Opinião

Considerações sobre direitos fundamentais estaduais e federalismo

Autor

  • Marcelo Labanca

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

23 de julho de 2020, 12h09

O tema dos direitos fundamentais vem recebendo uma considerável atenção da doutrina brasileira, principalmente após a Constituição de 1988. Pela primeira vez, a expressão "direitos fundamentais" constava de um texto constitucional. Houve um considerável esforço de pesquisadores brasileiros para fazer uma abordagem do tema de acordo com o novo tratamento constitucional. De fato, enquanto outras constituições brasileiras faziam a previsão de direitos após a disciplina orgânica (organização e funcionamento de poderes), a de 1988 fez diferente: previu um catálogo, logo no início, sob o nome de "Direitos Fundamentais".

Impressiona-me um pouco o fato de que, após tantos anos da promulgação da Constituição, os direitos fundamentais tenham recebido pouca atenção para uma análise a partir do plano subnacional de previsão e tutela. Vamos partir de alguns pressupostos:

a) De acordo com a cláusula de abertura constitucional do artigo 5º, $2º, os direitos fundamentais ali expressos não são exaurientes;

b) O próprio texto constitucional federal determinou que os Estados elaborassem as suas constituições (artigo 25 e artigo 11 do ADCT);

c) A ideia normalmente aceita sobre o papel de um texto constitucional é justamente o de contemplar a organização de Estado e poderes e previsão de direitos;

d) O artigo 24 da constituição de 1988 estabeleceu uma série de competências sobre direitos que podem ser objeto de legislação por parte dos Estados em conjunto com a União;

e) O artigo 25 da Constituição de 1988 estabeleceu competências remanescentes aos Estados, indicando que podem ir além do que está estipulado no plano federal.

A conjunção desses fatores traz a conclusão de que é possível, mesmo em um federalismo centralizado brasileiro, falar em direitos fundamentais estaduais. De fato, não é uma legislação que me parece ser exclusiva do Congresso Nacional.

A literatura estrangeira trabalha com tranquilidade com esse tema [1]. Os Estados Unidos possuem uma longa experiência em state Bill of rights. Mas há uma justificativa bem plausível para isso, que decorre do processo de construção da federação estadunidense: primeiro vieram as constituições estaduais. Apenas depois foi que sobreveio a constituição norte-americana. Assim, os estados que haviam já editado suas constituições antes da convenção de Filadélfia mantiveram seus textos constitucionais com cartas de direitos estaduais [2]. Já no Brasil, os estudos sobre direitos fundamentais normalmente se centram no plano da Constituição Federal e no máximo abrangem a discussão entre direitos humanos (no âmbito interamericano) e direitos fundamentais (no âmbito nacional). É preciso reposicionar esse debate e, para isso, é preciso repensar o federalismo e suas potencialidades.

Quando se fala em proteção de direitos, há muitos que pensam que essa proteção pode ser melhor conferida em um Estado forte e centralizado. Um certo preconceito e desconfiança com o plano estadual que ficaria mais sujeito ao coronelismo e acordos com entidades privadas para não proteção de direitos. A "federalização", portanto, é entendida como uma medida de fortalecimento do âmbito de proteção. De fato, o federalismo foi muito utilizado no passado como um meio de impedir a proteção de direitos "de cima pra baixo". Há casos clássicos julgados pela Corte dos Estados Unidos que bem demonstram isso. Cito aqui apenas um, para ilustrar: certa vez, uma lei federal proibiu o comércio interestadual de produtos que eram manufaturados a partir do trabalho de crianças. Esse caso é relatado por Bernard Shwartz [3] e data de 1918. A corte estadunidense entendeu que não poderia a União fazer tal proibição pois, a pretexto de legislar sobre comércio interestadual, estaria legislando sobre trabalho (matéria de competência dos Estados). Ocorre que os Estados se escondiam atrás de sua autonomia federativa para implementar um modelo não intervencionista na economia, preservando a autonomia da vontade privada.

Há, portanto, uma legítima preocupação em "conceder" ao plano estadual a competência na previsão e defesa de direitos. Mas isso apenas se justifica em um federalismo competitivo, dual. Na lógica de "ou um ou outro". Se a versão vigente do federalismo brasileiro é cooperativo, com competências inclusive compartilhadas, então essa preocupação é
dissipada, já que, nesse caso, todos poderão atuar na previsão e tutela de direitos. Não se pode, então, deixar de considerar as potencialidades dos Estados. Assim, a crítica é facilmente contornada se considerarmos a lógica do all together na identificação do melhor âmbito de proteção de direitos.

