Opinião

A imunidade tributária do ICMS nas exportações

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24 de julho de 2020, 12h19

Vivenciamos amplo debate a respeito da estrutura normativa que melhor atenderia aos propósitos da aguardada reforma tributária, havendo atualmente propostas que visam reequilibrar o Sistema Tributário Nacional, cujo emaranhado legislativo beira a irracionalidade.

Em que pese a inegável relevância do tema, é importante que não deixemos de lado que qualquer alteração dessa ordem demandará longo e amplo debate e, mesmo quando finalmente concretizada e ainda que inconcebível a hipótese de convivência paralela de regimes, haverá a "herança" quanto às relações jurídicas entabuladas sob o modelo atual.

Por esse motivo, ainda que — para muitos — já paire o espírito cético em relação ao modelo tributário atual, pelo exaurimento da sua eficácia social, é indispensável que sigamos ambiciosos com os seu necessários “saneamentos” ou, ao menos, com aqueles minimamente possíveis.

Dentro desse ideal provisório, e considerando que um dos maiores percalços do regramento atual se dá em relação à sistemática não-cumulativa, trazemos o RE nº 754.917, afetado ao regime de repercussão geral perante o STF, por cujo julgamento se busca fixar tese a respeito da imunidade do ICMS sobre exportação de mercadorias.

Referida imunidade, prevista no art. 155, §2º, X, a, da CF/88, juntamente com as demais hipóteses constitucionais dessa natureza, visam assegurar a neutralidade tributária, ao insculpir o estruturante “princípio do destino”, que elimina a discriminação entre produtos nacionais e estrangeiros e consequentemente garante, sob essa premissa, que os primeiros estejam em condição de concorrer no mercado internacional. Ao cabo, tende-se a prestigiar a máxima de não “exportar tributos”. Sobre o tema, as lições de BEVILACQUA[1]:

"As desonerações das exportações não consubstanciam qualquer prática de concessão de incentivos fiscais; trata-se, na realidade, de 'desoneração estrutural', consistente na eliminação do ônus fiscal sobre bens e serviços destinados ao exterior como decorrência da própria conformação do poder de tributar pela Constituição ao assimilar o princípio do país do destino”.

A respeito dessa premissa constitucional, trava-se discussão nos autos do citado leading case, no sentido de avaliar se a imunidade em questão abarca tão somente o ICMS incidente sobre a derradeira operação de exportação, ou se deve ser aplicada mais amplamente, a atingir as demais etapas da cadeia produtiva da mercadoria.

Sob esse enfoque, iniciou-se recentemente tal julgamento, tendo sido apresentado voto pelo relator, Min. Dias Toffoli, propondo a seguinte tese: “A imunidade a que se refere o art. 155, § 2º, X, a, da CF não alcança operações ou prestações anteriores à operação de exportação.”

Assim concluiu, pois, a seu ver, “a questão é facilmente resolvida pela simples leitura do dispositivo constitucional. Ao estabelecer a imunidade das operações de exportação ao ICMS, o art. 155, § 2º, X, da Constituição ocupa-se, a contrario sensu, das operações internas, pressupondo a incidência e estabelecendo o modo pelo qual o ônus tributário é compensado: mediante a manutenção e o aproveitamento dos créditos respectivos.”

No entanto, permissa venia, referida imunidade há de ser interpretada levando em consideração o caráter principiológico exposto acima, de modo a conferir — em “primeiro plano” — efetividade aos anseios constitucionais. Com isso, extrai-se do referido artigo que o direito à manutenção de crédito surge apenas subsidiariamente, em "segundo plano", tão somente para regular especificidades da apuração do ICMS, que, como qualquer outro regime não-cumulativo, apresenta imperfeições mitigadoras do resultado jurídico almejado.

