Opinião

De Antígona e o direito sagrado de velar nossos mortos

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21 de julho de 2020, 17h09

"Não conheces o decreto de Creonte sobre nossos irmãos? A um glorifica, a outro cobre de infâmia. A Etéocles dizem determinou dar, baseado no direito e na lei, sepultura digna de quem desce ao mundo dos mortos. Mas quanto ao corpo de Polinices, infaustamente morto, ordenou aos cidadãos, comenta-se, que ninguém o guardasse em cova nem o pranteasse, abandonado sem lágrimas, sem exéquias, doce tesouro de aves, que o espreitam famintas".

Assistindo ao noticiário, que registra cenas diárias de corpos empilhados e insepultos, caminhões frigoríficos para armazenagem de cadáveres, covas abertas em séries e funerais rápidos e com limitação de pessoas, resta impossível não se recordar de Antígona.

Os fundamentos da peça, escrita pelo dramaturgo grego Sófocles por volta do ano 442 A.C., nunca se afiguraram tão atuais.

O enredo trata das desventuras de Antígona, que pretende enterrar seu irmão Polinices, a despeito do decreto proibitivo de seu tio, Creonte.

Necessária breve digressão.

"Antígona" é a continuação das peças "Édipo Rei" e "Édipo em Colono" e integra a Trilogia Tebana.

Em "Édipo Rei", por um capricho dos deuses, Édipo, sem saber, mata seu pai, Laio, e desposa sua própria mãe, Jocasta.

Muito tempo após, quando já era pai de Etéocles, Polinices, Antígona e Ismênia frutos da relação incestuosa , o profeta Tirésias revela a Édipo e Jocasta a trágica história.

Desesperados, Jocasta se suicida e Édipo perfura seus próprios olhos, a fim de não mais ser "testemunha de minhas desgraças, nem de meus crimes! Na treva, agora, não mais verei aqueles a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecerei aqueles que não quero mais reconhecer!".

Com a partida de Édipo ao exílio, Etéocles e Polinices ajustam que o reinado de Tebas seria objeto de revezamento, com alteração de sua titularidade a cada ano.

Ocorre que o primeiro a governar, Etéocles, ao cabo do primeiro ano, recusa-se a deixar o trono e entra em conflito com Polinices, que, diante da negativa do irmão, reúne um exército na cidade vizinha, Argos, inimiga de Tebas e a ataca.

O conflito resulta na morte de ambos e na assunção do trono por Creonte, irmão de Jocasta e "cunhado-tio" de Édipo, que se revela um governante despótico, cruel e desumano.

Nesse momento, Creonte decide: a Etéocles seriam destinadas todas as honrarias fúnebres, ao passo em que a Polinices seria negado o sepultamento, legado seu corpo insepulto, sem homenagens e ao alcance dos cães e de aves carniceiras, assim decretando:

"(…) Declaro que fica terminantemente proibido honrá-lo com um túmulo, ou de lamentar sua morte; que seu corpo fique insepulto, para que seja devorado por aves e cães, e se transforme em objeto de horror".

Mais do que isso, Creonte impôs pena de morte por apedrejamento àquele que ousasse violar o decreto, sepultando Polinices.

Contudo, Antígona, irmã dos mortos, não se conforma com o decreto proibitivo do tio e decide confrontá-lo, argumentando à irmã Ismênia que se recusa a ajudá-la em seu intento de sepultar Polinices que "eu erguerei um túmulo para meu irmão muito amado", enfatizando que "será um belo fim, se eu morrer, tendo cumprido esse dever. Querida, como sempre fui, por ele, com ele repousarei no túmulo… com alguém a quem amava; e meu crime será louvado (…)".

E Antígona cumpre sua promessa e sepulta seu irmão Polinices.

Ela é chamada a responder por seu ato perante Creonte, que se mostra irredutível e manda que seus servos enterrem Antígona viva.

