Contas à Vista

Primeiras impressões sobre as alterações na lei do saneamento básico

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

21 de julho de 2020, 8h00

Spacca
Existem alguns assuntos que são transversais a várias áreas do conhecimento, como se vê na questão do saneamento básico. Além dos aspectos centrais de engenharia sanitária, existe uma boa dose de aspectos jurídicos a serem considerados, igualmente transdisciplinares, envolvendo distintas áreas do Direito, como o ambiental, o administrativo, o econômico e, como não poderia deixar de ser, o financeiro. É sobre estes pontos que me atrevo a escrever algumas linhas iniciais para traçar um panorama geral da situação, devendo retornar ao tema em várias outras oportunidades.

Não é necessário descrever que existe um candente problema sanitário no país, identificado ictu oculi. Basta ver a periferia das grandes cidades brasileiras para se ter a certeza de que o sistema vigente não está conseguindo resolver o problema, que é básico para o desenvolvimento humano. Dados oficiais apontam que 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e 104 milhões não contam com serviços de coleta de esgoto no Brasil.

Não comungo da ideia de que tudo que é efeito pelo governo é ruim, pois isso decorre de uma vontade política para a solução dos problemas. Porém, o que se identifica no caso do saneamento é que ao longo de várias décadas a trajetória das decisões políticas não tornou efetiva a universalização pela via direta do Poder Público ou de suas empresas. Não sei se a fórmula que está sendo proposta dará certo. A aposta é que venha a ser melhor ter algum serviço do que não ter serviço algum. Em um primeiro momento não se fala de venda de ações das empresas públicas, mas de terceirização, pela modalidade de concessão de serviço público, através de licitação.

Até onde se pode identificar na tramitação legislativa, a origem deste projeto está no PL 10.996/18, proposto pelo deputado Hildo Rocha (MDB-MA) durante o breve governo de Michel Temer, ao qual foi apensado o PL 4.162/19, enviado pela atual Presidência da República em dezembro/19, aproveitando a tramitação e os debates já existentes. Só na carona é que a tramitação pode ser tão ágil – contando ainda com a vontade política das duas Casas do Congresso e com a relatoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).

A grande alteração normativa ocorreu na Lei 11.445/07, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, além de estabelecer novos parâmetros para os contratos de programa de prestação de serviços públicos, regulados pela Lei dos Consórcios Públicos (Lei 11.107/05). Outro aspecto importantíssimo foi a alteração da Lei 13.529/17, para autorizar a União a participar de fundo financeiro com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados “com vistas a apoiar a estruturação e o desenvolvimento de projetos de concessão e parcerias público-privadas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em regime isolado ou consorciado”. Outras normas também foram alteradas, como a que institui a política nacional de resíduos sólidos (Lei 12.305/10) e a Lei 13.089/15, que trata do Estatuto da Metrópole. Pela abrangência e a transversalidade das normas alteradas verifica-se o alcance dessa alteração normativa.

No estreito âmbito deste texto, deve-se destacar a alteração que determina as funções da Agência Nacional de Águas (ANA), que passará a ter suas atribuições ampliadas (Lei 9984/00), que a tornou “responsável pela instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico”( art. 1º), podendo delegar algumas de suas competências a outros órgãos e entidades da administração pública dos diversos entes federados, quais sejam “fiscalizar os usos de recursos hídricos nos corpos de água de domínio da União” e “definir e fiscalizar as condições de operação de reservatórios por agentes públicos e privados, visando a garantir o uso múltiplo dos recursos hídricos, conforme estabelecido nos planos de recursos hídricos das respectivas bacias hidrográficas”.

A ANA sai fortalecida dessa grande alteração normativa, pois a ela caberá regular os mais de R$ 700 bilhões em investimentos esperados pelas projeções oficiais, bem como os mais de 700 mil empregos que o Poder Executivo espera sejam gerados no país nos próximos 14 anos, além de estabelecer os (1) padrões de qualidade e eficiência na prestação, manutenção e operação dos sistemas de saneamento básico; (2) a regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico; (3) a padronização dos contratos de prestação de serviços públicos de saneamento básico, e a (4) redução progressiva e controle da perda de água.

