Opinião

O que muda com o novo marco legal do saneamento básico

Autores

  • Eduardo Carvalhaes

    é sócio na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados mestre e doutor em Direito de Estado com especialização em Direito Público Relações Governamentais e Mercados Regulados.

  • Beatriz Ghosn

    é associada sênior na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados e especialista em Direito da Infraestrutura e LLM em Internacional Business Law.

24 de julho de 2020, 18h17

Após mais de dois anos de debates no Congresso Nacional, foi publicada no último dia 16 a Lei Federal nº 14.026, que prevê novas regras para o setor de saneamento básico. O novo marco regulatório do setor, aprovado em meio à maior crise sanitária já enfrentada, busca modernizar e universalizar os serviços de saneamento básico, que hoje não chegam a 104 milhões de brasileiros, que não contam com coleta de esgoto, e a 35 milhões que não têm acesso a água tratada.

Como uma das principais apostas para a consecução do objetivo de universalização dos serviços de saneamento básico, o novo marco prevê regras que visam fomentar investimentos privados, estimulando a livre concorrência e a sustentabilidade econômica dos serviços. Entre as principais mudanças estruturais no modelo de prestação dos serviços está a obrigatoriedade de licitação para novas contratações.

A nova lei adota como instrumento para atingir a universalização do acesso ao saneamento o incentivo à cooperação entre entes federativos nas atividades de prestação, contratação e regulação dos serviços, bem como à regionalização da prestação dos serviços, com o fim de que se obtenha viabilidade técnica e econômico-financeira, com a criação de ganhos de escala e de eficiência.

Entre as mudanças mais relevantes introduzidas pelo novo marco legal está a atribuição de competência à Agência Nacional de Águas para instituir normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento, passando a ser denominada Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). A partir de agora, ela passará a atuar no âmbito do setor de saneamento por meio da edição de normas de referência para a regulação dos serviços, que deverão servir de diretrizes para os titulares dos serviços e as entidades reguladoras e fiscalizadoras.

As normas editadas pela ANA versarão sobre temas relevantes como os padrões de qualidade e eficiência na prestação dos serviços, a manutenção e operação dos sistemas de saneamento básico, regulação tarifária, padronização de instrumentos contratuais entre o titular do serviço e o delegatário, metas de universalização, contabilidade regulatória, cálculo de indenização por investimentos não amortizados, regras sobre caducidade, entre outros.

A atribuição de competência à ANA para editar regras de referência com relação a questões estruturais do setor de saneamento tem por objetivo conferir uniformidade regulatória ao setor e garantir a segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços, visto que, em decorrência da competência municipal, existe hoje uma multiplicidade de entidades reguladoras e fiscalizadoras, cada qual com suas normas e instrumentos contratuais próprios.

Como medida de estímulo à adoção das normas de referência pelas entidades reguladoras, o novo marco prevê que a verificação da adoção de tais normas será obrigatória para a contratação de financiamentos com recursos da União ou de entidades integrantes da administração pública federal.

Metas de universalização de acesso aos serviços
A nova lei também estabelece que os contrato de prestação de serviços de saneamento deverão prever metas de universalização que resultem no atendimento de 99% da população com relação ao acesso a água potável, e 90% da população no que diz respeito aos serviços de coleta e tratamento de esgotos, até a data de 31 de dezembro de 2033. Os contratos em vigor que não prevejam as metas em questão deverão ser alterados até 31 de março de 2022 para passar a contê-las.

Caso se trate de contrato firmado mediante prévio procedimento licitatório, contendo metas diversas das estabelecidas pelo novo marco, as cláusulas permanecerão inalteradas. O titular dos serviços, contudo, não estará isento do cumprimento de tais metas, devendo fazê-lo por meio de prestação direta da parcela remanescente, licitação complementar para atingimento da totalidade da meta, e/ou aditamento de contratos já licitados, incluindo eventual reequilíbrio econômico-financeiro, desde que em comum acordo com o contratado.

O não atingimento das metas deverá ser investigado pela agência reguladora competente, em processo administrativo próprio para definição das ações necessárias, que poderão incluir imposição de sanções, com eventual declaração de caducidade da concessão. Também merece destaque a regra segundo a qual o prestador de serviços que estiver descumprindo metas e cronogramas definidos em contrato estará proibido de distribuir lucros e dividendos.

Obrigatoriedade de procedimento licitatório
O novo marco regulatório também estabelece de maneira expressa que a prestação dos serviços de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular dos serviços requer a celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do artigo 175 da Constituição Federal. A formalização de contratação mediante contrato de programa passa a ser vedada, assim como já o eram convênios, termos de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.

Não obstante, contratos de programa e de concessão vigentes na data de publicação da nova lei permanecem em vigor até o fim do prazo contratual.

É importante notar que mesmo consórcios intermunicipais de saneamento básico estão proibidos de celebrar contratos de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública, ou de subdelegar a prestação dos serviços sem prévio procedimento licitatório.

Disposições contratuais mínimas
Além das cláusulas essenciais aos contratos de concessão estabelecidas pelo artigo 23 da Lei de Concessões (Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995), o novo marco regulatório do saneamento básico prevê que os contratos que tenham por objeto a prestação de serviços de saneamento deverão conter expressamente, sob pena de nulidade, cláusulas relativas a metas de expansão e de qualidade, possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias, ou provenientes de projetos associados, metodologia de cálculo de eventual indenização por bens reversíveis; e repartição de riscos entre as partes, inclusive relacionados a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária. Faculta-se, ainda, a adoção de mecanismos privados de resolução de disputas decorrentes do contrato ou a ele relacionadas, inclusive arbitragem.

