Opinião

Conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva é ranço inquisitório

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23 de julho de 2020, 14h18

Em recente decisão liminar, julgada no último dia 17, nos autos HC 186.421/SC, o ministro da Suprema Corte Celso de Mello entendeu incabível que um juiz converta de ofício a prisão em flagrante em preventiva.

No mesmo sentido, decidiu o ministro do STJ Ribeiro Dantas, nos autos do HC 590.039/GO, em 23 de junho. Na ocasião, levantou a necessidade de uma nova reflexão do Tema 10 da Edição nº 120 da Jurisprudência em Tese, que foi firmado antes do advento da Lei 13.964/19 e registra a possibilidade de conversão, de ofício, da prisão em flagrante em preventiva, desde que presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis.

As decisões acima referidas, embora evidenciem uma salutar inflexão do entendimento então consolidado a respeito do artigo 311 do CPP [1], alterado pelo pacote "anticrime", ainda não refletem, no entanto, a jurisprudência de diversos tribunais brasileiros, inclusive das cortes superiores. Cita-se, a título de exemplo, as seguintes decisões em sentido contrário: HC 174102/RS, julgado pela 1ª Turma do STF em 18/2/2020, e do RHC 120281, relatado também pelo ministro Ribeiro Dantas e julgado pela 5ª Turma em 5/5/2020.

O ponto fulcral da controvérsia pode ser sintetizado em um questionamento: quando da convalidação judicial da prisão em flagrante, pode o juiz, de ofício, decretar uma prisão preventiva? Dito de outro modo: se não houver representação da autoridade policial ou requerimento do representante do Ministério Público, o juiz pode, após conclusão da legalidade da prisão em flagrante, decretar a prisão preventiva? A temática é de suma importância, pois influencia na dialética entre o ius puniendi estatal e o ius libertatis do imputado.

Em que pese as audiências de custódia estejam temporariamente suspensas na maioria dos Estados brasileiros em razão da pandemia, os juízes continuam com a obrigação de analisar os autos de prisões em flagrante, e, somente após a manifestação da acusação e defesa [2], devem tomar uma das seguintes decisões: 1) relaxamento da prisão ilegal; 2) concessão de liberdade provisória, cumuladas ou não com medidas cautelares diversas da prisão; e 3) conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva.

Finca-se, a princípio, que, substancialmente, inexiste diferença entre a prisão preventiva precedida de liberdade ou decorrente de conversão da prisão em flagrante. De acordo com os ditames constitucionais e legais vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, o juiz não pode, em nenhuma fase da persecução penal, decretar prisão preventiva ou qualquer medida cautelar de ofício.

A Carta Magna (artigo 129, I, da CF) estabelece que o Ministério Público é o titular da ação penal pública, o que nos autoriza concluir que o processo penal deve ser parametrizado pelo sistema acusatório. Essencial, desta feita, que acusação e órgão julgador exerçam as inconfundíveis funções que lhe foram constitucionalmente determinadas.

A opção constitucional pelo sistema acusatório foi ratificada pela Lei n° 13.964/19 (pacote "anticrime") ao inserir o artigo 3°-A no Código de Processo Penal (cuja vigência encontra-se suspensa, em razão de decisão cautelar do ministro Luiz Fux, proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6298, 6299, 6300 e 6305).

Entende-se, em um processo penal parametrizado pelo modelo acusatório, como bastante positivas as mudanças operadas nos artigos 282, §2° [3], 311 e 316 [4], todos do CPP, com a redação dada pela Lei nº 13964/19, que vedam a decretação de ofício da prisão preventiva, bem como das medidas cautelares diversas da prisão. São, pois, expressos em estabelecer que tais medidas restritivas de direito precisam de requerimento das partes para serem implementadas.

A razão de ser das modificações retromencionadas é a substituição, no sistema processual penal brasileiro, da figura do juiz protagonista pelo juiz espectador, e, desta feita, assegurar-se a imparcialidade do magistrado. A partir do momento em que o Estado avocou para si a função jurisdicional, é inerente ao exercício dessa função que ela seja exercida por alguém que não tenha interesse subjetivo, ainda que de forma inconsciente, na solução da causa.

A teoria da dissonância cognitiva [5] explica que, quando um magistrado decreta uma prisão preventiva de ofício, sua postura ativa contamina, muitas vezes involuntariamente, suas posteriores decisões no curso do processo. A imparcialidade do magistrado, princípio supremo do processo, resta maculada se lhe for facultada a possibilidade de iniciativa acusatória e probatória no transcorrer da persecução penal.

