Opinião

Lei 14.022 é essencial para o combate à violência contra vulneráveis na Covid-19

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23 de julho de 2020, 16h14

No último dia 7, foi sancionada a Lei nº 14.022, que dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e violência contra crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência durante o período de vigência da Lei 13.979/2020, que estabelece medidas aplicáveis ao período da emergência de saúde pública decorrente da Covid-19.

Em bom tempo, trouxe medidas louváveis para um melhor enfrentamento da violência contra vulneráveis nesse peculiar momento que a sociedade tem vivenciado, quando as relações familiares têm se intensificado em razão da necessidade de permanência nas próprias casas para evitar a disseminação da doença.

Dados apontam que apenas no Estado de São Paulo houve um aumento de 44,9% da violência contra a mulher durante a pandemia [1]. Já no Rio de Janeiro, esse número aumentou em 10% [2], tendência que tem se repetido nos demais Estados brasileiros, o que levou o Ministério Público de São Paulo a editar uma nota técnica (Raio-X da violência doméstica durante o isolamento) fixando que "a casa é o lugar mais perigoso para uma mulher", já que "a maioria dos atos de violência e feminicídios acontece justamente em casa" [3].

Também as pessoas idosas têm sido vítimas de violência com maior frequência. De acordo com dados do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as denúncias quintuplicaram durante o período da pandemia, passando de três mil em março para 17 mil em maio [4].

No mesmo sentido, a organização não governamental World Vision prevê que a violência contra crianças ao redor de todo o mundo pode crescer 32% durante a pandemia [5]. Seguindo a mesma lógica, a pessoa com deficiência também se encontra no mesmo padrão das demais categorias vulneráveis.

Não se deve esquecer que existem altos índices de subnotificação de tais violências, até mesmo em razão da necessidade de se permanecer em casa e, ainda, pela suspensão (ainda que parcial) das atividades presenciais dos órgãos responsáveis pela prevenção e repressão dos crimes. Entretanto, é certo que esse aumento estatístico vertiginoso nada mais é do que um reflexo social que precisa ser adequadamente regulamentado pelo Estado.

Nesse quadrante, é sancionada a Lei nº 14.022/2020, trazendo importantes medidas de enfrentamento da violência contra tais segmentos sociais, fixando, ainda, que o poder público promoverá campanha informativa sobre prevenção à violência e acesso a mecanismos de denúncia, inclusive por meios eletrônicos.

Inicialmente, estabeleceram-se como essenciais os serviços públicos e atividades relacionadas ao atendimento à mulher em situação de violência doméstica, a crianças, a adolescentes, a pessoas idosas e a pessoas com deficiência, devendo assegurar o atendimento ágil a todas as demandas apresentadas, principalmente se significar risco de vida e a integridade dessas pessoas, com atuação focada na proteção integral da criança/adolescente e do idoso.

Como reflexo dessa medida, os processos que envolvam apreciação de matérias relativas a medidas protetivas passam a ser considerados de natureza urgente, devendo ser mantidos, sem qualquer suspensão.

No contexto em que nos encontramos, em que a maior parte da sociedade urbana encontra-se em suas casas e, inclusive, inserida em meios tecnológicos [6], possibilitou-se o registro da ocorrência de violência por meio eletrônico ou por número de telefone de emergência.

As próprias denúncias de violência recebidas na esfera federal pela Central do Ligue 180 e Disque 100 devem ser repassadas, com as informações de urgência, para os órgãos competentes, no prazo de 48 horas, salvo impedimento técnico.

Para além disso, os órgãos de segurança pública devem disponibilizar canais de comunicação que garantam interação simultânea, inclusive com possibilidade de compartilhamento de documentos, para atendimento virtual das situações regulamentadas pela lei.

Certamente, a novidade mais interessante se refere à possibilidade de realização de comunicação online das violências. A lei estabelece que, nos casos de violência doméstica e familiar, a ofendida poderá solicitar quaisquer medidas protetivas de urgência à autoridade competente por meio dos dispositivos de comunicação de atendimento online.

