Opinião

A Covid-19 e o diálogo social: um novo olhar para a atividade judicial

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21 de julho de 2020, 13h14

Chegamos ao fim do primeiro semestre de 2020, o ano do imprevisível, do excepcional e, principalmente, o ano do aprendizado e da reflexão.  As novas ferramentas tecnológicas desafiam a necessária compreensão do seu uso. A excepcionalidade revela sua incorporação não perene para a atividade jurisdicional. Elas são adotadas em benefício do jurisdicionado em consideração acerca do papel do próprio Poder Judiciário e, com toda a propriedade, da Justiça do Trabalho, no panorama de intensa demanda nas questões envolvendo conflitos socioeconômicos.

A sociedade está a exigir de todos nós, nesse momento tão difícil por que passamos, serenidade, prudência e temperança, para tratar dos efeitos socioeconômicos, decorrentes da pandemia, em face da incapacidade de avaliar e prever o que acontecerá com a vida das pessoas diante do futuro incerto, onde o índice de desemprego, hoje na casa de uma dezena de milhões, aliado a dificuldade financeira das empresas provocada pela paralisação das atividades. Pura indefinição!

Da luta pela sobrevivência coletiva, emerge a importância do diálogo social como ferramenta eficaz na solução de dilemas aparentemente inconciliáveis.

Certamente, a resposta rápida, eficaz e produtiva de um Judiciário atento a tais dilemas tem vital importância para apaziguar as angústias decorrentes destes novos e desconhecidos tempos. Contudo, ela não pode se isolar em seus tradicionais limites de atividades dita solitária, sob pena de aumentar a distância já existente pela imposição do isolamento social. Em verdade, essa tendência já havia sido prenunciada pelo Direito Processual, por meio da teoria normativa da comparticipação ou da cooperação, conclamando a participação responsável e cooperativa de todos os atores sociais envolvidos para a solução dos conflitos, e adotada explicitamente pelo Código de Processo Civil de 2015, por exemplo, em seu artigo 6º [1].

Não por acaso, em um momento em que a pandemia se mostra como um choque global, que, a certo ponto, nos faz reconhecer que todos nós estamos conectados [2], o diálogo social se apresenta como importante instrumento a minorar os impactos de uma crise estrutural sem precedentes, e que clama pela responsabilidade de todas as instâncias e personagens envolvidos na construção de uma resposta satisfatória e eficaz.

Sob a mesma premissa, foi divulgado pela Organização Internacional do Trabalho relatório denominado "Observatório da OIT: Covid-19 e o mundo do trabalho" [3], em que se estabelecem diretrizes calcadas em quatro pilares gerais: 1) Estímulo à economia e ao emprego; 2) Suporte às empresas, empregos e insumos; 3) Proteção aos trabalhadores no local de trabalho; e 4) Foco no diálogo social para buscar soluções [4].

Seguindo tal diretriz, o caminho da tentativa de composição vem sendo objeto de recomendação desta Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho em todos os casos que envolvem pedidos liminares relacionados à Covid-19, segundo política de conciliação estimulada pela Recomendação CSJT.GP 001/2020, a qual trouxe a tentativa de mediação e composição relativa às situações decorrentes da contingência de pandemia, privilegiando soluções que não inviabilizem a continuidade das atividades essenciais, e atentem para a realidade concreta de cada jurisdição no segmento profissional e econômico respectivo [5]. Certamente, contrastaria com tal diretriz e com as demais decisões proferidas em sede de correição parcial, por sua vez, a determinação de medida que não observasse tal política como primeira opção a ser impulsionada.