 Quer-se dizer que, investido adequadamente do espírito pelo qual se conferiu tal imunidade tributária, extrai-se a premissa de que o constituinte derivado assegurou, em "segundo plano", "a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores", tendo o feito não com o propósito de delimitar o alcance da imunidade (a ponto de impor a cobrança do imposto nas operações anteriores à exportação), mas ciente da necessidade de se oferecer tratamento jurídico às hipóteses em que, por alguma razão, não foi possível levar a efeito o designo de “primeiro plano” da norma constitucional: desonerar tributariamente a mercadoria a ser exportada.

Surge como indicador para tal conclusão o fato de que, durante os trabalhos da PEC 41/2003, transformada na EC 42/2003, que deu nova redação ao ora debatido art. 155, §2º, X, a, da CF/88, a Comissão de Constituição de Justiça e de Redação (CCJ) da Câmara dos Deputados, consignou em relatório que “a PEC constitucionaliza a atual isenção de ICMS, concedida na chamada Lei Kandir à cadeia produtiva das exportações[2]. (g.n.)

Ainda em sede de tais trabalhos legislativos, foi apresentado parecer perante o plenário da Câmara dos Deputados após o encerramento da análise da Comissão Especial, oportunidade em que se registrou:

“Desoneramos as exportações, tiramos do corredor de exportação os entraves clássicos, como é o caso dos créditos não liqüidados, que nos impõem um custo adicional na concorrência com os demais países, impedindo o crescimento da nossa economia[3]. (g.n.)

Em certa medida, essa conjuntura legislativa já se pôde ver assimilada na jurisprudência do STF, tal como se nota no acórdão da ADO 25, em voto do ministro Edson Fachin:

“Assim, em diversas manifestações e oportunidades, o STF tem-se referido ao art. 155, §2º, X, “a”, da Constituição da República, como norma concretizadora do objetivo republicano de desenvolvimento nacional, na medida em que busca aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional.”

Note-se, portanto, a importância de se atribuir à imunidade tributária em questão interpretação que viabilize efetividade ao seus desígnios normativos, colocando o Brasil em franca condição de concorrência no mercado internacional.

Tal análise foi objeto das sempre preciosas lições do Ilustre Professor Roque Antonio Carrazza[4], a saber:

“São também imunes à tributação, agora por via de ICMS, as ‘operações que destinem mercadorias para o exterior’ e os ‘serviços prestados a destinatários no exterior’, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores" (redação dada pela Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003),

Portanto, com a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, as exportações de mercadorias, serviços de transporte e de comunicação não podem ser alvo deste imposto.

O benefício em tela alcança não só o exportador imediato, como todas as pessoas que tornaram possível a exportação. Valem aqui, mutatis mutandis, as considerações que tecemos a respeito do art. 153, § 30, 111, da CF (supra, subitem 6.3)” (g.n.)

No referido subitem 6.3[5], o Ilustre Professor leciona sobre a necessária interpretação teleológica, que ora estamos a aventar:

“O dispositivo consagra o princípio do destino (também chamado princípio do país do destino), que regula, no que tange aos tributos que a Economia rotula indiretos, as operações internacionais de bens e serviços. (…) Temos para nós que este benefício alcança não apenas os exportadores de produtos industrializados, senão, também, todos quantos contribuem para que a exportação se verifique.

Parece óbvio que a imunidade em pauta visa proteger não a pessoa do exportador, mas as exportações de produtos industrializados (manufaturados), fazendo com que cheguem ao mercado internacional com preços competitivos.

Realmente, a interpretação teleológica do art. 153, § 3, IlI, da CF leva-nos à irretorquível conclusão de que a imunidade nele prevista há de obrigatoriamente abranger todas as operações que, de algum modo, concorram para que se perfaça a venda, para o exterior, de produtos industrializados. Se assim é, como não podemos duvidar, temos que admitir que os que, de algum modo, tornaram possível a exportação do produto industrializado (por exemplo, fornecendo seus componentes) têm jus ao benefício. (…) Assim, o contribuinte que comprovar que o produto industrializado com o qual está praticando a operação jurídica irá, a final, para o exterior tem o direito subjetivo de não pagar o imposto específico.” (g.n.)