Ocorre que Antígona é noiva de Hémon, filho de Creonte, o qual vem por ela interceder junto ao pai, rogando sua misericórdia.

Hémon dá a conhecer ao pai que a opinião pública está contra ele, que o ato de Antígona é aprovado pelos habitantes de Tebas, que, contudo, nada admitiam, por medo de Creonte:

"Teu semblante inspira temor ao homem do povo, quando este se vê forçado a dizer o que não te é agradável ouvir. Quanto a mim, ao contrário, posso observar, às ocultas, como a cidade inteira deplora o sacrifício dessa jovem; e como, na opinião de todas as mulheres, ela não merece a morte por ter praticado uma ação gloriosa… Seu irmão jazia insepulto; ela não quis que ele fosse espedaçado pelos cães famintos, ou pelas aves carniceiras. 'Por acaso não merece ela uma coroa de louros?', eis o que todos dizem, reservadamente (…)".

Nesse momento, Creonte demonstra sua verve absolutista e questiona seu filho:

"Com que então cabe à cidade impor-me as leis que devo promulgar?

É em nome de outrem que estou governando neste país? Não pertence a cidade, então, a seu governante?".

Ao que Hémon redargui:

"Ouve: não há estado algum que pertença a um único homem!

Só num país inteiramente deserto terias o direito de governar sozinho!".

Diante da postura inflexível do pai, Hemón se retira.

Mais tarde, o profeta Tirésias logra êxito em convencer Creonte do equívoco de seu ato tresloucado:

"A teimosia produz a imprudência. Cede diante da majestade da morte: não profanes um cadáver! De que te servirá matar, pela segunda vez, a quem já não vive?".

Creonte desiste de aplicar a pena a Antígona e faz sua mea culpa:

"Agora, sim, eu creio que é bem melhor passar a vida obedecendo as leis que regem o mundo!".

Contudo, é tarde demais.

O trágico final, todos conhecemos: Antígona é enterrada viva e se enforca (a tradição mandava que quando um criminoso era condenado a ser enterrado vivo, era colocado em um grande buraco com uma última refeição, para se evitar um sacrilégio e morria de inanição ou de falta de ar dias depois); Hémon a vê morta e se mata com um golpe de espada em frente a seu pai.

Eurídice, esposa de Creonte, sabendo da morte do filho, também se suicida.

Infere-se da singela sinopse sobre a peça o eterno embate entre o Direito Natural e o Direito Positivo: de um lado, Antígona, invocando leis naturais, universais e divinas, no sentido de que todo homem tem direito a ser sepultado; de outro, Creonte, pregando a prevalência da norma legal sobre os costumes.

Aqueles que leram o clássico "Cidade Antiga", de Fustel de Coulanges, devem se recordar que ele dizia que "antes de conceber e de adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os seus mortos; teve medo deles e dirigiu-lhes preces. Parece ser essa a origem do sentimento religioso. Foi talvez diante da morte que o homem, pela primeira vez, teve a ideia do sobrenatural e quis abarcar mais do que seus olhos humanos podiam lhe mostrar. A morte foi pois o seu primeiro mistério, colocando-o no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino".

O direito do indivíduo de velar seus mortos seria, assim, prerrogativa inalienável e inafastável por qualquer lei humana, porquanto calcada em princípios ínsitos à natureza humana desde a nossa ancestralidade.

Contudo, neste momento em que o mundo vive, o direito em comento sofre violação diária.

Não desconhecemos as cautelas sanitárias imperativas no sepultamento dos mortos vítimas da Covid-19, frente aos reais riscos de transmissão do vírus.

Aqui, o direito de velar os mortos não está sendo obstado por uma regra legal, mas pela própria segurança dos envolvidos no manuseio, transporte e sepultamento do corpo, sejam profissionais de hospitais, funerárias, coveiros e dos próprios familiares e amigos do falecido.

Contudo, diante da frustração do direito ao ritual fúnebre, antevemos uma legião de familiares e amigos a sacrificar sua saúde mental.