O aparente conflito dicotômico entre os interesses contrapostos, ao contrário de aumentar a distância entre os atores sociais envolvidos, representa intenso fator de estímulo para tal diálogo, com base na crise gerada pela pandemia, eque afeta todos os sujeitos da relação jurídica trabalhista. Isto porque, em um cenário denominado por muitos economistas como um "tsunami econômico", o distanciamento social implica em "distanciamento econômico, diminuindo bruscamente a demanda por bens e serviços, e interrompendo a oferta de trabalho" [6]. O medo crescente decorrente da inegável recessão econômica acaba por aproximar as angústias de todos os envolvidos no impasse entre a necessidade de preservação do emprego e o encaixe do papel da economia na sociedade, trazendo à tona a necessidade de buscas de soluções agregadoras e participativas, na medida em que a economia "não é nada senão um sistema de processos, instituições e ações através das quais nós, enquanto sociedade, produzimos o que precisamos" [7].A pergunta que ecoa nesses tempos de pandemia, ainda sem resposta final, é: o que acontecerá, quando há o desligamento forçado de quase toda a atividade produtiva e comercial em uma economia global já prejudicada por anos de crescimento anêmico e níveis recordes de endividamento [8] e que estaria vivenciando, segundo análise da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, "o maior choque econômico, financeiro e social do século XXI" [9]?

Nesse contexto, "além de ações imediatas para lidar com a pandemia, a crise atual expôs a necessidade fundamental de se repensar o modo como as economias e a maioria dos economistas valorizam o trabalho sem o qual nossas sociedades não poderiam funcionar. Abordagens econômicas inovadoras, capazes de resolver esse problema, podem ajudar as sociedades a construir economias mais robustas, sustentáveis e equitativas, que recompensem cada trabalho de acordo com as contribuições reais que ele faz" [10].

Trata-se, em última análise, da paridade participativa que os estudiosos do próprio conceito de Justiça na modernidade, como Nancy Fraser, já classificavam como a possibilidade de participação dos membros de uma sociedade como parceiros na interação social, de modo que remediar injustiças, e superar os arranjos sociais que impedem ou criam obstáculos a tal interação, como o corolário do próprio conceito de reconhecimento e redistribuição [11]. Em outras palavras, quando o Poder Judiciário cria mecanismos que ambientam os atores processuais como pares, capazes de participar paritariamente na solução dos conflitos, há o denominado reconhecimento recíproco, afastando o conceito de invisibilidade que o abismo da desigualdade social originariamente produz [12]. Mormente em um cenário de previsão de retração de 3,4% no PIB e o alerta "para uma recessão na América Latina pior que a da crise da dívida da década de 80" [13], em que o Brasil é apontado no relatório da OIT como um dos três países com destaque no número de trabalhadores na economia informal afetados pelo bloqueio e outras medidas de contenção relacionadas à Covid-19, ao lado da Índia e da Nigéria [14].


 

 

 

Não é a toa que os resultados positivos da criatividade jurídica consciente já forneceram respostas rápidas para a orientação da utilização de meios consensuais e colaborativos, nessas situações em que o direito posto não apresenta solução pronta. Além da criação de novos mecanismos para garantir a continuidade da prestação jurisdicional em tempos tão sensíveis [15], chancelados em seu viés colaborativo por decisões oriundas do Conselho Nacional de Justiça [16], a Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho tem incentivado a solução consensual de conflitos em sede de correição parcial envolvendo questões de notória sensibilidade decorrentes da pandemia da Covid-19, na esteira, ainda, do objetivo preconizado pelas políticas estimuladas pela Resolução 125/2010 do CNJ.

 

O dever de cooperação, na sistemática do Direito Processual, é imperativo que se impõe na busca de uma decisão justa e efetiva, em tempo razoável. A cooperação, como princípio fundamental do processo, caminha em conjunto com a boa-fé, ditames que representam a crença no sistema de Justiça. Por isso que a legitimação para melhor solução do conflito está na busca do consenso, nos limites éticos da boa-fé que irão nortear a paz social.

Em iniciativa pioneira, tem-se instado os tribunais a realizarem audiências com o objetivo de promover a composição, não só referente aos autos originários, mas para a prevenção de situações em âmbito coletivo que possam ensejar questões de grandes e graves repercussões no cenário de crise social e econômica. O resultado tem sido bastante satisfatório, logrando êxito na pacificação de conflitos com a participação de todos os atores sociais e processuais envolvidos em ao menos cerca de 50% dos casos, com soluções que abarcam larga escala de trabalhadores e, em alguns casos, conseguem evitar a extinção de centenas de contratos de trabalho [17], em claro reflexo de que o diálogo social é, sem dúvidas, a melhor maneira antídoto eficaz para curar as nossas mazelas e angústias jurídicas atuais.