Nesse sentido, entende-se que a norma imunizante em apreço tem aptidão de desonerar toda e qualquer operação com a mercadoria a exportar e com seus componentes, já que independe da qualidade do contribuinte (exportador ou não), ao se tratar de imunidade objetiva.

Sobre tal enfoque, citamos as também festejadas lições do Ilustre Professor Paulo de Barros Carvalho[6], ao ponderar sobre imunidade tributária em matéria de exportações:

“Assim, é irrelevante, para fins de imunidade, saber se a operação de exportação é conduzida com ou sem a participação negociaI de intermediário, isto é, se é da espécie direta ou indireta.

Para que seja imune, basta que, desde a realização da operação interna, já esteja assente a finalidade de levar aquela mercadoria ao exterior, atributo que pode ser provado, dentre outros elementos, pelo objeto social da trading company.

Como fiz questão de notar, trata-se de caso típico de imunidade objetiva e, portanto, não são imunes as empresas exportadoras, mas as receitas decorrentes das operações de exportação, motivo pelo qual os valores a elas correspondentes devem ser deduzidos das bases de cálculo de quaisquer contribuições sociais ou interventivas. (…)” (g.n.)

Ora, diante dessas premissas doutrinárias, qual o propósito de se exigir imposto sobre insumo e, ao cabo, conferir ao exportador direito a “crédito acumulado”, nas hipóteses em que possível conceber antecipadamente que tal insumo comporá a mercadoria a ser exportada?  

É paradoxal imaginar que se está atingindo o anseio constitucional — de desonerar a mercadoria nacional — tão somente conferindo ao exportador “crédito acumulado”, principalmente ao concebermos o quão ilíquidos são tais “créditos” ou, quando muito, o quão tortuosa é via pra que possam ser aproveitados.

Ademais, embora o relator do leading case, Min. Dias Toffoli, tenha proposto tese jurídica a partir da “expressão literal do enunciado normativo”, a mencionada interpretação teleológica há muito tem sido parâmetro do STF em matéria de imunidade tributária. Cita-se nesse sentido julgado perante o Plenário, de relatoria do então Min. Sepúlveda Pertence, nos autos do RE 237.718 (2001):

“Não obstante, estou em que o entendimento do acórdão – conforme ao do precedente anterior à Constituição – é o que se afina melhor à linha da jurisprudência do Tribunal nos últimos tempos, decisivamente inclinada à interpretação teleológica das normas de imunidade tributária, de modo a maximizar-lhes o potencial de efetividade, como garantia ou estímulo à concretização dos valores constitucionais que inspiram limitações ao poder de tributar.” (g.n.)

Não se está a dizer que, em matéria de imunidade tributária, o STF já não tenha adotado interpretação literal ou mesmo restritiva. O que se afirma é que, mesmo concluindo por, digamos, abrandar o alcance da norma constitucional, a análise sempre partiu da exegese teleológica. Para ilustrar esse animus judicante que o STF desempenha com as imunidades tributárias, cita-se passagem do acórdão do RE 474.132, no qual o ministro relator, Gilmar Mendes, fez constar:

“Não obstante o fato de que, em alguns julgados, este Supremo Tribunal Federal tenha adotado uma interpretação ampliativa das imunidades, de modo a abarcar fatos, situações ou objetos a priori não abrangidos pela expressão literal do enunciado normativo, e, em outros, tenha excluído da regra desonerativa algumas hipóteses fáticas, por intermédio de uma interpretação que se poderia denominar de restritiva, é indubitável que, em todas essas decisões, a Corte sempre se ateve às finalidades constitucionais às quais estão vinculadas as mencionadas regras de imunidade tributária. Tanto para ampliar o alcance da norma quanto para restringi-lo, o Tribunal sempre adotou uma interpretação teleológica do enunciado normativo.” (g.n.)

