Opinião

Juiz, Direito, Constituição e democracia: um quarteto indissolúvel

Autor

  • Pedro Zucchetti Filho

    é bacharel em Direito e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestrando em Direito e Tecnologia na Universidade Nacional Australiana (ANU).

21 de julho de 2020, 10h38

Não constitui nenhuma novidade afirmar que o processo penal brasileiro passa por uma crise identitária da jurisdição [1], o que advém, além de outros fatores, de uma equivocada compreensão do alcance do adágio ne procedat iudex ex officio. A máxima, responsável por demarcar a posição do juiz ao longo de todo iter procedimental, impede(iria) a condenação sem pedido, a busca de provas de ofício e outras atuações judiciais democraticamente impróprias, e cuja inobservância redunda em um "descolamento estrutural que fulmina a posição do juiz por sacrificar o princípio supremo do processo: a imparcialidade".

Neste espaço queremos falar sobre o desvirtuamento do papel do juiz, o qual nos leva a discorrer igualmente sobre o papel do Direito. E discorrer sobre Direito é, também, discorrer sobre democracia. Ambos são conceitos codependentes, podendo-se até asseverar que um ampara-se no outro. Entretanto, a simples observação do previsto em determinado ordenamento jurídico, muito embora seja condição necessária para que a democracia possa desenvolver-se, não é condição suficiente para que ela se realize da maneira como idealmente se espera.

Até porque foi exatamente isto o que aconteceu na Alemanha do século XX, a Alemanha de Kant, de Beethoven e de Goethe, que foi destroçada diante do afastamento, pelas instituições, dos ideais democráticos a despeito do ferrenho cumprimento da lei. Sendo assim, é crível supor-se que atentados contra a democracia de qualquer nação são passíveis de ocorrer, e estas agressões sutis, às vezes podem vir de quem menos se espera.

É importante neste momento clarificar um conceito. Quando falamos de democracia, do que exatamente estamos falando? O conceito de democracia formal, em que se preconiza a eleição, de tempos em tempos e de forma igualitária, dos representantes do povo pelo povo, pode ter atendido às finalidades de sociedades pretéritas, mas, considerado isoladamente, serve apenas de maneira insuficiente para nossos dias atuais. É preciso ir além para que cheguemos ao conceito de democracia substancial, em que, dentre outras características, há a do respeito aos direitos humanos, a do império da lei (rule of law), a da separação dos poderes e a da independência do Poder Judiciário. Analisadas em sua globalidade, estas características corporificam princípios básicos que refletem outros valores (a exemplo de moralidade e justiça), objetivos sociais (tais como paz pública e segurança) e maneiras apropriadas de comportamento (a exemplo da razoabilidade e da boa-fé).

Consolidado o entendimento de que a independência do Poder Judiciário é um dos nucleares atributos do conceito de democracia substancial ou material, hodiernamente tem sido frequente o questionamento acerca de onde deve inserir-se o magistrado e quais os limites de sua atuação a fim de que exerça esta independência dentro dos limites legalmente demarcados.

Diante das dinâmicas sociais sob constante mutação, a imparcialidade judicial alvo de eventuais práticas antidemocráticas oriundas dos próprios ocupantes dos cargos vive uma crise que é alavancada pelo ativismo judicial, ou seja, pelo excesso de criatividade e pela ausência de contornos à interpretação judicial. Uma das principais causas: equívoco na compreensão do que vem a ser o "livre" convencimento motivado e do quanto assenta o princípio da legalidade. Não se afasta a importância da cosmovisão do juiz, mas é inegável que sua ideologia particular não deve preponderar sobre o quanto previsto na lei a menos que estejamos tratando de uma lei inválida e que não sobreviva à necessária filtragem constitucional.

Streck informa que, em 2015, nosso Direito Processual Civil experimentou importante ruptura com a postura solipsista e com o protagonismo judicial ao extirpar o livre convencimento motivado do seu bojo normativo. Como registrado com perspicácia o jurista, embora comumente suponha-se que a persuasão racional seja a melhor das alternativas (entre a íntima convicção e as provas tarifadas, sendo uma espécie de "discricionariedade racionalizada"), um problema de cunho filosófico e mais profundo é ignorado, qual seja, o de pensar-se que o caso não é complexo e que se amolda à lei, sendo que, ao depararmo-nos com as "zonas de penumbra", comumente delega-se a decisão à discricionariedade judicial.