Visando a ampliar o sucesso da política de estímulo à participação paritária e à minoração dos efeitos à coletividade de uma solução imposta pelo judiciário para situações de caráter excepcional, e que demandam expertise técnica de áreas extrajurídicas, nos casos que envolvem processos cujos efeitos alcançam âmbito nacional, a Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, inobstante a análise e decisão proferida nos procedimentos de sua competência, tem recomendado a tentativa de solução consensual, inclusive para a prevenção de futuros litígios, à vice-presidência do Tribunal Superior do Trabalho, dentro das atribuições previstas no artigo 42 do Regimento Interno do TST. A cooperação e a comparticipação, aqui, se fazem presentes dentro do próprio Poder Judiciário em sua estrutura, na esteira do que as já citadas normas internacionais do trabalho indicam como sendo uma base sólida para as principais respostas políticas à crise, as quais devem se concentrar em dois objetivos imediatos: medidas de proteção à saúde e apoio econômico, tanto do lado da demanda quanto da oferta, com a responsabilidade e a participação de todos. Segundo o diagnóstico do organismo internacional ligado ao mundo do trabalho em tempos de pandemia, deve-se criar confiança para que, junto ao diálogo social, se dê efetividade às medidas de prevenção eleitas. 

Ainda atenta à tal necessidade com participativa, e à urgência da viabilidade do acesso à justiça em tempos de crise, a Corregedoria-Geral editou a Recomendação nº 08/GCJT, de 23 de junho de 2020, de modo a recomendar aos Tribunais Regionais do Trabalho "a implementação de medidas para viabilizar a atermação virtual e o atendimento virtual dos jurisdicionados", em iniciativa considerada pelo Conselho Nacional de Justiça como atinente "ao contexto de ampliação dos meios de acesso à justiça, de forma segura e eficaz" [18].

Dessa busca pela ressignificação do próprio Direito e da responsabilidade de todos ante a busca da saúde coletiva e da preservação da dignidade da sociedade em seu viés coletivo, a recolocação do papel do Judiciário no estímulo ao diálogo e à participação paritária assume protagonismo ímpar. Cabe a todos nós, atores sociais e cidadãos partícipes das mudanças trazidas pela excepcionalidade que o período impõe assumirmos as rédeas do diálogo responsável com vias construir um futuro que, apesar de incerto, está em nossas mãos. 

E, se já tem sido constatado que o diálogo social é o remédio natural para lidar com o paradoxo da coexistência do isolamento social, manutenção dos postos de trabalho, e a continuidade das atividadeseconômicas [19], também pode se afirmar que um vírus não é capaz de fazer uma revolução: pode até destruir um velho mundo que já vinha em desagregação, mas não construir um mundo novo essa é uma tarefa destinada apenas à ação coletiva, consciente e participativa [20].

 


[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Forense: Rio de Janeiro, 2015, p. 62.

[2] Cf. conceituou o economista Paulo dos Santos, em entrevista mencionando artigo de sua autoria para o site Developing Economics ("É tempo de repensar a contribuição do trabalho"). Disponível em https://developingeconomics.org/tempo-de-repensar-a-contribuicao-do-trabalho/?fbclid=IwAR3ym1Bz_s–4EnFa4eM0NEr2rUJqYM7nF6dznhd1g8toVpPxbNpJRdRWu8. Acesso em 30/6/20.

[4] Sobe o assunto, vide DA VEIGA, Aloysio Correae SIVOLELLA, Roberta Ferme. "Dejà-vu histórico, normatividade e sociedade em mutação: o direito em quarentena nas medidas de prevenção contra a Covid-19". ConJur: Sâo Paulo, 23 de abril de 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-abr-23/aloysio-correa-direito-quarentena-prevencao-covid

[5] Disponível em https://hdl.handle.net/20.500.12178/169693. Acesso em 16/4/2020.