Reforçando o fato de que a Suprema Corte, por princípio, sempre perpassa a interpretação teleológica em matéria de imunidade tributária, visando justamente que seus pronunciamentos reflitam efeitos finalísticos, cita-se julgamento do RE 759.244 (2020), de relatoria do ministro Edson Fachin, que enfrentou a imunidade tributária nas exportações (Tema 674 – art. 149, §2º, I, da CF/88). Em substancioso voto, o Min. Edson Fachin, após percorrer desdobramentos históricos atinentes às imunidades tributárias de diferentes Constituições Federais, externou que:

“Conforme assentei como premissa de raciocínio, a desoneração dos tributos que influa no preço de bens e serviços deve estruturar-se em formato direcionado à garantia do objeto, de modo que restrições à fruição do regime de imunidade tributária são relativizáveis em relação à finalidade das exonerações constitucionais e ao esforço exportador do potencial contribuinte.” (g.n.)

Nesse mesmo julgamento, o ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator, ponderando interessante viés de ordem prática, que muito se assemelha à imunidade do ICMS ora abordada:

“Não há dúvida de que, ao se tributar uma parte do todo, ou seja, a operação interna, onera-se, em verdade, a exportação inteira, pois o tributo, inicialmente suportado pelo produtor/vendedor, será repassado e, fatalmente, exportado pelas empresas comerciais especializadas, contrariando nitidamente as finalidades perseguidas pela regra constitucional.” (g.n.)

Muito bem. Surge em alento ao cenário acima o fato de o Min. Marco Aurélio ter aberto divergência nos autos do leading case em análise, verbis:

“A teleologia da norma sinaliza o alcance da imunidade no tocante aos bens e serviços que integram o grande todo a ser exportado. Entendimento contrário implica favorecimento do exportador, e não das exportações propriamente ditas, deixando a imunidade de ser objetiva e esvaziando o dispositivo constitucional, no que voltado ao equilíbrio da balança comercial. (…) Descabe concluir pela incompatibilidade do preceito com o aproveitamento dos créditos decorrentes de operações anteriores. Estes últimos dizem respeito a tributo recolhido quando não visava, de início, a venda para o exterior. A consideração dos valores caracteriza incentivo às exportações.” (g.n.)

Pautado nessas premissas, seu voto propõe a seguinte tese jurídica:

“A imunidade prevista no artigo 155, § 2º, inciso X, alínea ‘a’, da Constituição Federal é abrangente, alcançando operações envolvendo componentes do produto destinado à exportação.”

A prevalência dessa tese se mostra apropriada não somente no contexto jurídico, por fazer valer interpretação que se alinha ao correspondente designo constitucional, mas — no mesmo grau de importância — por sanar um problema financeiro dos estados. De fato, a cobrança de ICMS sobre insumos que sabidamente integrarão mercadorias a exportar, muitas vezes, faz com que o estado de origem receba a receita de tal imposto, enquanto que o estado de destino (que não partilha dessa receita), onde ocorrerá a exportação, se vê obrigado a custear o “ideal” de desoneração da exportação, mediante atribuição de “crédito acumulado” ao exportador. Talvez seja esse um dos fatores de resistência dos estados saldarem “créditos acumulados” de exportadores.

Em suma, tem-se aí a preocupação com o resultado a ser atribuído ao leading case em análise, resultado que muito embora venha a solucionar algo muito pontual no atual Sistema Tributario Nacional, tem o condão de tornar a pretendida reforma tributária ainda mais urgente.


[1] In, “Incentivos fiscais às exportações: Desoneração da tributação indireta na cadeia exportadora e concorrência fiscal internacional”. RJ: 2018, p. 273.

[4] In, “Curso de direito constitucional tributário”. 22 ed. 2006, 773-774.

[5] Op., 770-771.

[6] Parecer apresentados nos autos do RE nº 759.244.

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