É sabido que o processo do luto se inicia com o ritual fúnebre, quando a família e amigos do morto criam um momento de comunhão e compaixão, uma ponte de conexão com o divino.

Mais do que um tributo ao falecido, o velório representa uma liturgia benéfica para os vivos, no sentido de elaborar a perda e criar um espaço sagrado para a figura do morto dentro dos recônditos da memória.

A ausência desse rito, alertam psicólogos e psiquiatras, tende a malograr a elaboração do processo de luto, dando vez a manifestações de luto permanente, apego à imagem do morto, moléstias psicossomáticas e, em casos mais graves, transtornos psíquicos.

Que lição tirar disso tudo?

Se não há como assegurar às vítimas fatais da Covid-19 o direito ao sepultamento digno e a seus parentes e amigos o direito de velar seu ente querido, podemos (devemos!) tratar de garantir que o número de vítimas diminua.

E como?

Primeiramente, não acreditando na profecia do Coro de Antígona, nesse sentido: "Não formules desejos… Não é lícito aos mortais evitar as desgraças que o destino lhes reserva!".

Está, sim, ao nosso alcance a adoção de cautelas contra o coronoavírus. Ser por ele contaminado não é providência do destino, mas fruto de uma relação de causa e efeito que, na maior parte das vezes, pode ser evitada.

Devemos fazer a nossa parte no isolamento social, na medida do possível (muitos não podem por razões profissionais e familiares; mas muitos podem e não estão fazendo), examinar com olhos críticos o noticiário, pesquisar dezenas de vezes antes de compartilhar notícias que disseminem mentiras e proponham soluções milagrosas à cura da Covid-19 (uso de hidroxicloroquina, ivermectina, "ingestão de desinfetante", pílulas de imunidade e outras) e, mais do que tudo, denunciar o risco de genocídio que nosso país enfrenta em razão de uma política sanitária e social irresponsável e criminosa.

Voltando à nossa Antígona, vale frisar que, como toda tragédia grega, essa provoca profundas reflexões jurídicas, filosóficas e políticas, não somente no que toca à sociedade grega, mas a toda humanidade, imperando atemporal.

E, nesse diapasão, uma indagação se impõe: vale a pena se voltar contra uma ordem estatal ilegítima?

Se um governante desautoriza as medidas sanitárias recomendadas por órgãos de saúde mundiais e por seu próprio ministro da Saúde relacionadas ao uso de máscara, proibição de aglomerações e retorno de atividades comerciais, não só vale a pena, mas configura obrigação de cada um de nós. E não só por nós próprios, mas por nosso próximo que, assim como nós, tem direito inalienável à vida.

E o direito inalienável à vida enseja outro direito inarredável: o direito à memória.

Lamentavelmente, mais do que negar o sepultamento digno aos nossos mortos, estamos lhes negando o direito a serem lembrados, reconhecidos e enaltecidos.

Diuturnamente vemos listas de mortos no Brasil. Quem são? Que rosto tinham? Qual a sua história? Não sabemos. São invisíveis. São números. E números não chocam.

Susan Sontag já nos alertava no seu cru, mas verdadeiro, "Diante da dor dos outros", que:

"Recordar é um ato ético, tem um valor ético em si mesmo e por si mesmo. A memória é, de forma dolorosa, a única relação que podemos ter com os mortos. Portanto a crença de que recordar constitui um ato ético é profunda em nossa natureza de seres humanos, pois sabemos que vamos morrer e ficamos de luto por aqueles que, no curso normal da vida, morrem antes de nós avós, pais, professores e outros amigos. Insensibilidade e amnésia parecem andar juntas".

Frente a tanta dor, apeguemo-nos à justificativa apresentada por Antígona para seu ato de coragem, que não se deu apenas por crença na liberdade religiosa em detrimento da opressão do Estado, mas em nome de um sentimento ínsito à condição humana, assim revelando:

Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!”.

AMOR, esse, sim, é atemporal.

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