Segundo ele [2]:

"O CPC/2015, ao retirar o poder de livre convencimento ou livre apreciação, assume um nítido sentido ‘não protagonista’, afastando o velho instrumentalismo (…). Não se pode mais invocar o princípio (sic) da presunção racional. O novo Código não compactua com essas visões ultrapassadas, mesmo que venham com epítetos como 'racional'. Trata-se de uma opção paradigmática feita pelo legislador. (…) Tudo isso tem relação justamente com o problema que o conceito de Estado democrático de Direito busca atacar: que as autoridades públicas não ajam como quiserem, mas estejam constrangidas pelas leis que determinam suas funções e seus poderes. Em relação aos juízes, a quem falta legitimidade democrática, cabe mais uma vez impor maiores controles na sua atividade interpretativa, para que por meio dela não distorçam o conteúdo da lei ou até da Constituição.

Quando uma atividade excede as fronteiras da legalidade, também excede as fronteiras do ativismo [3]. Entendemos que o ativismo deve ser exercido em consonância com o que prevê o corpo constitucional, além de dever relacionar-se com o quão bem o juiz realiza seu papel judicial de preencher a lacuna entre a lei e a realidade social em constante transformação. Se o papel do magistrado é o de proteger a constituição e os valores nela insculpidos, essa tarefa não pode ser feita discricionariamente.

Entretanto, ao contrário do que alguns usualmente entendem, limitações (substantivas e procedimentais) devem ser observadas nesta atividade judicial. A discricionariedade é limitada, devendo o juiz circunscrever seu comportamento a determinada moldura social e legal, de modo que o papel do magistrado não se coaduna ao de um profissional todo-poderoso, que tudo pode, quando e como quiser.

Porém, como antecedente necessário do discurso acerca do ativismo, há a discussão referente à interpretação legal, esta entendida como a atividade racional pela qual confere-se significado ao texto legal (testamento, contrato, lei, Constituição). É um processo através do qual o significado legal do texto é extraído do seu significado semântico. Há transformação da "lei estática" em "lei dinâmica" ao transformar o texto linguístico numa norma legal. Não existe compreensão pré-exegética de um texto, pois apenas podemos acessá-lo e compreendê-lo através do processo interpretativo.

Tendo esse entendimento como perspectiva, e se a lei é uma ferramenta para realização do objetivo social, então a interpretação legal deve dar-se de forma a realizar este objetivo social. Não se pode conferir à Constituição um significado que expressa ou implicitamente não se sustenta. Isso também é aplicável à legislação infraconstitucional, a despeito de sua menor maleabilidade normativa.

A linguagem explícita transmite ao leitor o sentido dicionarizado do texto. A linguagem implícita transmite um significado que não deriva do sentido dicionarizado da linguagem (é uma linguagem escrita em tinta invisível, nas entrelinhas, e que deriva da própria estrutura constitucional). Entre a gama de significados semânticos da constituição, o intérprete deve extrair o significado legal que melhor realiza o propósito da carta.

É disso que nos fala Streck quando afirma ser necessário que toda decisão judicial ou enunciado jurídico seja objeto de uma "condição hermenêutica de verificabilidade" [4], sendo a resposta correta ou adequada à Constituição uma "imposição da democracia". Por resposta adequada à Constituição compreendemos, juntos com Streck, "ter responsabilidade política e isso implica assumir uma obrigação não apenas 'de resultado', mas também 'de meio', fazendo, aqui, uma alusão à teoria geral das obrigações”. Conforme o autor [5], isso perfectibiliza-se do seguinte modo:

"E isso se demonstrará na fundamentação do juiz. Os fundamentos expostos pelo juiz devem, necessariamente, enfrentar substancialmente todos os argumentos levantados pelas partes, de forma clara e sólida, de tal modo que a parte possa saber não apenas o que se decidiu, mas o porquê levou o juiz a decidir de tal forma (…)".

É mister entender que, quando falamos da formação do convencimento judicial, é inescapável abordar a questão filosófica subjacente e que engloba uma discussão relacionada às condições de possibilidade que o juiz dispõe para decidir. Segundo pontua Streck, ao procedermos à análise da questão relacionada ao "como decidir" à luz da filosofia da linguagem, resta claro que as teorias que apostam todas as suas fichas na vontade do intérprete (sendo este o busílis da questão vinculada ao "livre" convencimento) acabam, segundo suas palavras, "gerando/possibilitando discricionariedades e arbitrariedades" [6].

