Direito Digital

Lei principiológica ou procedimental para fake news?

Autores

  • Juliano Maranhão

    é professor da Faculdade de Direito da USP sócio do Maranhão & Menezes e diretor do Instituto Legal Grounds.

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

  • Juliana Abrusio

    é sócia da área de Direito Digital e Proteção de Dados do Machado Meyer Advogados.

21 de julho de 2020, 9h03

ConJur
Na obra que é considerada o marco fundacional do direito na Era Moderna, Hugo Grócio chama a atenção para o fato de que "conselhos, recomendações e outros preceitos, por mais honestos e razoáveis que sejam, não nos submetem a obrigações e não se incluem no conceito de Direito".1

É curioso que, dentro do debate da chamada "lei das fake news", o alerta de Grócio para a própria definição daquilo que deve contar como "Direito" torna-se bastante atual. Trata-se da proposta, lançada na grande mídia, de que a regulação de rede sociais na internet deveria ser principiológica. Mas o que significaria uma "lei principiológica"?

O discurso dos princípios remonta um processo iniciado no pós-guerra que se intitulou “constitucionalização da ordem jurídica”. Esse consistia em balizar e interpretar toda a diversidade da ordem jurídica infraconstitucional a partir de princípios abstratos. Importantes aquisições do constitucionalismo moderno do pós-guerra foram alcançadas por meio desse processo de constitucionalização. Apenas para mencionar um deles: a derivação do direito à autodeterminação informativa no ano de 1983, a partir dos direitos fundamentais à vida privada e ao livre desenvolvimento da personalidade, na era da informação.2 A sistematização da ordem infraconstitucional por valores constitucionais permite não só a organização do conhecimento jurídico, como também o avanço da ordem jurídica e a derivação de soluções na qual a ordem jurídica infraconstitucional é indeterminada (com lacunas ou conflitos entre regras).

No Brasil, a constitucionalização do direito assumiu vestes mais radicais resultando no que alguns chamam de “ativismo judicial”, outros de “neoconstitucionalismo”, ambos termos um tanto imprecisos, mas que abraçam, de certo modo, a tese, ou “bandeira ideológica”, de que os juízes nas democracias contemporâneas teriam por missão realizar uma “justiça substantiva” e não apenas se limitar ao papel procedimental de aplicar regras legais, o que significaria acessar diretamente e deliberar sobre os valores constitucionais em jogo no caso, para então ponderar e encontrar a solução que melhor concretizar aqueles valores. Ou seja, em vez de sistematizar as regras infralegais, a principiologia significa, aqui, a supremacia dos princípios: naqueles casos em que a subsunção da regra legal apontar para uma solução divergente daquela resultante da “melhor” ponderação dos direitos fundamentais, princípios constitucionais ou valores em jogo, deve prevalecer a solução resultante da ponderação.

Não cabe aqui entrar nas diversas críticas e polêmicas a esse modelo de jurisdição, notadamente naquilo que se refere à ausência de uma metodologia clara para a “concretização de valores constitucionais” e seus impactos sobre a segurança jurídica, ou ainda, sobre a incapacidade de representação democrática que levaria a uma “magistocracia”. Basta indicar um consenso entre os envolvidos: a “constitucionalização da ordem jurídica” ou o “neoconstitucionalismo”, ou ainda, o “ativismo judicial” são termos referentes ao processo primordialmente interno ao sistema de adjudicação.

Não faria muito sentido, portanto, falar em “lei principiológica”. Ao contrário dos juízes, os legisladores já deliberam diretamente sobre os valores constitucionais, fazendo, então, escolhas políticas para as quais foram democraticamente incumbidos. Mas sua função institucional é justamente criar previsibilidade e segurança ao determinar quais são as obrigações ou permissões de comportamento para sujeitos normativos em hipóteses de fato gerais e abstratas.

Assim, ao se postular uma lei principiológica para o combate às fake news, a primeira consequência negativa é obscurecer a função primordial do processo legislativo democrático centrado no parlamento.

A principiologia pode aparecer no momento de adjudicação, quando o judiciário, controla, por interpretações, restritivas ou extensivas, o texto legislativo para melhor balizá-lo aos valores constitucionais relevantes. É certo que a lei conter menção ao subconjunto de valores constitucionais pertinente à matéria tratada, o que, aliás, já se tornou praxe na técnica legislativa brasileira, em parte como consequência do ativismo judicial. Mas se espera de uma lei que estabeleça, no mínimo, um conjunto de obrigações, permissões ou proibições para os agentes regulados, e não que apenas façam recomendações sobre boas práticas ou sobre o agir virtuoso.

Qual seria a função de uma lei que reitera os valores constitucionais ou princípios para uma determinada atividade? E para que deveriam os juízes a ela recorrer, se aqueles valores ou princípios enunciados na lei deveriam estar previstos na Constituição? Não bastaria aplicar a constituição?