De fato, a implementação de um discurso federalista associado ao de previsão e tutela de direitos fundamentais vem ganhando força [4]. Nos Estados Unidos, a professora de Yale Heather Gerken se intitula uma progressista que acredita no federalismo. O chamado progressive federalism mostra uma capacidade de os Estados em defender direitos inclusive contra políticas erosivas do governo central (no caso, do governo Trump). Gerken utiliza a expressão "uncoperative federalism" para mostrar que, em um âmbito onde seria possível cooperar, a não cooperação pode ser vista como forma de resistência e de proteção de direitos. Portanto, se eventualmente em um campo de competências compartilhadas (como a saúde) a União vier a adotar procedimento incompatível com a proteção de direitos, os Estados podem não cooperar (uncooperative). Afinal, "progressives at the state and local level can influence policy simply by refusing to partner with the federal government" [5]. E mais: como afirma Gerken, poderia haver um "localismo não cooperativo", que é quando a resistência para a proteção de direitos ocorre no âmbito das cidades (veja-se o caso das "cidades santuários" nos Estados Unidos que prometeram não implementar as políticas de deportação do governo federal).

O caso brasileiro tem mostrado que o plano estadual pode, sim, ser fortalecido enquanto um espaço adequado de proteção de direitos fundamentais. O próprio argumento da excessiva centralização de recursos na União não pode ser mais utilizado para impedir processos descentralizadores para proteção de direitos que não geram custos, já que há direitos que dependem, realmente, de recursos (os prestacionais), mas há outros que independem (os não prestacionais). Estados podem, por exemplo, prever direitos de inclusão e proteção de minorias, igualdade de gênero e racial, apenas para exemplificar, sem que isso onere cofres públicos.

Várias constituições estaduais fazem previsão de direitos. A do Pará, por exemplo, veda qualquer tipo de discriminação por orientação sexual (artigo 3º). A do Rio de Janeiro prevê uma série de direitos dos presos e do sistema prisional, fazendo com que os atos de seu governador sejam sindicáveis à luz do texto constitucional estadual. A Constituição do Estado do Amapá previu iniciativa popular em emenda constitucional estadual (inaugurando modelo inexistente no plano federal) [6].

É claro que a previsão de direitos fundamentais nas Constituições estaduais deve ser algo construído a partir do sistema de repartição de competências federativas dos artigos 22, 24 e 25 da Constituição Federal de 1988. Não se pode deixar de reconhecer que o poder constituinte decorrente não é ilimitado e está condicionado às normas parâmetro do texto federal. Mas, uma interpretação desse jogo de repartição de competências termina conferindo aos Estados um importante papel na proteção de direitos fundamentais (como se viu recentemente no caso da adoção de medidas sanitárias durante a pandemia) [7]. Mas essa questão de direitos fundamentais e repartição de competências é tema para outro escrito.

O que não se pode, todavia, é negligenciar e, pior, obstaculizar essa abordagem estadual de direitos fundamentais sob o mantra tão repetido de que o federalismo brasileiro é excessivamente centralizado. Fazer isso é desconsiderar um importante papel que pode ser desempenhado por atores subnacionais na previsão e proteção de direitos fundamentais.

 


[1] Ver KATZ, Ellis & TARR, Alan. Federalism and Rights. Rowman & Littlefield Publishers, Inc., Maryland, 1996.

[2] The thirteen original states where fully functioning constitutional entities even before 1787. Delaware, Maryland, New Hampshire, New Jersey, North Carolina, Pennsylvania, South Carolina and Virginia all enacted constitutions in 1776. Georgia and New York wrote constitutions the following year, 1777 and Massachusetts adopted its famous constitution in 1780. Only Connecticut and Rhode Island continued to function under their old colonial charters until they replaced them which constitutions in 1818 and 1842, respectively (KATZ, Ellis. "The Complete American Constitution." In: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política – Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 5- n.º 19, abril-junho de 1997).

[3] SCHWARTZ, Bernard. SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano atual: uma visão contemporânea, Tradução de Elcio Cerqueira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984, p. 28.

[4] Ver SGARBOSSA, Luis Fernando & BITTENCOURT, Laura Cabrelli. Os 30 anos das constituições estaduais no brasil e os direitos fundamentais estaduais. In Revista do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania, Londrina, V. 4, n. 1, p. 90-116, Agosto 2019. Ver também SAMPAIO, José Adércio Leite. As constituições subnacionais e direitos fundamentais nas federações. In: Revista de Direito da Cidade, vol. 11, nº 1., PP. 183-215.

[5] Gerken Heather. “We’re about to see states’ rights used defensively against Trump”. Disponível em https://www.vox.com/the-big-idea/2016/12/12/13915990/federalism-trump-progressive-uncooperative . Consulta em 14 de julho de 2020.

[7] Ver ADPF 672, onde o Supremo Tribunal Federal legitimou a adoção de medidas sanitárias de enfrentamento à Covid-19 por parte de Estados e municípios.

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