Opinião

Prescrição do ressarcimento de danos ao poder público e o embate entre STF e TCU

Autores

22 de julho de 2020, 6h02

A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal indica a existência de um esforço da corte agora em 2020, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 636.886 (Tema nº 899), no sentido de superar, de modo definitivo, sua própria jurisprudência, que, em 2008, afirmava a imprescritibilidade do ressarcimento baseado em decisão do Tribunal de Contas da União.

À época, no julgamento do MS nº 26.210, o STF decidiu pela imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento de danos em favor da Administração Pública baseada em decisão do TCU, ficando vencido o ministro Marco Aurélio. Agora, o RE nº 636.886 é, portanto, uma expressa rejeição desse precedente, na medida em que afirma a tese da prescritibilidade dos ressarcimentos cujo fundamento seja condenação em processo de tomada de contas do TCU.

Essa situação de superação ou evolução da orientação jurisprudencial consolidada do STF pode ser explicada, muito mais como analogia do que propriamente como uma aplicação rigorosa da construção intelectual, pela teoria das mudanças revolucionárias de paradigma de Thomas Kuhn.

Segundo o autor, diferentemente do que se costuma supor, as transformações científicas não se dão por meio de acumulações orgânicas e graduais. Kuhn mostra que [1], na verdade, o que ocorre não é uma expansão orgânica, mas um processo marcado por saltos, que ele chama revoluções científicas. O desenvolvimento científico, tal como preconizado por Kuhn, ocorre dentro de um círculo de consciência formado por crenças, expectativas, concepções gerais etc. Ao conjunto desses elementos Thomas Kuhn dá o nome de paradigma.

Embora essa ideia de avanços por meio de cortes abruptos seja discutível na alteração de jurisprudência, é possível entender, utilizando-se das noções desenvolvidas por Kuhn, que, até este ano de 2020, como visto, o paradigma, em sede de processo de tomada de contas junto ao TCU, era, com alguns ataques doutrinários e jurisprudenciais [2], o da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento.

A decisão do STF no Recurso Extraordinário nº 636.886 representa, mutatis mutandis, na linha do pensamento de Thomas Kuhn, uma mudança de paradigma, impondo-se porque consegue explicar mais coisas e de modo mais adequado.

No presente caso, em primeiro lugar, o novo paradigma se mostra mais consentâneo com o quadro constitucional de valores, princípios e garantias fundamentais ao indicar que, no processo de tomada de contas junto ao TCU, como não há plena vigência das garantias da ampla defesa e do contraditório, a atuação da Corte de Contas não pode se protrair de forma ilimitada.

Além disso, o deixa claro que a imprescritibilidade deve ser excepcional, exigindo-se que conste expressamente do texto constitucional. Uma das poucas hipóteses [3] existentes é aquela referida pelo Tema nº 897: a imprescritibilidade do ressarcimento de danos baseado em atos dolosos de improbidade.

Por fim, na medida que o processo de tomada de contas não observa, em sua plenitude, as garantias da ampla defesa e do contraditório, não sendo essa atuação da Corte de Contas de natureza judicial propriamente dita [4], ele não se mostra apto a aferir a presença do dolo em eventual ato de improbidade, podendo-se concluir, dessa forma, não ser aplicável à hipótese o Tema nº 897, mas, sim, o Tema nº 899: a tomada de contas prescreve.

O TCU, no entanto, não se fez esperar e já reagiu a essa mudança do STF.

A metáfora empregada também ilumina esse comportamento reativo da Corte de Contas. Imre Lakatos identificou a tendência de resistência e defesa do paradigma sob questionamento e risco de superação.

Para Lakatos o desenvolvimento do conhecimento científico se dá por meio da formulação de programas de pesquisa compostos por um núcleo que dá coerência e sentido ao desenvolvimento do conhecimento e por um cinturão protetor que envolve esse núcleo [5], defendendo-o de "ataques" que poderiam abalá-lo ou mesmo destruí-lo.

É esse cinturão protetor referido por Lakatos que nos interessa aqui, na medida em que ele é composto de teses e hipóteses auxiliares que ajustam reativamente a teoria ao núcleo, este devendo manter-se íntegro de modo a preservar a coerência, e existência mesma, do programa de pesquisa e do desenvolvimento do conhecimento científico.

O Acórdão nº 6589/2020, da 2ª Câmara do TCU, proferido na sessão de 16 de junho de 2020, é um exemplo desse cinturão protetor referido por Lakatos. Nesse julgado, a Corte de Contas afirmou que o decidido pelo STF no Recurso Extraordinário nº 636.886 não se aplica ao TCU, mas apenas à cobrança judicial do correspondente valor, definido em processo de tomada de contas, inscrito em dívida ativa.