Nesse sentido, são as palavras do ministro de Celso de Mello na referida decisão liminar no HC 186.421/SC: "Destoa das funções do magistrado exercer qualquer atividade de ofício que possa caracterizar uma colaboração à acusação". Qualquer postura judicial que configure reforço à atuação do Ministério Público viola a paridade de armas entre as partes [6].

A discussão já era ventilada antes mesmo da edição do pacote "anticrime", ocasião em que era vedada a decretação de ofício da prisão preventiva apenas na fase investigatória, mas acreditava-se, equivocadamente, que seria superada com a proibição expressa, estendida para a toda a persecução penal.

Ainda existem vozes a sustentar que o juiz pode converter o flagrante em preventiva, mesmo que defesa e acusação pleiteiem a concessão de liberdade provisória. Para fundamentar essa possibilidade, alega-se que o magistrado não estaria decidindo de ofício, mas, sim, mediante provocação, configurada pelo recebimento do auto de prisão em flagrante. Sustenta-se ainda essa decisão judicial encontra guarida no regramento do artigo 310, II, do CPP.

Entendemos que essa prática judicial configura burla ao sistema acusatório. A bem da verdade, a autoridade policial remete o auto de prisão em flagrante ao juiz em razão do regramento constitucional de que toda prisão deve ser imediatamente comunicada à autoridade judiciária competente. O mero cumprimento das atribuições do delegado não pode ser interpretado como representação apta a provocar uma decisão de segregação cautelar, mormente quando as partes (acusação e defesa) se manifestam expressamente pela concessão de liberdade provisória.

Ademais, reproduzimos outro fundamento da decisão do ministro Celso de Mello, nos autos do HC 186.421/SC: "Com efeito, a interpretação do artigo 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos artigos 282, § 2º, e 311, também do mesmo estatuto processual penal, a significar que se tornou inviável a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP".

É preciso fincar, noutro norte, que o juiz pode, de ofício, revogar ou substituir a prisão preventiva por outras medidas cautelares. Se a lei passou a exigir do magistrado prévia provocação para decretar, significa dizer que ele já foi provocado e logo adiante poderia revogar ou substituir por medida menos gravosa. Ademais, é cediço que o magistrado pode conceder uma ordem de Habeas Corpus de ofício. Por fim, nunca é demais lembrar que salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado é uma das missões do processo penal.

O pacote "anticrime" consolidou a opção constitucional pelo sistema acusatório no processo penal brasileiro e, por conseguinte, trouxe, dentre tantas mudanças significativas, a vedação de que o juiz decrete, de ofício, prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar. Mas, no cotidiano da Justiça Penal, apesar da diretriz constitucional e de todo o arcabouço teórico que subsidia a temática, ainda é usual que juízes decretem prisão preventiva sem pedido prévio do Estado acusador.

Converter de ofício a prisão em flagrante em preventiva mesmo quando acusação e defesa entendem que, naquele momento processual, inexiste periculum libertais apto a autorizar uma segregação cautelar configura, todavia, verdadeiro ranço inquisitório.

O processo penal de um país reflete o posicionamento autoritário ou democrático de sua Magna Carta [7], vale dizer, haverá um processo penal autoritário [8] em correspondência a uma Constituição autoritária e um processo penal democrático como resposta a uma Constituição democrática. Dado o caráter democrático da Constituição Brasileira vigente, devemos lutar pela efetivação de um processo penal democrático, o que somente é possível com a efetiva adoção do sistema acusatório.

 

Referências bibliográficas
ARRUDA, Ígor Araújo de. "A defensoria pública no enfrentamento do autoritarismo estrutural". Disponível em
https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/tribuna-defensoria-defensoria-publica-enfrentamento-autoritarismo-estrutural, acesso em: 18/7/2020.

CARVALHO, Rômulo Luiz Veloso de. "A suspensão das audiências de custódia e o acerto do CNJ em relação ao TJ-MG". Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jul-18/romulo-carvalho-acerto-cnj-relacao-tj-mg, acesso em: 18/7/2020.

COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020.

 


[1] "Artigo 311  Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)".

[2] Sobre a necessidade do prévio contraditório, vide CARVALHO, Rômulo Luiz Veloso de. A suspensão das audiências de custódia e o acerto do CNJ em relação ao TJ-MG. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jul-18/romulo-carvalho-acerto-cnj-relacao-tj-mg, acesso em: 18/7/2020.

 [1] §2º. As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019).

[4] "Artigo 316  O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem"  (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019).

[5] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 71-74.

[6] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020, p.321.

[7] COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 54.

[8] Sobre processo penal autoritário, vide ARRUDA, Ígor Araújo de. "A defensoria pública no enfrentamento do autoritarismo estrutural". Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/tribuna-defensoria-defensoria-publica-enfrentamento-autoritarismo-estrutural, acesso em: 18/7/2020.

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