Opinião

Os avanços e os retrocessos do novo Decreto nº 10.410/20

Autor

23 de julho de 2020, 15h01

O novo regulamento da Previdência Social, o Decreto nº 10.410/20, trouxe consigo uma série de alterações relevantes no fluxo do processo administrativo previdenciário e em alguns de seus institutos. A necessidade de alterações no regulamento se fez necessária para evitar incongruências, sobretudo em razão das mudanças consolidadas pela reforma da Previdência (EC nº 103/2019), no final do ano passado, bem como da Lei nº 150/2015 (Lei dos Trabalhadores Domésticos), da Lei nº 13.135/2015 e da Lei nº 13.846/2019.

A primeira alteração significativa no Regime Geral de Previdência Social se deu com a inserção do §8º no artigo 13, que trata sobre a manutenção e a perda da qualidade de segurado. O parágrafo incluído prevê que:

"§8º. O segurado que receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição somente manterá a qualidade de segurado se efetuar os ajustes de complementação, utilização e agrupamento a que se referem o § 1º do artigo 19-E e o § 27-A do artigo 216".

Esse dispositivo já incorporou uma mudança trazida desde a EC nº 103/2019, que já não admitia mais o recolhimento de empregados domésticos e trabalhadores avulsos abaixo do piso salarial de categoria ou do salário mínimo, na sua ausência.

A fim de regulamentar a alteração que já veio com a Lei nº 13.846/2019, passou a prever ainda o §6º-A do artigo 16 do decreto:

"§6º-A. As provas de união estável e de dependência econômica exigem início de prova material contemporânea dos fatos, produzido em período não superior aos vinte e quatro meses anteriores à data do óbito ou do recolhimento à prisão do segurado, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, observado o disposto no § 2º do artigo 143."

No que tange ao limite de 24 meses, há grandes críticas que podem vir a ensejar judicialização pelo desnecessário marco temporal. Basta imaginar a situação de um casal que, quando do falecimento do segurado tinha filhos com idades de oito e cinco anos. Pela literalidade da lei, a certidão de nascimento das crianças, por exemplo, sequer poderia ser considerada início razoável de prova material da existência de união estável ou dependência econômica do casal.

Também o §1º do artigo 19-C trouxe uma nova redação sobre o que dispunha o revogado artigo 60:

"§1º. Será computado o tempo intercalado de recebimento de benefício por incapacidade, na forma do disposto no inciso II do caput do artigo 55 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, exceto para efeito de carência".

Convém ressaltar a existência nesse sentido da Portaria Conjunta nº 12, de 19 de maio de 2020, do INSS, que decorreu da Ação Civil Pública nº 0216249-77.2017.4.02.5101/RJ, determinando à autarquia que computasse, para fins de carência, o período em gozo de benefício por incapacidade não acidentário intercalado e o período em gozo de benefício por incapacidade acidentário, intercalado ou não.

Considerando, no entanto, a nova redação do decreto, entende-se que a contagem do tempo em gozo de benefício acidentário para fins de tempo de contribuição exigirá a existência de recolhimento intercalado que, diante do princípio tempus regit actum, poderá ser exigido apenas a partir do dia seguinte à publicação do decreto, produzindo assim seus efeitos a partir do dia 1º de julho. Muito embora desfavorável ao segurado, há que se reconhecer que o decreto veio no mesmo sentido da interpretação literal do artigo 55, II, da Lei nº 8213/91 que não excepciona o tempo intercalado para benefícios acidentários.

Ainda dentro do mesmo artigo 19-C, o §2º certamente trará grandes discussões, na medida em que trouxe à tona novamente a discussão sobre o "tempo ficto", que a princípio seria vedado diante do caráter contributivo do Regime Geral da Previdência Social (caput do artigo 201 da CF):

"§ 2º. As competências em que o salário de contribuição mensal tenha sido igual ou superior ao limite mínimo serão computadas integralmente como tempo de contribuição, independentemente da quantidade de dias trabalhados".