O que se nota da leitura do Acórdão nº 6598/2020 é que o TCU se vale de toda e qualquer brecha ou lacuna na decisão do STF para defender o paradigma da imprescritibilidade, adaptando-o às novas condições.

Percebe-se, portanto, uma luta em torno do paradigma da imprescritibilidade do ressarcimento em favor da Administração Pública, o STF assumindo o papel de agente de mudança, que rompe com as crenças e concepções básicas que sustentam esse mesmo paradigma, e o TCU, por sua vez, assumindo a função de promotor de uma heurística baseada no status quo, procurando mantê-la a todo o custo, valendo-se, para isso, de todas as técnicas e instrumentos de interpretação disponíveis. Daí a estratégia do TCU no sentido de construir, através de sua decisão, uma tese auxiliar de tipo cinturão protetor, na linha do pensamento de Lakatos, que, mantendo íntegro o núcleo do programa de pesquisa a tese da imprescritibilidade , procura ajustar esse mesmo programa ao novo pronunciamento do STF.

Talvez a discussão da imprescritibilidade possa ser compreendida, não como uma disputa acerca de um paradigma de médio alcance [6], mas como uma batalha em torno de uma tese auxiliar do principal ponto de debate: a investigação acerca da expansão da atuação do TCU.

Em torno desse paradigma denominado aqui de onicontrolador percebe-se também a discussão do poder geral de cautela do TCU ou da possibilidade de fiscalização em relação a entes que não se confundem com a Administração Pública [7], temas que se articulam num paradigma abrangente largo espectro: o do papel do TCU e os contornos de sua atuação que, cada vez mais, transcende os limites da noção ou ideia de controle da Administração Pública.

Embora essa questão já tenha sido identificada [8], a consolidação de qualquer paradigma parece longe de acontecer. Mesmo em relação à prescritibilidade, já é possível antever alguns novos rounds. O ataque do STF, vindo da decisão do Recurso Extraordinário nº 636.886, bem como a respectiva reação defensiva o cinturão protetor lakatiano do TCU, estampada no Acórdão nº 6589/2020, são apenas os últimos capítulos nessa luta epistemológica do direito público brasileiro. Não se sabe ao certo o que virá em seguida. Mas fica a esperança de que, a despeito das resistências, prevaleça um paradigma mais aderente ao sistema de valores e princípios veiculados pela Constituição.

 


[1] KUHN, Thomas S. e HACKING, Ian. The Structure of Scientific Revolutions: 50th Anniversary Edition. Edição: Fourth ed. [S.l.]: University of Chicago Press, 2012.

[2] V., por todos, ARAÚJO, Carlos Maurício Lociks. Ausência de prazos prescricionais na atuação do Tribunal de Contas da União e seus reflexos sobre a segurança jurídica. Revista de Informação Legislativa, v. 52, n. 208, Dez 2015.:

[3] As outras duas hipóteses são a do crime de racismo e a “ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”, previstos nos incisos XLII e XLIV, respectivamente, ambos do artigo 5º da Constituição.

[4] Consta do voto do relator, Ministro Moraes: “em que pese a importância das competências constitucionais das Cortes de Contas e a terminologia utilizada pelo Constituição Federal julgar, não se trata de atividade jurisdicional, onde tenham sidos garantidos, efetivamente, a ampla defesa e o contraditório, pois o termo julgar é utilizado no sentido de examinar e analisar as contas (…)”.

[5] Para Lakatos o programa de pesquisa se articula em termos de heurísticas negativas e positivas, as primeiras constituindo o núcleo duro do programa, e desencorajando qualquer pensamento dissidente relativamente a esse núcleo; as segundas compondo um conjunto de teses e hipóteses auxiliares em torno do núcleo e funcionando realmente como uma espécie de cinturão ou colchão de amortecimento contra o impacto de novas descobertas e avanços das pesquisas e experimentos, tudo com o propósito de preservação do núcleo: (LAKATOS, Imre. The Methodology of Scientific Research Programmes: Volume 1: Philosophical Papers. Edição: 1 ed. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 1978.

[6] Na linha do pensamento de Kuhn, paradigmas de médio alcance, ou regionais, podem se articular, formando um paradigma de largo espectro ou global, num modelo de constelação paradigmática.

[7] Um dos exemplos dessa atuação expansiva do TCU, de acordo com o paradigma onicontrolador, é o controle e supervisão que a Corte de Contas pretende exercer sobre as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC) que não são pessoas integrantes da Administração Pública. Para um resumo da controvérsia: Abrapp decide, após parecer, se entra com ação no STF contra TCU.

[8] V., a respeito, dentre outros, DUTRA, Pedro e REIS, Thiago. O Soberano da Regulação: O TCU e a infraestrutura. [S.l.]: Editora Singular, 2020 e RIBEIRO, Maurício Portugal e JORDÃO, Eduardo Ferreira. O TCU atua como gestor público; tratemo-lo como tal!

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!