Uma segunda consequência da principiologia é a indefinição e insegurança jurídica quanto às responsabilidades dos atores relevantes para lidar com o fenômeno das fake news, com suas consequências graves para o ambiente democrático. Essa insegurança pode se manifestar não só em um movimento errático de decisões judiciais sobre conteúdos a serem excluídos, como também na plêiade de conteúdos potencialmente divergentes nas práticas das diversas plataformas.

É polêmica a posição de grandes corporações do mundo digital com a divulgação de códigos ou criação de boards para decisões sobre temas que podem impactar interesses públicos ou valores socialmente relevantes. Uma das críticas está na dificuldade em sintonizar os incentivos privados com os interesses públicos. A outra, na dificuldade de fiscalização de sua aplicação efetiva e mesmo de implementação, dado o caráter abstrato dos valores elencados. Não há dúvida de que esses esforços de autorregulação são benéficos e devem ser incentivados. Afinal, as próprias plataformas de internet possuem a expertise sobre a atividade e a maleabilidade necessária para adaptar a regulação às constantes inovações. O conhecimento técnico não se encontra no Estado, mas na sociedade privada.3 Mas é certa também a dificuldade de legitimação desses mecanismos frente à sociedade em geral, havendo, na literatura, a expressão “lavagem ética” ou “fachada ética” (ethics washing)4 para cunhar os esforços de autorregulação principiológica como formas usadas pelas corporações para resistir à regulação externa.

Boa parte do argumento por uma “lei principiológica” repousa sobre a complexidade e dinâmica das redes sociais, o que tornaria impraticável uma definição prévia do que seriam conteúdos falsos ou comportamentos inautênticos nas plataformas.

O equívoco maior nesse argumento está em confundir regulação externa, pelo Estado, com a definição prévia do conteúdo verdadeiro ou falso ou do comportamento, ou das contas, autênticas ou inautênticas. Um caminho moderno tem sido implementar deveres procedimentais, especialmente para âmbitos tecnológico-dinâmicos,5 buscando-se conciliar a autorregulação pelas plataformas de internet, com procedimentos pertinentes à proteção dos interesses públicos e valores sociais relevantes.

Por meio da instituição de deveres procedimentais, os provedores de redes sociais não se responsabilizam pelo conteúdo veiculado e, portanto, não são responsabilizados por violações de terceiros, que inevitavelmente ocorrerão. Sua responsabilidade não pode ser pelo resultado, mas apenas procedimental, ou seja, por estruturar, dentro dos limites técnicos disponíveis e melhores modelos de governança, os meios para a detecção, identificação e combate à atividade desinformativa.

Deveres procedimentais podem ser divididos em dois grupos: um localizado dentro das plataformas outro localizado fora da plataforma. Ambos partem do pressuposto de que para âmbitos tecnológicos ocorreu uma profunda mudança no conceito de reserva legal.6 Essa não mais deve se orientar em formulações detalhadas com pressupostos materiais de ação concreta (técnica de programas condicionais), mas também não deve desbocar em princípios abstratos. Trata-se, na verdade, de fixar condições organizacionais e estruturais flexíveis para facilitar a participação de terceiros afetados na tomada de decisões complexas e uma mobilização conjunta do conhecimento público e privado dentro da estrutura de regulação7.

No atual projeto, é possível identificar os dois tipos de deveres procedimentais, mesmo que de forma rudimentar e carente de aperfeiçoamento.

O primeiro pretende equilibrar a dinâmica de remoção de conteúdos, que, hoje somente pressupõe intervenção judicial, com todas as garantias de contraditório e ampla defesa, quando for provocada por terceiros, que não a plataforma. Esse modelo torna ineficaz a proteção de direitos de terceiros de boa-fé (usuários) ao relegar o procedimento para o sistema judiciário, que possui uma velocidade distinta dos serviços digitais. Além disso, há grau insuficiente de transparência quanto à remoção de conteúdo pela violação da política de uso da plataforma e a observação da garantia do contraditório e ampla defesa nesse processo. Como as plataformas de rede tornaram-se hoje a infraestrutura fática da comunicação pública da sociedade, algumas preocupações de ordem pública para elas se transferem.8

O caminho de solução procedimental, já incorporado ao PL 2630, consiste em exigir que as plataformas estabeleçam um sistema de resolução de conflitos que assegure o direito de resposta, com clara e devida justificação da remoção privada de conteúdo.9 O mesmo caminho procedimental encontra-se na forma de tratamento de contas inautênticas. Esse desenvolvimento aumentaria o acesso à justiça visto que o custo para quem sofreu algum tipo de violação é reduzido tanto do ponto de vista temporal quanto do ponto de vista financeiro. O judiciário ficaria numa posição de observador (e, se for o caso, revisor) dos parâmetros criados dentro do procedimento digital. Continuaria, ademais, e obviamente, competente para o estabelecimento de penas criminais e cíveis.

O segundo tipo de dever procedimental encontra-se fora da plataforma e procura garantir uma dinamicidade na interação entre o setor público e privado do âmbito regulatório. Também há previsões nesse sentido no PL 2630, no art. 25, que prevê a criação do conselho de transparência e responsabilidade na internet, e do art. 30, que prevê a possibilidade de instituição de autorregulação regulada.

