Advocacia criminal

Limitações à defesa técnica nos megaprocessos e aspectos práticos da advocacia

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22 de julho de 2020, 7h58

Spacca
Fenômeno processual cada vez mais recorrente na realidade do sistema de administração da justiça criminal, especialmente na persecução da criminalidade organizada e de cariz econômico-financeiro, são os megaprocessos.

Trata-se de fenomenologia processual ainda em busca de teorização consistente. Em estudo exploratório, tive a oportunidade de propor a seguinte aproximação a esse conceito, à luz de suas origens históricas e características (pertencentes aos domínios da criminalidade organizada): processo empregado (ainda que não declaradamente) como instrumento de luta contra a criminalidade organizada, em contexto cultural de emergência e práticas judiciárias de exceção, no qual acusador e julgador têm conotação partidária e há imputação de multiplicidade de delitos (de cariz associativo e crimes-fim) à quantidade considerável de acusados. 1

Por limitações de espaço e tempo, se fará recorte epistemológico excludente da análise: (i) das origens históricas desse fenômeno na Itália, durante as décadas de 1970 e 1980; (ii) do caldo cultural de emergência e práticas judiciárias de exceção que viabilizam o nascimento do fenômeno em digressão. 2

O enfoque será nas limitações à defesa técnica causadas pela elefantíase processual, com ênfase nos aspectos práticos relacionados à advocacia criminal.

Como é cediço, o direito de defesa é o “direito do acusado, ou sancionado, à tutela jurídica de sua liberdade” ou o “direito de querer a observância das normas que lhe evitam lesão ao direito à liberdade”. 3

Hoje é pacífico que o direito de defesa transcende o interesse pessoal do acusado, revestindo-se de interesse público relevante e indisponível na própria legitimidade ético-política da jurisdição criminal (nemo iudex sine defensione). 4

Quanto à sua estrutura normativa, o direito de defesa é complexo, abarcando diversos consectários lógicos. 5

Não obstante, o gigantismo processual põe em causa o núcleo essencial do direito de defesa, ensejando múltiplas e excessivas restrições à defesa técnica efetiva, à livre escolha do defensor técnico pelo acusado e ao tempo e meios adequados para a preparação da defesa técnica.

No que toca ao primeiro corolário, um problema detectado pela doutrina italiana é que os megaprocessos afetam a própria efetividade da defesa técnica dos acusados.

Isso porque: (i) a exigência de comparecimento a dezenas de audiências, em prol de um cliente, força o Advogado constituído a negligenciar outros compromissos profissionais; (ii) a atuação profissional desse Advogado tende a não ser compensadora, do ponto de vista financeiro; (iii) as campanhas de doações feitas na Itália, para subsidiar a constituição de pessoas ofendidas como partes civis nos megaprocessos, acentuou a desigualdade material entre as partes; (iv) o defensor dativo tende a propiciar defesa técnica meramente decorativa, ante o pesadíssimo ônus, em termos de esforço físico/intelectual e tempo, que lhe é imposto. 6

Quanto ao segundo corolário, a hipertrofia processual tende a afastar a atuação de Advogados livremente nomeados pelos acusados.

Isso porque as proporções mastodônticas do processo exigem atuação profissional que consome, ao longo de vários anos, literalmente centenas de horas de trabalho dedicadas ao estudo de milhares de folhas de autos, ao comparecimento a dezenas de audiências de instrução e julgamento fracionadas etc.

Esse avassalador volume de trabalho para o Advogado exige infraestrutura cara e complexa: (i) contratação de Advogados associados e Estagiários; (ii) compra de dispositivos tecnológicos; (iii) subcontratação de investigadores particulares, assistentes técnicos, profissionais para transcrever centenas de horas de depoimentos gravados e conversas telefônicas interceptadas etc.

Não é incomum que a atuação profissional em megaprocesso exija litigância satélite, consistente na adoção de medidas administrativas e judiciais para viabilizar a produção de prova defensiva (v.g. pedido de acesso a informações sigilosas, com base na Lei nº. 12.527/11; ajuizamento de mandado de segurança etc.).

O elevado custo de oportunidade para o Advogado (que deixa de ter tempo hábil para assumir outras causas), somado ao alto custo da infraestrutura necessária para atuar em megaprocessos, elevam proporcionalmente o valor dos honorários cobrados, tornando os defensores técnicos qualificados praticamente inacessíveis para a maioria dos acusados.

Esse problema é agravado pela contumaz decretação judicial do bloqueio universal de bens e valores pertencentes ao acusado, suas empresas e familiares.

