Opinião

O 'caso Otoni de Paula': a imunidade parlamentar em jogo

Autor

  • Jonathan de Mello Rodrigues Mariano

    é procurador federal professor convidado de pós-graduação da Universidade Vale do Rio Doce (Univale) em Governador Valadares (MG) mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) mestrando em Direito da Cidade pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) especialista em Direito Administrativo Econômica pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

23 de julho de 2020, 18h02

Veiculou-se dias atrás que a Procuradoria-Geral da República denunciou o deputado federal Otoni de Paula (PSC-RJ) pela suposta prática de crimes contra a honra (difamação e injúria) e de ameaça perpetrados contra o ministro Alexandre de Moraes [1]. Segundo consta da notícia da imprensa, a prática ocorreu quando da realização de duas lives (transmissões ao vivo) no Facebook, nos dias 16 de junho e 5 de julho.

Há de se relembrar, de início, que deputados e senadores, em virtude do artigo 53 da CF/88, gozam da imunidade parlamentar material, consistente na impossibilidade de serem penalizados nas esferas penal e cível, por quaisquer opiniões, palavras e votos. O que está em jogo, com essa denúncia, portanto, é saber até que ponto palavras, opiniões e votos de parlamentares estão acobertados pela imunidade parlamentar material.

A análise dos fatos focar-se-á na imunidade parlamentar, sem se adentrar sobre os aspectos criminais do caso. E mais. As reflexões aqui não são uma defesa da postura do parlamentar, mas, sim, uma avaliação jurídica transcendente às inclinações político-ideológicas, assim como não representam qualquer posição institucional do órgão a que se vincula o articulista.

Pois bem. De acordo com a jurisprudência do STF, a imunidade material tem, por ora [2], regime jurídico distinto a depender do aspecto espacial em que proferidas as manifestações parlamentares: I) dentro da Casa Legislativa; ou II) fora dela. No primeiro caso, a imunidade material é absoluta; na segunda hipótese, somente incidirá quando se relacionar com o "exercício do mandato".

A expressão "no exercício do mandato" foi fixada, em sede de repercussão geral (RE 600.063/SP [3]), no sentido de que se deve prestigiar as diferentes vertentes da atuação parlamentar, dentre as quais se destaca a fiscalização dos outros poderes e o debate político.

Por esse motivo e considerando que os vídeos do deputado federal Otoni de Paula foram realizados fora do recinto da Câmara dos Deputados, resta investigar, por essencial, o contexto das manifestações, a fim de relacioná-las com o exercício do mandato, ou não.

No vídeo do dia 16 de junho [4] o parlamentar em questão, em resumo, reage contra a decisão de quebra de sigilo bancário deferida pelo ministro Alexandre de Moraes em inquérito que investiga o financiamento de atos antidemocráticos de pequena parcela da população brasileira. Nesse inquérito, aparentemente, o deputado Otoni de Paula é investigado.

Por outro lado, no vídeo de 5 de julho [5] o parlamentar federal tece, em suma, críticas à decisão proferida também pelo ministro Alexandre de Moraes, no âmbito do inquérito que investiga os referidos atos antidemocráticos, que, ao determinar a soltura do blogueiro Oswaldo Eustáquio, impôs medidas cautelares diversas da prisão, entre elas, a impossibilidade de utilização de redes sociais.

O pano de fundo dos casos, embora pareça o mesmo (crítica à decisão judicial proferida por autoridade judiciária pelo exercício de seu munus público), não é idêntico. Isso porque a verborragia exagerada e supostamente criminosa, no primeiro vídeo, é uma insurgência pela devassa do sigilo fiscal para a elucidação do objeto do inquérito.

De outro giro, no segundo vídeo, o que há verdadeiramente é a crítica continuada do parlamentar como se percebe de diversos vídeos em sua rede social contra investigações no âmbito da Suprema Corte que atentam, de acordo com a sua, contra os direitos fundamentais garantidos na CF/88.

Por isso, a conclusão em ambas as situações não pode ser a mesma.

Com efeito, tem-se que as palavras de baixo calão e os ataques à honra do ministro Alexandre de Moraes, no primeiro vídeo, não possuem, a priori, pertinência com o exercício do mandato, nem mesmo relação com o debate político, uma vez que nenhum elemento constitucional essencial ou questão elementar da sociedade foi considerada.

O que ocorreu, a bem da verdade, no primeiro vídeo, foi um inconformismo pessoal por ser o parlamentar objeto de investigação penal, sob a justificativa de atacar a sua vertente político-ideológica.

Porém, no segundo vídeo, há de se considerar que o pano de fundo real das manifestações pesadas, apaixonadas, desnecessárias e desonrosas tem ligação estreita com a crítica ferrenha do deputado a investigações em trâmite no STF, que, segundo ele, violam os direitos fundamentais à liberdade de expressão [6] e à liberdade de manifestação.

Dessa maneira, os xingamentos e demais ataques verbais à imagem do ministro Alexandre de Moraes, no segundo vídeo, têm relação com o debate político nacional acerca da validade de inquéritos que investigam o exercício de garantias fundamentais por determinado setor da político-ideológico da sociedade, motivo por que se inserem dentro da noção de exercício do mandato parlamentar. Pois, além de possuir conteúdo derivado do debate político em como se interpretar a CF/88, também objetiva concretizar a função parlamentar de fiscalização, cujo controle recai sobre a função jurisdicional do STF na condução de investigações sigilosas.

Frise-se, por oportuno, que, tanto no primeiro quanto no segundo vídeo as palavras odiosas contra o ministro Alexandre de Moraes são reprováveis, sobretudo por visarem denegrir o exercício da judicatura por membro da Suprema Corte brasileira.

Por isso, tais fatos revelam a falta de decoro do parlamentar ante a falta de postura fidedigna que se espera daqueles que exercem cargo político na representação da população, havendo, em tese, abuso no gozo da prerrogativa da imunidade parlamentar material (artigo 4º, inciso I, do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados).

Logo, o caso em questão demonstra que a acusação da PGR é, sob a ótica da imunidade parlamentar material (artigo 53 da CF/88), válida em parte, já que só, no primeiro vídeo, as manifestações não se relacionam com o mandato.

De toda maneira, em ambos os vídeos, é viável que o parlamentar seja processado perante a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, por serem as manifestações proferidas contrárias ao decoro dos congressistas.

 


[2] O termo em questão no sentido de ser uma posição temporária ocorre, pois o STF tem se inclinado pela necessidade de que, independentemente da questão espacial, se considerar a imunidade parlamentar apenas quando tiver relação com o mandato. Nesse sentido, ver os seguintes precedentes Pet 5.243/DF e Inq 3.932/DF, ambos relatados pelo Min. Luiz Fux.

[3] Apesar de o caso ter versado sobre a imunidade material de vereador, a tese do precedente pode ser estendida a deputados e a senadores, uma vez que a imunidade parlamentar material destes últimos é mais abrangente do que a dos mandatários municipais.

[6] Não se está aqui a dizer especificamente que os fatos investigados pelo inquérito das fake news estão acobertados, ou não, pela liberdade de expressão. A utilização da afirmação do deputado Otoni de Paula apenas tem por escopo apontar se o aludido inquérito tem relação com o embate político, instaurado na sociedade, acerca da validade, ou não, das investigações.

Autores

  • Brave

    é procurador federal, professor convidado da pós-graduação da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), em Governador Valadares (MG), mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), mestrando em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), especialista em Direito Administrativo Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!