Também a autoridade competente poderá autorizar a medida eletronicamente, determinando-se, assim, por exemplo, o afastamento do agressor do lar, determinar a separação de corpos, encaminhar a vítima e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atenção, entre outros. Para tanto, a autoridade poderá considerar provas coletadas eletronicamente ou por meio audiovisual e, ainda, colher provas que exijam a presença física da vítima. As medidas protetivas deferidas serão automaticamente prorrogadas e vigorarão durante a declaração de estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional.

Após, independentemente da autorização da ofendida, deverá a autoridade competente comunicar ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, iniciando o inquérito policial correspondente. O juiz competente providenciará a intimação do ofensor, que poderá ser realizada por meios eletrônicos, cientificando-o da prorrogação da medida protetiva.

Embora haja omissão legal, tal determinação parece autorizar que as medidas de proteção previstas para as crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência sejam igualmente solicitadas por meio online e, eventualmente, já repassadas ao Ministério Público para que adote as medidas pertinentes, conforme previsão do artigo 45 do Estatuto do Idoso e do artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

De maneira criticável, a lei apenas trouxe uma faculdade na adoção de medidas de comunicação online pelos demais órgãos integrantes do sistema de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e demais órgãos do Poder Executivo).

Mas deve-se frisar que a disponibilização de canais de atendimento virtuais não exclui a obrigação do poder público de manter o atendimento presencial dessas vítimas.

Por isso, mesmo diante da viabilidade de registros de ocorrência por meio eletrônico, a lei também resguardou a manutenção do atendimento presencial, com adaptação do procedimento adequado à repressão das violências, principalmente no âmbito da Lei Maria da Penha. Apesar de não assentar de modo expresso, deve-se entender que os procedimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do idoso devem também ser adaptados nesse período de calamidade sanitária.

Na consecução dessa adaptação dos procedimentos, deve-se assegurar a continuidade do funcionamento habitual dos órgãos competentes à prevenção e repressão da violência e, mesmo durante este período, deverá ser garantida a realização prioritária do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher e violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência. Inclusive, no caso de crimes de natureza sexual, será possível se estabelecer equipes móveis para realização do exame de corpo de delito no local em que se encontrar a vítima.

Assim sendo, a Lei 14.022/2020 teve o relevante papel de regulamentar o funcionamento dos órgãos competentes para o trâmite de medidas que visem a conferir proteção específica para mulheres, crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, adaptando o procedimento das respectivas normas aplicáveis para deferir-lhes uma mais adequada proteção de seus direitos. Os principais pontos da lei se referem à possibilidade de solicitação e concessão de medidas protetivas por meios eletrônicos, prorrogação automática das medidas até o final da pandemia e, ainda, o estabelecimento da necessidade de realização de campanha informativa sobre tais questões.

Para além de atingir apenas as vítimas, os crimes previstos na lei atingem a sociedade como um todo, em seu núcleo central, que é justamente a família. Portanto, a adoção de medidas para prevenir e reprimir tais atos pelo poder público são essenciais para que tais violências cruéis não se perpetuem e que, com isso, finalmente tenhamos uma sociedade mais igualitária, justa e fraterna.

 


[1] Conforme relatório divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Informação disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-04/sp-violencia-contra-mulher-aumenta-449-durante-pandemia. Acesso em 8/7/2020.

[2] Conforme avaliação realizada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro. Informação disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-06/no-rio-crime-de-violencia-contra-mulher-aumentou-10-na-quarentena. Acesso em 8/7/2020.

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  • Brave

    é advogada especialista em Direito das famílias, sucessões e idoso, mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), presidente da Comissão de Adoção e do Idoso do IBDFAM-ES, diretora da Associação Brasileira de Advogados de Vitória (ABA-ES) e membro da International Society of Family Law.

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