O projeto, por meio do debate público, pode ver aperfeiçoados esses institutos, parecendo-nos acertado o caminho em se privilegiar deveres procedimentais em vez de deveres comportamentais ou regulação de conteúdo. É claro que o tema é complexo e seu debate merece maturação, mas o resultado da deliberação não pode ser a mera proclamação dos valores consensuais que motivaram o início dos debates: escolhas políticas terão que ser feitas. Sem objetivos claros e obrigações concisas, o debate legislativo brasileiro sobre fake news corre o risco de acabar em uma fake law.


1 GROTIUS, Hugo. The Rights of War and Peace, Livro I, Cap. I, p. 148. Liberty Fund, 2005.

2 SCHUPPERT, Gunnar Folke; BUMKE, Christian. Die Konstitutionalisierung der Rechtsordnung. Überlegungen zum Verhältnis von verfassungsrechtlicher Ausstrahlungswirkung und Eigenstandigkeit des ,,einfachen" Rechts. Baden-Baden, 2000, pp. 13 ss.

3 LADEUR, Karl-Heinz. Der Staat gegen die Gesellschaft. Zur Verteidigung der Rationalität der Privatrechtsgesellschaft, Tübingen, 2006, pp. 360 ss. Ver também CAMPOS, Ricardo (Org.). Crítica da Ponderação. Método Constitucional entre a Dogmática Jurídica e a Teoria Social. São Paulo: Saraiva, 2016.

4 Sobre ethics washing como uma forma de evasão regulatória, ver WAGNER, Ben. Ethics as an Escape from Regulation: From ethics-washing to ethics-shopping? In: BAYAMLIOGLU, Emre; BARALIUC, Irina; JANSSENS, Liisa Albertha Wilhelmina; et al (Orgs.). Being Profiling. Cogitas ergo sum. Amsterdã: Amsterdam University Press, 2018, bem como BIETTI, Elettra. From ethics washing to ethics bashing: a view on tech ethics from within moral philosophy. In: Proceedings of the 2020 Conference on Fairness, Accountability, and Transparency (FAT* ’20), Barcelona, 2020. Nova York: Association for Computing Machinery, 2020, pp. 210–219.

5 Desenvolvimento desse tema para o direito do risco: LADEUR, Karl-Heinz. Privatisierung öffentlicher Aufgaben, em: HOFFMANN-RIEM, SCHMIDT-AßMANN (Orgs.) Verwaltungsrecht in der Informationsgesellschaft, pp. 233 ss. De forma geral sobre o tema, ver TRETE. Wissenschaft und Technik, em: ISENSSE, KIRCHHOF (Orgs.) HdBStR, tomo IV, § 88, notas marginais 40 ss.

6 Sobre o assunto ver: HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Gesetz und Gesetzesvorbehalt im Umbruch. Zur Qualitäts-Gewährleistung durch Normen, Archiv für öffentliches Recht 130 (2005), p. 45 ss. DI FABIO, Udo. Risikoentscheidungen im Rechtsstaat, pp. 465 ss.

7 BURGI, Die Funktion des Verfahrens in privatisierten Bereichen, em: Hoffmann-Riem, Schmidt-Aßmann (Orgs.) Verwaltungsverfahren, pp. 156 e 179. Ver também WOLLENSCHLÄGER, Burkard. Wissensgenerierung im Verfahren. Tübingen, 2009, pp. 175 ss.

8 CAMPOS, Ricardo; ABRUSIO, Juliana; MARANHÃO. Armadilhas e saídas para a regulação de fake news. Coluna “Direito Digital”, Conjur, 23 de junho de 2020. Ver também WIELSCH, Dan. Funktion und Verantwortung. Zur Haftung im Netzwerk. Rechtswissenschaft 10 (2019), pp. 84–108.

9 A migração da defesa de direitos para dentro da plataforma é uma tendência antiga dos setores de proteção de direito de autor e propriedade intelectual no mundo digital. Para uma adaptação para o contexto brasileiros do problema das contas inautênticas, ver CAMPOS, Ricardo; ABRUSIO, Juliana; MARANHÃO. O impasse das contas inautênticas na regulação das redes sociais. Coluna “Direito Digital”, Conjur, 9 de junho de 2020. Para explicação sobre proceduralização: Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 4.ed., SP: RT, 2020, n. 10.5.6.1, p. 1479 et seq. Para o contexto brasileiro em geral ver VAINZOF, Rony. A importância da adoção de mecanismos eficientes pelos provedores de aplicações de internet para soluções extrajudiciais de controvérsias. Dissertação (Mestrado em Direito) – Escola Paulista de Direito, São Paulo, 2016, p. 149.

Autores

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    é diretor do instituto LGPD, professor Livre-Docente da Faculdade de Direito da USP, membro do Comitê Diretor da International Association of Artificial Intelligence and Law e pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt.

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    é diretor do instituto LGPD (Legal Grounds for Privacy Design) e docente assistente na Goethe Universität Frankfurt am Main (ALE).

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    é diretora do instituto LGPD, doutora em Direito e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócia da Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados.

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