Opinião

Culpabilidade: um conceito em re(construção)?

Autor

  • Marina Cerqueira

    é mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) professora de Direito Penal de graduação e pós-graduação servidora do Ministério Público da Bahia com atuação na assessoria especial criminal da Procuradoria-Geral de Justiça ex-presidenta e conselheira do Instituto Baiano de Direito Penal e Processual (IBADPP).

22 de julho de 2020, 12h05

Em primeiro lugar, é importante registrar que o presente texto, dada a limitação e composição deste espaço, não pretendeu desenvolver, de maneira adequada, determinados conceitos da dogmática penal. Em segundo lugar, é preciso dizer, embora seja óbvio, mas, insisto, dizer o óbvio se tornou necessário, a culpabilidade enquanto princípio implica na intransigível obediência a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF/88), daí porque não se pode admitir a imposição de pena ausente a culpabilidade. Ou, dito por outras palavras, o ser humano, enquanto sujeito titular de garantias, não pode ser instrumentalizado para supostos fins sociais [1].

A culpabilidade é também categoria dogmática que integra a definição analítica de crime, cujo conceito sofreu ao longo da história mudanças até se afirmar, com o finalismo — doutrina que se tornou dominante em todo o mundo, pós segunda guerra mundial , como culpabilidade normativa pura [2].

Hans Welzel reestruturou a teoria do delito a partir de dois axiomas antropológicos, duas categorias lógico-objetivas: ação como produto de finalidade e atuação conforme o sentido normativo. A culpabilidade, assim compreendida como juízo de valor acerca do injusto, possui no livre arbítrio o seu fundamento material, ou seja, na crença de que os sujeitos culpáveis são aqueles que têm a capacidade de se desvencilhar dos seus impulsos causais e atuar conforme o comando normativo, é dizer, aqueles que poderiam ter "atuado de outro modo", mas, ainda assim, decidiram atuar contra a norma [3].

Não se pode deixar de notar, ainda nesse contexto, que a doutrina finalista se utiliza da figura do "homem médio", uma ficção jurídica, que deve servir de paradigma para a afirmação do juízo de responsabilidade penal, numa situação concreta [4].

É bem verdade que as críticas atinentes à indemonstrabilidade empírica do livre arbítrio [5] e, portanto, quanto à comprovação do "poder atuar de outro modo", não são recentes, mas retomaram o seu fôlego, por assim dizer, a partir da década de noventa, com as pesquisas neurocientíficas e os seus possíveis influxos no âmbito da culpabilidade [6]. Com efeito, os experimentos neurocientíficos ao demonstrarem que "as ações não são causadas por uma vontade consciente, mas sim por processos neurológicos inconscientes" [7] incrementam as críticas em torno da existência do livre arbítrio e, com isso, acentuam a crise de legitimidade da culpabilidade.

Mas não é só.

A dita figura do "homem médio” fere o princípio da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, da CF/88), na medida em que se afasta das circunstâncias e contingências nas quais se insere o ser humano, acusado da prática de determinado delito, e passa a considerar aquelas nas quais o julgador, na maioria das vezes, homem, branco, heteronormativo, heterossexual, cis, dotado de privilégios e capitais diversos, habita. Dito mais claramente, a análise do "poder atuar de outro modo" está condicionada pelo lugar de fala do julgador, acostumado a fazer o exercício de empatia às avessas [8].

Some-se a tudo isso a realidade da América Latina, na qual o Brasil se insere, marcada por sociedades com gritantes níveis de desigualdade social e com "alvos" preferenciais do poder punitivo, os quais estão, como dito, muito distantes da realidade experimentada pelo julgador. Dito isso, uma indagação parece necessária: como é possível lançar mão de tal paradigma para afirmar o juízo de responsabilidade penal, que deve ser individual e atento àquele acusado, na sua singularidade e circunstâncias? Estaríamos diante de uma culpabilidade como instituição moral? E, portanto, servindo ao controle dos indesejáveis [9] ?

A doutrina pós-finalista, em especial o funcionalismo, buscou estruturar o fundamento material da culpabilidade a partir dos fins preventivos da pena, tentando prescindir da análise acerca da existência do livre arbítrio e, com isso, da "exigibilidade de conduta diversa", mas não deixou, igualmente, de se submeter a contundentes críticas.

É dizer, o funcionalismo sistêmico concebido por Günther Jakobs [10], na medida em que defende a afirmação da culpabilidade para fins de prevenção geral positiva, ou seja, para restabelecer a vigência da norma e a credibilidade no sistema, acaba por conferir maior apreço à higidez normativa, numa clara aproximação hegeliana, em detrimento do sujeito, titular de dignidade humana. Dito por outras palavras, a demasiada preocupação com o sistema normativo acaba servindo à instrumentalização do sujeito para fins sociais. Opa, estaríamos, então, admitindo uma ofensa ao princípio da culpabilidade?

Na sociedade de risco, como em 1986 já denunciava Ulrich Beck [11], é possível notar não apenas o fenômeno de "la expansión del Derecho penal" [12], mas também a opção por reformas penais que garantam a (tão desejada) sensação de segurança, abalada pelos novos riscos dessa sociedade globalizada e com amplo desenvolvimento tecnológico, daí porque a afirmação de um juízo de culpabilidade que sirva, apenas, à estabilização das expectativas normativas tem se revelado tão presente. A tônica é garantir a sensação de segurança social, ainda que para isso implique tratar o ser humano como coisa.