A redação do parágrafo acima se traduz, assim, na possibilidade de que um cidadão que durante o mês trabalhe apenas 15 dias porque, por exemplo, faltou nos demais sem justificativa, caso venha a receber salário proporcional aos dias trabalhados e este seja superior ao piso legal da categoria ou, na sua ausência, superior ao salário mínimo, terá contado o mês inteiro para fins de tempo de contribuição. Trata-se de inovação regulamentar que a vista de alguns pode vir a ser considerada extrapolação do poder regulamentar que é conferido a um decreto.

Ainda vedando a filiação post mortem, o texto legal do §7º do artigo 19-E trouxe, sem dúvidas, um enorme avanço na proteção social previdenciária no que se refere à possibilidade de os dependentes complementarem as competências do falecido segurado que, por ocasião de sua morte, não tinha qualidade de segurado porque, por exemplo, era trabalhador intermitente e possuía recolhimento inferior ao salário mínimo.

"§7º. Na hipótese de falecimento do segurado, os ajustes previstos no § 1º poderão ser solicitados por seus dependentes para fins de reconhecimento de direito para benefício a eles devidos até o dia quinze do mês de janeiro subsequente ao do ano civil correspondente, observado o disposto no §4º".

Nesse caso, os dependentes poderão até o 15º dia do mês de janeiro do ano subsequente ao falecimento do segurado realizar a complementação da competência para que possam pleitear a pensão por morte. Muito embora a redação do dispositivo não tenha tratado da hipótese do segurado que se torna inválido ou resta afastado temporariamente gozando de benefício, por força da aplicação do próprio princípio hermenêutico ubi eadem ratio ibi idem jus (onde há o mesmo fundamento, há o mesmo direito), cabe questionar se seria possível pensar também nessa possibilidade por analogia.

Na contramão do que dispõe a Súmula n° 998 do STJ [1], o novo parágrafo único do artigo 65 do decreto estabelece, a partir de 1º de julho, que não se considera mais especial o tempo em gozo de benefício por incapacidade de natureza acidentária.

"Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput aos períodos de descanso determinados pela legislação trabalhista, inclusive ao período de férias, e aos de percepção de salário-maternidade, desde que, à data do afastamento, o segurado estivesse exposto aos fatores de risco de que trata o artigo 68".

Referida conclusão resta extremamente desfavorável ao segurado que exercendo atividade especial, por razão da incapacidade, se vê obrigado a se afastar das atividades laborais nocivas  que continuaria a exercer caso não precisasse se afastar  e, no entanto, não pode mais ter esse interregno reconhecido como especial. Se a lógica da própria aposentadoria especial era a prevenção do risco à saúde e integridade física do trabalhador, afastando o trabalhador dos riscos, o decreto, por outro lado, por meio desse dispositivo parece apenas se preocupar com o caráter compensatório do tempo especial: apenas se comprovada efetiva exposição ao agente nocivo, nos termos do que requer a Lei nº 9.032/95, é que se poderia reconhecer o labor como especial.

O §4º do artigo 68, por sua vez, trouxe enorme retrocesso no que se refere à exposição a agentes nocivos comprovadamente cancerígenos, para os quais inclusive há diversos estudos científicos comprovando que não existe equipamento capaz de elidir a nocividade:

'§4º. Os agentes reconhecidamente cancerígenos para humanos, listados pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, serão avaliados em conformidade com o disposto nos § 2º e § 3º deste artigo e no caput do artigo 64 e, caso sejam adotadas as medidas de controle previstas na legislação trabalhista que eliminem a nocividade, será descaracterizada a efetiva exposição".

De acordo com o que previa o §4º do artigo 67 do Decreto n° 8.123/2013, havia o entendimento de que a mera presença, no ambiente de trabalho, de agentes cancerígenos era suficiente para comprovar a efetiva nocividade a que o trabalhador estava exposto, sendo inclusive reforçada pelo entendimento administrativo contido no Memorando-Circular Conjunto nº 2/DIRSAT/INSS, segundo o qual:

"Após a alteração do Decreto 3.048/99 pelo Decreto 8.123/13, em seu artigo 68, §4º e a publicação da Portaria Interministerial nº 09, de 07/10/2014, a Diretoria de Saúde do Trabalhador orienta:

a) Serão considerados agentes reconhecidamente cancerígenos aqueles do Grupo 1 da lista da LINACH que possuam o Chemical Abstracts Service – CAS.;

 b) Dentre os agentes listados no Grupo 1, serão considerados os que constem no Anexo IV do Decreto 3048/99;

c) A presença no ambiente de trabalho com possibilidade de exposição aos agentes comprovadamente cancerígenos será suficiente para comprovação da efetiva exposição do trabalhador;

d) A avaliação da exposição aos agentes nocivos comprovadamente cancerígenos será apurada na forma qualitativa;

 e) A utilização de EPC e/ou EPI não elide a exposição aos agentes comprovadamente cancerígenos, ainda que considerados eficazes"

A partir do Decreto nº 10.410/20, no entanto, passa-se a admitir a existência de EPI eficaz para agentes cancerígenos, afetando essa presunção de nocividade, o que vai na contramão da realidade brasileira em que, para ser considerado de fato eficaz, um EPI exige manutenção adequada, orientação quanto ao uso correto, trocas periódicas, certificado de aprovação e uma série de outros requisitos dispostos na NR-06.

O §4º do artigo 142, que dispõe sobre o procedimento da JA (justificação administrativa), certamente será objeto de judicialização, na medida em que dispõe sobre a impossibilidade de a prova material acostado ao processo administrativo ser utilizada para outras pessoas.

"§4º. A prova material somente terá validade para a pessoa referida no documento, vedada a sua utilização por outras pessoas".

Trata-se de retrocesso que afronta a própria jurisprudência dos tribunais superiores que, de forma acertada, entendem pela possibilidade de, sobretudo em se tratando de prova de período rural ou regime de economia familiar, os membros da família utilizarem provas materiais comuns entre si, dada a incontroversa dificuldade de se exigir documentos apenas em nome do segurado.

O artigo 181-D, por outro lado, compreende verdadeira positivação da regra do "melhor benefício", incorporando parcialmente o entendimento do Supremo Tribunal Federal no RE nº 630.501/RS, decisão em que se entendeu que entre a data de implemento dos requisitos e a data de entrada de requerimento (DER) a renda deveria ser apurada mês a mês a fim que fosse aplicada a maior entre elas.

"Artigo 181-D. Se mais vantajoso, fica assegurado o direito à aposentadoria, nas condições legalmente previstas na data do cumprimento de todos os requisitos ao segurado que tiver optado por permanecer em atividade.

§ 1º. Para fins do disposto no caput, o valor inicial da aposentadoria, apurado conforme as regras vigentes na data em que todos os requisitos tiverem sido cumpridos, será comparado com o valor da aposentadoria calculada na data de entrada do requerimento, hipótese em que será mantido o benefício mais vantajoso e será considerada como data de início do benefício a data de entrada do requerimento, observado o disposto no artigo 52".

O direito ao "melhor benefício" já vinha sendo tratado pelo INSS no artigo 687 da IN nº 77/2015, conforme se observa, porém, o decreto incorpora "parcialmente" a tese da jurisprudência, na medida em que dispõe que se comparam apenas as rendas da data do direito adquirido e da DER, excluindo-se as rendas intermediárias entre ambos.

Grande inovação trazida com o artigo 352 foi a previsão das súmulas administrativas de caráter vinculante no INSS, que incorporam a previsão do próprio artigo 30 da LINDB dispondo sobre a possibilidade de criação de súmulas administrativas para fins de conferir maior segurança jurídica à atuação das autoridades públicas.

É possível concluir assim, que o recente Decreto nº 10.410 inovou significativamente em diversas previsões normativas, trazendo dispositivos que avançam na proteção social do segurado e seus dependentes. Por outro lado, em outros dispositivos, extrapolou seu próprio poder regulamentar, criando regras que deveriam ser trazidas por lei em sentido estrito e que, possivelmente, por essa razão serão alvo de grande judicialização desde que começaram a surtir efeitos jurídicos.

 


[1] O segurado que exerce atividades em condições especiais, quando em gozo de auxílio-doença, seja acidentário ou previdenciário, faz jus ao cômputo desse mesmo período como tempo de serviço especial.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!