A alteração pretende que até 31 de dezembro de 2033 haja universalização dos serviços de saneamento, fazendo com que 99% da população tenha acesso à água potável e ao tratamento e à coleta de esgoto, podendo tal prazo ser estendido até 2040.

Para tanto, a nova regra determina que tais serviços sejam licitados, com participação de empresas públicas e privadas, acabando com o direito de preferência das companhias estaduais. A ideia é que haja concorrência entre as empresas interessadas, pressupondo maior eficiência e atendendo à modicidade tarifária.

Os contratos de concessão deverão estabelecer metas de (1) expansão dos serviços; (2) redução de perdas na distribuição de água tratada; (3) qualidade na prestação dos serviços; (4) eficiência e uso racional da água, da energia e de outros recursos naturais e (5) reuso de despejos.

Esse modelo ainda prevê que possa haver prestação de serviços regionalizada, com agrupamento de Municípios, de forma que fique afastado o risco de municípios pequenos ou que tenham menos recursos ficarem de fora do processo de universalização.

Foram ainda estabelecidos novos prazos para o encerramento de lixões a céu aberto, com o inacessível prazo de 31 de dezembro de 2020 para as capitais e regiões metropolitanas, e para municípios com menos de 50 mil habitantes, até 31 de dezembro de 2024.

Estas são as linhas gerais desse novo marco regulatório para o setor, que requerem melhor análise, a ser efetuada em outros textos, mas que apresenta um grande desafio, seja (1) para os municípios, que terão que organizar licitações para a contratação de empresas para desenvolver o serviços nos moldes propostos, seja (2) para o setor privado, que terá que se organizar para atender as demandas emergentes, seja (3) para a ANA, que terá que se organizar para regular matéria que lhe era completamente estranha até dias atrás, seja (4) para os órgãos de controle e fiscalização, como os Tribunais de Contas, que serão demandados desde o primeiro momento para aprovar os editais de licitação, até a efetiva fiscalização do uso dos recursos públicos, e também para (5) a União, que deverá financiar os projetos a serem licitados, considerando ser muito possível que venha a ser necessário desenhar alguma espécie de subsídio cruzado para essas operações, (6) a sociedade, que deverá estar atenta para que a pretensão de universalização da prestação desse importante serviço público seja efetivamente atendida e (7) as empresas, que dentre outros aspectos, deverão reforçar seu compliance desk. Sem esquecer (8) o desafio referente aos contratos vigentes que amparam as operações atualmente em curso.

Este último item (8) foi objeto de um dos vetos apostos pelo Presidente da República ao Projeto de Lei, acelerando todo o processo, pois dispunha em seu art. 16, que os contratos atualmente existentes com empresa pública ou sociedade de economia mista poderiam ser mantidos por mais 30 anos1. Tal veto vem gerando críticas acerbas, pois, até onde se sabe, violou compromisso político firmado junto aos líderes de diversos partidos no Congresso, conforme se vê na percuciente análise de Sebastião Tojal nesta ConJur. Observe-se que o texto vetado aponta que tais situações “poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022”. Ou seja, não se tratava de uma imposição, mas de negociação que poderia gerar esta única prorrogação com prazo máximo – e não prazo único – trinta anos. Tal veto acelera todo o processo e pode gerar conflitos políticos entre o Congresso e o Executivo.

O fato é que tal modificação normativa, cujo trâmite iniciou em 2018 e só agora foi finalizado, pode mudar o panorama do saneamento básico brasileiro nos próximos anos, gerando melhorias para a população. Espera-se que isso efetivamente se concretize. Voltarei ao tema.


1 “Art. 16. Os contratos de programa vigentes e as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, assim consideradas aquelas em que tal prestação ocorra sem a assinatura, a qualquer tempo, de contrato de programa, ou cuja vigência esteja expirada, poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022. Parágrafo único. Os contratos reconhecidos e os renovados terão prazo máximo de vigência de 30 (trinta) anos e deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no art. 10-A e a comprovação prevista no art.10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, sendo absolutamente vedada nova prorrogação ou adição de vigência contratual.”

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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