 

[6] A expressão e o conceito foram utilizados porMark Zadin, economista chefe da Moody´s Analytics, em entrevistacitada por KLEIN, Ezra. How the Covid-19 recession could become a depression: Coronavirus is a global economic catastrophe. Tradução livre. Disponível em https://www.vox.com/2020/3/23/21188900/coronavirus-stock-market-recession-depression-trump-jobs-unemploymentAcesso em 2/7/20.

 

[7] SANTOS, Paulo dos. Op. cit.

[8] A problemática é colocada por Jerome Roos em artigo para o Tribune Magazine intitulado "The Coming Debt Deluge", trad. Livre. Disponível em https://tribunemag.co.uk/2020/03/the-coming-debt-deluge. Acesso em 28/6/20.

[9] Cf. análise citada no artigo da BBC de CHAN, Szu Ping. Global economy will suffer for years to come, says OECD. Disponível em https://www.bbc.com/news/business-52000219.

[10] SANTOS, Paulo dos. Op. cit.

[11] FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, n. 70, 101-138, 2007a. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&pid=S1519-6089201800030056300011&lng=en.

[12] FRASER, Nancy. Rethinking recognition. New Left Review, n. 3, p. 107-120, 2000. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&pid=S1519-6089201800030056300007&lng=en

[13]Os dados são trazidos por fontes citadas pelo economista Paulo dos Santos, no já citado artigo "Tempo de repensar a contribuição do trabalho". Em: https://developingeconomics.org/tempo-de-repensar-a-contribuicao-do-trabalho/?fbclid=IwAR3ym1Bz_s–4EnFa4eM0NEr2rUJqYM7nF6dznhd1g8toVpPxbNpJRdRWu8. Acesso em 30/6/20.

[15] Vide o Ato CGJT 11/2020 Ato GCGJT nº 11, de 23 de abril de 2020, acerca da realização de audiências telepresenciais.

[16] Como exemplo, a decisão proferida nos autos do PP 0003406-58.2020.2.00.0000, rel. Conselheiro Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, red. Conselheiro Emmanoel Pereira, DJe 22/06/20, em que foi julgado improcedente o pedido de suspensão automática de audiência por videoconferência ou sessão virtual por mera manifestação do advogado de uma das partes, quando ausente a anuência da parte adversa, por entender que o procedimento afronta o artigo 3º, §2º da Resolução CNJ nº 314/2020.

[17] Como exemplo, o caso de 178 trabalhadores reintegrados após a realização de audiência de conciliação determinada pela Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho. ROSSI, Thais. Acordo é feito e 178 trabalhadores serão reintegrados à Águia Branca, ES Hoje, Cad.. Cidades, Espírito Santo,17 ju.2020. Disponível em https://eshoje.com.br/acordo-e-feito-e-178-trabalhadores-serao-reintegrados-a-aguia-branca/, Acesso em 18 de julho de 2020.

[18] Trata-se de decisão proferida pela Conselheira Flávia Pessoa, nos autos do PCA 0004856-36.2020.2.00.0000, DJe 7/7/20.

[19] Extraído de assertiva de um advogado trabalhista francês, conforme matéria veiculada no Jornal Le Monde de 08/04/2020. Trad. Livre do original:  "Les négociations sociales sont le liant naturel pour mettre en œuvre l’injonction paradoxale qui nous est faite : rester chez soi, mais sans que l’activité économique ne s’arrête". DUBERTRAND, Miriam. Pendant l’épidémie due au coronavirus, le dialogue social continue.https://www.lemonde.fr/emploi/article/2020/04/08/pendant-le-covid-19-le-dialogue-social-continue_6035933_1698637.html. Acesso em 10/04/20.

[20] MARQUES, Victor. "Do keynesianismo de coronavírus à antiguerra permanente". Disponível em https://autonomialiteraria.com.br/do-keynesianismo-de-coronavirus-a-antiguerra-permanente/. Acesso em 2/7/20.

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