A consequência prática – e possível finalidade não declarada – do sobredito bloqueio é a falta de liquidez e solvência para a remuneração de Advogado constituído.

No particular, importante causa a ser abraçada por entidades associativas da advocacia deve ser inovação legislativa impondo liberação de valores bloqueados judicialmente, para fins de pagamento dos honorários do defensor técnico do acusado – que têm natureza alimentar.

Essa liberação pode ser condicionada à: (i) ausência de comprovação, pelo acusador, da origem ilícita dos valores bloqueados; (ii) apresentação de contrato de honorários e procuração ao Juiz; (iii) limitação do valor a ser desbloqueado, com base em múltiplos dos valores constantes da tabela de honorários mínimos de cada Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo.

No que tange ao derradeiro corolário, as dimensões colossais dos megaprocessos incluem dezenas de milhares de folhas, espraiadas pelos autos do processo principal, inquérito policial, processos conexos, medidas cautelares, apensos etc., sempre em constante expansão.

Além disso, o Advogado precisa acessar diversas mídias contendo gigabytes ou terabytes de planilhas, documentos contábeis e comerciais, gravações audiovisuais de depoimentos, gravações de áudios de conversas telefônicas interceptadas etc.

Esse volume ciclópico do acervo de elementos informativos e probatórios torna praticamente impossível seu estudo integral e minucioso pelo Advogado, havendo risco de passarem despercebidas informações potencialmente úteis à estratégia defensiva.

Além disso, nem sempre a denúncia que deflagra o megaprocesso vem instruída por procedimento administrativo previsto em lei, formalmente instaurado e autuado, contendo a imprescindível documentação de todos os elementos informativos e probatórios amealhados durante a investigação preliminar, inclusive aqueles eventualmente favoráveis ao acusado.

Pelo contrário, não é incomum que a denúncia que instaura o megaprocesso seja instruída com documentos avulsos, incompletos e/ou fora de ordem cronológica, em idioma estrangeiro sem tradução etc.

Não faltam denúncias que fazem remissões a documentos que nem sequer estão encartados nos autos do megaprocesso, e sim espraiados por processos conexos, que tramitam em grau de sigilo máximo (v.g. declarações de colaboradores premiados cujos respectivos acordos não foram objeto de decisão judicial homologatória) – portanto inacessíveis ao Advogado. 7

Tal cisão gera desigualdade substancial entre as partes, pois enquanto o acusador possui visão global do contexto fático-probatório no qual está inserida a imputação, o Advogado pode conhecer somente fração desse contexto. 8

Essas duas características dos megaprocessos (volume monstruoso dos autos e dispersão/fragmentação probatória) tornam discutível se os acusados de fato têm acesso aos meios adequados para a preparação das suas defesas.

Noutro giro, é igualmente problemática a questão do direito convencional ao tempo necessário para a preparação da defesa técnica.

Isso porque o Ministério Público e a polícia judiciária dispõem de meses, ou até anos, para preparar seu caso, durante a investigação preliminar. Nesse ínterim, há elementos informativos e probatórios que não são revelados ao Advogado, seja pela sua colheita via medidas cautelares sigilosas, seja pela estratégia persecutória de manter diversos elementos relevantes fora dos autos da investigação preliminar, até a undécima hora.

No procedimento comum ordinário, há prazo de 10 dias, contados da citação pessoal do acusado, para o Advogado apresentar resposta à acusação, arguindo questões preliminares ao mérito, alegando tudo que interessar à defesa, oferecendo documentos e justificações, especificando provas etc.

Nesse exíguo lapso temporal, o Advogado deve estudar volume titânico de elementos granjeados na fase de investigação preliminar, até então desconhecidos. Para tanto, não raro o Advogado se depara com dificuldades técnicas (v.g. softwares incompatíveis; mídias corrompidas ou sem senha de acesso etc.).

Assim, tal prazo pode ser insuficiente para a análise cuidadosa da íntegra do descomunal acervo probatório que serve de suporte à denúncia, e elaboração da resposta à acusação.

Outro problema constatado é a inobservância do direito fundamental à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada. 9

O nó górdio dos megaprocessos reside na formulação de múltiplas imputações (em regra um crime associativo e variegados crimes-fim) contra vários acusados, deduzindo-as umas das outras, em círculo vicioso de retroalimentação, ou induzidas a título de concurso moral com crimes imputados a corréus.

Assim, a tendência é a acusação se utilizar de vínculos sociais (de amizade, familiares, funcionais, partidários, profissionais, societários etc.) como fundamento exclusivo da imputação de delito associativo, em razão da dificuldade prática de se narrar conduta específica de constituição de organização criminosa, ou de adesão a ela.

