introduzida pela MPV 984/2020, apurar a correção dos pagamentos do direito de arena, esta dificuldade foi agora agravada, uma vez que os atletas terão de buscar a informação dos valores ora junto ao próprio clube, ora junto ao clube adversário para, só então, verificar a correção das quantias recebidas ou para demandar parcelas de direito de arena não pagas ou pagas incorretamente pelo clube mandante.

Nesse cenário de litigância, emerge mais uma questão: seria competente a Justiça do Trabalho para apreciar ações entre atletas e clubes que não sejam seu empregador? Note-se que, embora o direito seja decorrente da relação de trabalho, a relação jurídica de direito material não possui as mesmas partes. A ausência de regulamentação na MPV 984/2020, quanto à forma e responsabilidade desse pagamento, certamente trará inúmeros questionamentos, em evidente prejuízo para os atletas.

A MP 984/2020 traz, ainda, como novidade a revogação da proibição de empresas que exploram os serviços de transmissão de sons e imagens de patrocinar ou veicular sua própria marca nos uniformes de competições das entidades desportivas. Dessa forma, poderemos assistir uma partida transmitida por um determinado canal e ter atletas com uniformes patrocinados por empresa concorrente, tal como ocorreu na conturbada final da Copa João Havelange de 2000, que ficou marcada na memória do torcedor tanto pela queda do alambrado, ferindo mais de 100 pessoas em São Januário, causando seu adiamento, quanto pela ousadia de o Vasco da Gama, no jogo seguinte, entrar em campo com o logotipo do SBT estampado gratuitamente na camisa apenas para atingir a empresa que transmitia a final.

Por fim, e convém realçar o que, talvez, seja o aspecto mais positivo da MP 984/2020: a redução, de forma temporária (até 31 dezembro de 2020), do período de vigência mínima do contrato especial de trabalho esportivo, que cai de três meses para 30 dias. Tal medida, neste particular revestida inegavelmente de relevância e urgência, irá permitir que diversos clubes menores possam remontar seu plantel para disputar o restante dos jogos dos campeonatos estaduais que foram paralisados em razão da pandemia, tendo em vista que diversos contratos foram encerrados neste período e seria inviável recontratar atletas pelo prazo antes imperativo de, no mínimo, três meses tão somente para a disputa de alguns jogos que não durariam mais de um mês.

São estas as mudanças trazidas pela MP 984/2020 que impactam o mercado do futebol brasileiro na sua principal fonte de receita, ao mesmo tempo causando incertezas aos atletas em relação ao recebimento da parcela de 5% do direito de arena a que fazem jus. Espera-se que, em caso de conversão em lei, a medida provisória tenha seu texto aperfeiçoado quanto à forma de pagamento desta parcela, sobretudo para definir, de forma cristalina, como se dará a publicidade do valor e o repasse aos jogadores dos clubes confrontantes, bem como da competência para tratar dos conflitos daí decorrentes. Do contrário, mesmo na hipótese de a MP não vir a ser aprovada pois ela tem vigência e eficácia imediatas —, estaremos diante de mais um diploma legal a alimentar a insegurança jurídica vivenciada no país.

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