Sustentabilidade econômico-financeira dos serviços
A fim de assegurar a continuidade dos serviços e a sua prestação de forma eficiente, a nova lei determina que os contratos em vigor, incluídos aditivos e renovações, bem como aqueles provenientes de licitação, estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, seja por recursos próprios ou por meio de contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033. A metodologia a ser utilizada para aferição da capacidade econômico-financeira da contratada deverá ser objeto de regulamentação por decreto do Poder Executivo no prazo de 90 dias.

Entre as condições de validade dos contratos de prestação de serviços de saneamento básico, também foi incluída pelo novo marco regulatório a existência de estudos que comprovem a viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação dos serviços, conforme o respectivo plano de saneamento sanitário.

A preocupação com a sustentabilidade econômico-financeira do serviço foi igualmente endereçada pelo novo marco com relação às unidades regionais de saneamento assim denominadas as unidades instituídas por Estados mediante lei ordinária, constituídas por grupamento de municípios, para atender às exigências de higiene e saúde pública ou dar viabilidade econômica e técnica a municípios menos favorecidos. De acordo com a nova lei, tais unidades devem apresentar sustentabilidade econômico-financeira e contemplar, de preferência, pelo menos uma região metropolitana.

Alienação de controle acionário de prestadores públicos de serviços de saneamento
Em caso de alienação de controle acionário de empresa pública ou sociedade de economia mista prestadora de serviços de saneamento básico, o novo marco prevê que os contratos de concessão ou de programa em execução poderão ser substituídos por novos contratos de concessão, observando-se, quando aplicável, o Programa Estadual de Desestatização.

A anuência prévia dos entes públicos que formalizaram o contrato de programa ficará dispensada, caso o controlador da empresa pública ou da sociedade de economia mista não manifeste a necessidade de alteração de prazo, de objeto ou de demais cláusulas do contrato no momento da alienação.

Havendo proposta de alteração contratual antes da alienação de controle, deverá ser apresentada proposta de substituição dos contratos existentes aos entes públicos que formalizaram o contrato de programa, os quais terão prazo de 180 dias para manifestarem sua decisão, sob pena de seu silêncio ser interpretado como anuência à proposta de alteração contratual.

Encerramento de lixões
Por meio de modificações na Lei Federal nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, o novo marco regulatório do saneamento básico estabelece que a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos deverá ser implantada até 31 de dezembro de 2020, exceto para os municípios que até tal data tenham elaborado plano intermunicipal de resíduos sólidos ou plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos, e que disponham de mecanismos de cobrança que garantam sua sustentabilidade econômico-financeira. Para esses municípios, o prazo para o encerramento de lixões pode ser estendido até agosto de 2024, a depender de determinados critérios como, por exemplo, número de habitantes.

Vetos presidenciais
Foram apresentados pelo presidente da República 12 vetos a dispositivos do projeto de lei do marco regulatório do saneamento básico.

Merecem destaque os vetos às regras para reconhecimento da validade de contratos de programa vigentes e das situações de fato de prestação dos serviços sem a assinatura de contrato; ao dispositivo que definia como facultava a participação de municípios nas prestações regionalizadas; à possibilidade de subdelegação do contrato de prestação de serviço em percentual superior a 25% do valor do contrato; e às regras de indenização de estatais prestadoras de serviços, no caso em que os titulares dos serviços não anuírem com a alienação de controle societário de tais sociedades.

Agora, eles serão analisados pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta de ambas as casas, podendo ser rejeitados mediante votação da maioria absoluta dos deputados e senadores.

Como era de se esperar, diversas regras introduzidas pelo novo marco regulatório não possuem eficácia imediata, visto que carecem de regulamentação pelo Poder Executivo. Além disso, a ANA, nova entidade reguladora do setor com papel-chave no novo modelo, demandará investimentos por parte do governo federal para estruturação de corpos técnico e administrativo necessários ao desempenho de suas novas competências.

Desse modo, a efetiva implementação do novo marco regulatório não será imediata, e seus efeitos no cotidiano da população brasileira devem ser percebidos em um horizonte de longo prazo.

Não obstante o fato de ainda haver indefinições no novo modelo em razão da potencial rejeição de vetos presidenciais e da futura regulamentação pelo Poder Executivo, acredita-se que as novas regras aprovadas de fato devem propiciar a criação de um ambiente mais competitivo e aumentar o potencial do setor de atrair investimentos privados.

Espera-se que o novo marco cumpra os fins a que se propõe e aproxime a sociedade brasileira cada vez mais do objetivo de universalização do acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, com reflexos positivos sobre a economia e todos os benefícios sociais que dele deverão advir, como a melhora na saúde da população, geração de renda e emprego, elevação do nível de educação e valorização ambiental.

Autores

  • é sócio na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados, mestre e doutor em Direito de Estado e com especialização em Direito Público, Relações Governamentais e Mercados Regulados.

  • é associada sênior na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados e especialista em Direito da Infraestrutura e LLM em Internacional Business Law.

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