Opinião

A seletividade punitiva e a capa

Autores

  • Luiz Edson Fachin

    é ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) alma mater UFPR (Universidade Federal do Paraná) e professor do programa de pós-graduação do Ceub (Centro Universitário de Brasília).

  • Suzana Massako Hirama Loreto de Oliveira

    é juíza de Direito substituta em 2º Grau do TJ-PR e juíza instrutora em gabinete de ministro do STF.

  • Fábio Francisco Esteves

    é mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB) doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros (Enajun) e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação (Fonajurd) e juiz instrutor em gabinete de ministro do STF.

21 de julho de 2020, 12h05

A crise humanitária global agrava fenômenos trágicos. Perseguições xenófobas, dizimação de etnias indígenas, crimes contra a humanidade integram a barbárie a par do encarceramento brasileiro, um estado de coisas inconstitucional.

Os dados disponíveis não desmentem a percepção de um sistema punitivo absurdamente seletivo. Esse desequilíbrio compõe o código das relações de poder que projetam decisões políticas na construção do ordenamento jurídico, aptas a tencionar direitos fundamentais e democracia. O que começa com os donos do poder expõe as vísceras nos inquéritos, nas denúncias e nas ações penais.

A igualdade de todos perante a lei aí é uma máscara mesmo, como sustenta o professor Maurício Dieter. O Sistema de Justiça Penal funciona na periferia das relações centrais. É resultante de prática seletiva a serviço da manutenção do controle da pobreza.

No Brasil, 43% dos presos não ostentam condenação. Esse número deve ser avaliado em conjunto com o de execuções provisórias. São 566.001 (66%) presos na modalidade de prisão preventiva ou temporária.

As prisões cautelares instrumentalizadas para preservar, em grande parte, a ordem pública são fundamentadas no risco, gerado pelo periculum libertatis. Denunciada a ausência do periculosômetro (expressão emprestada de Zaffaroni), importa refletir sobre como se realizam os conceitos vagos trazidos pela legislação a partir da representação social do perigo, considerando os sujeitos envolvidos e suas condutas.

Se observarmos a condição de instrução (incluindo os condenados em definitivo), dado que se relaciona com a classe social a que pertencem, a pobreza está massificada no aparelhamento da Justiça criminal. Dos quase 35% dos presos sobre os quais há informação (dados do CNJ), 99% possuem apenas até o ensino médio incompleto. A quantidade de analfabetos também é expressiva.

A figura estereotipada do delinquente e, portanto, perigoso, apanha elementos na pobreza e na ignorância (ausência de instrução). Se analisamos os decretos prisionais preventivos, há uma distinção enorme entre os que possuem histórias de vidas marginalizadas e os que não, para a significação do perigo e, consequentemente, da proteção da ordem pública.

A raça também é ingrediente na perspectiva não só do perigo, mas também do controle social. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, as pessoas presas de cor preta e parda totalizam 63,6% da população carcerária.

Entre raça e Justiça penal não há um encontro sem diversas repercussões. A representação social do negro como sujeito perigoso continua, na atualidade, ativa para a manutenção do encarceramento em massa da população negra.

A faixa etária da comunidade prisional é reveladora da seletividade: os presos são em esmagadora maioria homens que se encontram com idade entre 20 e 40 anos.

Os acusados por crimes patrimoniais representam mais de um terço dos internos do sistema prisional, o que demonstra bem a repercussão das decisões políticas no campo da criminalização.

Quanto às imputações por tráfico de drogas, há traçado seletivo de alta eficácia. O alcance é direcionado para a população pobre, furtando-se de buscar a macrocriminalidade. Temos quase 22% de presos por tráfico de drogas.

Embora representem gravíssimos prejuízos, os crimes cometidos contra a Administração Pública, sabidamente uma prática constante, somente se tornam objeto da persecução penal na hipótese que Maria Lucia Karam chama de "a retirada de cobertura".

Apenas 1,43% dos presos respondem por crimes contra a Administração Pública. Mesmo tendo praticado conduta de relevante impacto danoso, por não ser o autor sujeito perigoso produtor de risco para o sistema de poder e das riquezas tuteladas, a persecução penal permite o escape.

Não por acaso, no que concerne à cognominada "lava jato" no âmbito do STF, quatro anos transcorreram: já em 2017 registrava-se o total de 125 inquéritos; hoje são 37. E apenas quatro ações penais foram julgadas pela 2ª Turma, sendo uma condenação, uma absolvição, uma condenação com embargos de declaração pendentes de julgamento e uma condenação recém-julgada com votos ainda não publicados.

Lei e Justiça iguais para todos, mas quem é essa imensidão de todos? Eis mais uma grande tragédia que parasita a República brasileira.

Artigo originalmente publicado pelo jornal Correio Braziliense

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