Assim, não raro o critério norteador da acusação é paradigma de responsabilidade penal solidária por vínculo social – o que fere de morte a cláusula pétrea da culpabilidade (nullum crimen sine culpa), da qual decorre a natureza personalíssima, subjetiva e intransferível da responsabilidade penal.

Assim, esse tipo de acusação tende a violar os núcleos essenciais dos direitos à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada e à ampla defesa em geral, pois a refutação empírica da imputação de crime associativo consiste em verdadeira prova impossível (probatio diabolica).

A advocacia criminal em megaprocessos, especialmente quando o cliente está preso, é a mais complexa, desafiadora e brutalmente desgastante para o Advogado, dos pontos de vista físico e psicológico.

Eis alguns breves conselhos práticos: (i) cobre antecipado: cobre seus honorários antecipadamente, ante o risco de bloqueio judicial de bens e valores do cliente; (ii) faça parceria: faça parceria com sociedade de advogados, caso necessário. É praticamente impossível que um profissional consiga executar sozinho o hercúleo lavor exigido por megaprocesso; (iii) acesse os autos: obtenha acesso, com a maior brevidade possível, à íntegra dos autos do processo principal, inquérito policial, processos conexos, medidas cautelares, apensos etc., além do conteúdo das mídias. Se houver colaborador premiado, peça acesso ao processo de negociação do acordo, termo de colaboração, gravações e transcrições dos depoimentos prestados etc. 10; (iv) seja organizado: faça relatório discriminando todos os documentos relevantes nos autos; (v) peça devolução de prazo: caso necessário, peça a devolução do prazo para apresentar a resposta à acusação – que só deve começar a fluir após o sobredito acesso; (vi) defina responsabilidades: deve haver um coordenador responsável pela distribuição de tarefas entre membros da equipe, de acordo com sua experiência e habilidade; (vii) decida coletivamente: faça sessões periódicas de brainstorming com todos os integrantes da equipe (inclusive terceirizados, tais como o assistente técnico), incentivando-os a opinar livremente sobre os potenciais benefícios e riscos de cada escolha estratégica e tática; (viii) jogue para o time: não busque glória individual, e sim jogue o jogo processual almejando o melhor resultado possível para o cliente. 11

Boa sorte.


1 MALAN, Diogo. Megaprocessos e direito de defesa, In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 159, p. 45-67, set. 2019.

2 Sobre esses aspectos, ver: FERRAJOLI, Luigi. Diritto e raggione: Teoria del garantismo penale, pp. 844 e ss. 7. ed. Bari: Laterza, 2002.

3 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis, BASTOS, Cleunice A. Valentim. Defesa penal: Direito ou garantia? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 04, pp. 110-125, out./dez. 1993.

4 GIARDA, Angelo. La difesa tecnica dell’imputato: Diritto inviolabile e canone oggettivo di regolarità della giurisdizione, In: GREVI, Vittorio (Org.). Il problema dell’autodifesa nel processo penale, pp. 62-81. Bologna: Zanichelli, 1977.

5 MALAN, Diogo. Defesa técnica e seus consectários lógicos na Carta Política de 1988, In: PRADO, Geraldo, MALAN, Diogo (Orgs.). Processo penal e democracia: Estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988, pp. 143-186. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

6 CORSO, Piermaria. Fenomenologia del “maxiprocesso”, In: L’indice penale, Roma, n. 20, pp. 249-267, 1986.

7 TORON, Alberto. O direito de defesa na Lava Jato, In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 122, pp. 15-41, ago. 2016.

8 SAAD, Marta. Direito de defesa no processo penal: Novos desafios, velhos dilemas, In: SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo Rudge; MADURO, Flávio Mirza (Orgs.). Crise no processo penal contemporâneo: Escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988, pp. 311-329. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.

9 GARGALLO, Andrea. El derecho fundamental a ser informado de la acusación, pp. 89 e ss. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1999.

10 Veja-se importante precedente no sentido de que “a defesa deve ter acesso a todo material produzido e formalizado relativo não apenas ao acordo de colaboração premiada, mas também às próprias tratativas que permitiram a sua celebração” (TRF/2ª Região, 1ª Turma, HC 0002732-29.2018.4.02.0000 ED, Rel. Des. Simone Schreiber, j. 18.09.2018).

11 LYON, Andrea; SMITH, Mort. Team defense in criminal cases. Chicago: American Bar Association, 2014.

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