E é preciso entender que a principal incumbência da teoria jurídica é a de viabilizar as condições para que sejam reduzidos ou extirpados os espaços impróprios de discricionariedade judicial. Se o solipsismo-ativismo-decisionismo judiciais são nocivos para a democracia, a redução da influência da subjetividade judicial será salutar para o fortalecimento de um regime democrático. Em sistemas jurídicos democráticos, não mais há espaço para que a famigerada "convicção pessoal do juiz" sirva como critério para solucionar as indeterminações legais.

Mas é também necessário acentuar, conforme aduz Streck [7], que "a crítica à discricionariedade judicial não é uma 'proibição de interpretar'". A discricionariedade que merece ser criticada é a que confere aos juízes poderes legiferantes e que, de maneira equivocada, faz com que o intérprete extrai o significado do texto legal a partir de seus conceitos, suas ideias e sua concepção de mundo.

A Constituição é um tipo especial de norma que se encontra no topo da pirâmide normativa. Difícil de emendar, é desenhada para dirigir o comportamento humano por anos. Molda a aparência do Estado e suas aspirações ao longo da história. Determina as visões políticas fundamentais do Estado. Deita as fundações de seus valores sociais. Determina seus compromissos e orientações. É filosofia, política, sociedade e lei num só lugar. Os valores e princípios subjacentes à Constituição compõem a base da interpretação constitucional, na qual o juiz dá expressão aos valores constitucionais fundamentais (guarda-chuva normativo) [8]. Desses valores constitucionais fundamentais não pode legitimamente o juiz afastar-se, inclusive dos implícitos, entre os quais podemos aqui denominar o da resposta consentânea à Constituição.

Visando a esse desiderato, o juiz deve agir imparcialmente, blindando as partes de serem alvos de seus vieses e preconceitos pessoais. A atividade judicial deve alinhar-se essencialmente à de proteção da democracia. Deve o intérprete agir dentro da moldura constitucional e legal. Ademais, se o sistema legal pauta-se pela certeza, consistência, segurança e estabilidade, estes são alguns valores que devem orientar, a todo momento, a tomada de decisão judicial.

Acima de tudo, o magistrado deve abordar cada assunto com uma mente aberta e a disposição para aprender, para ser persuadido e para admitir erros e agasalhar sua falibilidade. Um juiz não deve impor suas visões pessoais na sociedade em que ele julga. O juiz que assim age o faz fora das fronteiras da lei. Todo exercício da discricionariedade judicial deve dar-se dentro dos valores reconhecidos pela sociedade, refletindo suas perspectivas básicas.

Encontrando-se a democracia brasileira ainda em fase de construção, é por demais relevante que os magistrados não percam de vista a necessidade de, cotidianamente, exercer a função jurisdicional a partir da perspectiva jurídico-constitucional. Este é o ponto de partida interpretativo. Existe sim uma voz que deve ser escutada pelo Poder Judiciário: é a voz da Constituição.

 

Referências bibliográficas
BARAK, Aharon. The Jugde in a Democracy. Princeton: Princeton University Press, 2006.

LOPES Jr., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

STRECK, Lênio. Dicionário de Hermenêutica. 50 Verbetes Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

STRECK, Lênio. O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.

 


[1] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 96.

[2] STRECK, Lênio. O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017, p. 34 e ss.

[3] A definição de ativismo vincula-se a uma sociedade em particular e à cultura legal na qual ela opera. Não há o porquê buscar-se uma definição que se amolde à toda sociedade e a todo sistema legal e, mesmo que assim se intentasse, ela não poderia ser encontrada.

[4] STRECK, Lênio. Dicionário de Hermenêutica. 50 Verbetes Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 401.

[5] STRECK, Lênio. Dicionário de Hermenêutica. 50 Verbetes Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 402.

[6] STRECK, Lênio. O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017, p. 57. O autor complementa o raciocínio com o relato da seguinte situação por ele vivenciada: "Tais questões fizeram parte dos debates de elaboração do CPC/2015, nos quais travei uma batalha hermenêutica para retirar o livre convencimento de sua redação, o que aconteceu, abrindo-se espaço para os elementos de coerência e integridade (artigo 926). Aliás, o CPC é alvissareiro neste sentido (de expurgar o livre convencimento, que considero uma faceta do ativismo judicial), mas representa uma série de contradições, pois, por exemplo, insere a ponderação como metodologia decisória (artigo 489, §2º)".

[7] STRECK, Lênio. O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017, p. 104.

[8] BARAK, Aharon. The Jugde in a Democracy. Princeton: Princeton University Press, 2006, p. 134.

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