E, então, qual fundamento material de culpabilidade é adequado aos postulados democráticos? Ou melhor, qual Direito Penal as sociedades democráticas merecem?

Estou convencida que o Brasil, assim como muitos países da América Latina, precisa (re)construir um conceito de culpabilidade que não só resgate a atenção para o ser humano, para o seu lugar de fala, mas sobretudo que esteja atento às desigualdades. "Poder atuar de outro modo" sob as lentes do julgador é uma coisa, mas sob as lentes do sujeito que experimenta aquela outra triste realidade, é outra completamente diversa. É bem verdade que Juarez Tavares [13], Klaus Günther [14] e Zaffaroni [15], apenas para mencionar três notáveis penalistas, já nos deram boas dicas de como é possível pensar a reconstrução desse conceito. Mas é preciso ir adiante. Será que talvez fosse necessário pensar em critérios objetivos capazes de oferecer substrato ao julgador para, na análise do caso concreto, isto é, ao se deparar com as condições do autor e o seu contexto, melhor decidir sobre o juízo de reprovação de determinada conduta?

Sinto que precisamos seguir na busca dessa (re)construção, sempre orientados pelo princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, por um Direito Penal limitador do (desenfreado) poder punitivo.

 

Referências bibliográficas
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – Rumo a uma outra modernidade. Trad: Sebastião Nascimento. Editora 34.

CASARA, Rubens R R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CERQUEIRA, Marina. Neurociências e Culpabilidade. 2ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

CRESPO, Eduardo Demetrio. Compatibilismo humanista: una propuesta de conciliación e neurociências y derecho penal. In CRESPO, Eduardo Demetrio; CALATAYUD, Manuel Maroto. Neurociencias y Derecho Penal nuevas perspectivas en el âmbito de la culpabilidad y tratamento jurídico-penal de la peligrosidad. Motivideo-Buenos Aires, 2013.

GÜNTHER, Klaus. A culpabilidade do Direito Penal atual e no futuro. Trad. Juarez Tavares. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n. 24, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

HASSEMER, Winfried. História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n. 06, São Paulo:Revista dos Tribunais, 1994.

JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general: fundamentos y teoria de la imputación. 2ª ed., Madrid: Marcial Pons, 1997.

LOEBENFELDER, Carlos Künsemüller. Culpabilidad y Pena. Editorial Jurídica de Chile, Santiago. 2001.

LUZÓN PENA, Diego-Manuel. Libertad, Culpabilidad y Neurociencias. Disponível em <https://indret.com/>.

MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. O novo conceito material de culpabilidade: o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

SÁNCHEZ, Jesus María Silva. La expansión del Derecho penal. Aspectos de la Política criminal en las sociedades postindustriales. Tercera edición. Editorial Montevideo-Buenos Aires, 2011.

TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico Penal.Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2001.

 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro: Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal – Rio de Janeiro: Renovar, 2003, 3ª Ed. 2006.

 


[1] LOEBENFELDER, Carlos Künsemüller. Culpabilidad y Pena. Editorial Jurídica de Chile, Santiago. 2001, p. 52.

[2] HASSEMER, Winfried. História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n. 06, São Paulo:Revista dos Tribunais, 1994, p. 44.

[3] WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico Penal.Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2001, p. 85.

[4] WELZEL, Hans. Op. Cit., p. 85.

[5] LUZÓN PENA, Diego-Manuel. Libertad, Culpabilidad y Neurociencias. Disponível em <https://indret.com/>.

[6] CRESPO, Eduardo Demetrio. Compatibilismo humanista: una propuesta de conciliación e neurociências y derecho penal. In CRESPO, Eduardo Demetrio; CALATAYUD, Manuel Maroto. Neurociencias y Derecho Penal nuevas perspectivas en el âmbito de la culpabilidad y tratamento jurídico-penal de la peligrosidad. Motivideo-Buenos Aires, 2013, p. 24.

[7] CERQUEIRA, Marina. Neurociências e Culpabilidade. 2ª edição, Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p.94.

[8] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. O novo conceito material de culpabilidade: o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 152

[9] CASARA, Rubens R R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 93.

[10] JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general: fundamentos y teoria de la imputación. 2ª ed., Madrid: Marcial Pons, 1997, p.566.

[11] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad: Sebastião Nascimento. Editora 34.

[12] SÁNCHEZ, Jesus María Silva. La expansión del Derecho penal. Aspectos de la Política criminal en las sociedades postindustriales. Tercera edición. Editorial Montevideo-Buenos Aires, 2011.

[13] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p.431

[14] GÜNTHER, Klaus. A culpabilidade do Direito Penal atual e no futuro. Trad. Juarez Tavares. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n. 24, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp.77-82.

[15] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro: Direito Penal Brasileiro: primeiro volume –Teoria Geral do Direito Penal – Rio de Janeiro: Renovar, 2003, 3ª Ed. 2006.

Autores

  • é professora de Direito Penal do Centro Universitário Jorge Amado e de diversos cursos de pós-graduação em Ciências Criminais, ex-presidenta do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP), servidora do MP-BA, com atuação na assessoria especial criminal da PGJ, doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) e mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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