Opinião

A legitimidade do mandato presidencial e o papel da Justiça na defesa da democracia

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20 de julho de 2020, 14h20

Atribui-se ao presidente americano Thomas Woodrow Wilson (1913 a 1921) a percepção de que um presidente recém-eleito em eleições democráticas disporia de plenos poderes para implementar as agendas e propostas políticas constantes do programa de governo.

Asseverava que, realizadas as eleições, "não há escolha nacional exceto a do presidente", pois, segundo sua concepção, "ninguém representa mais o povo como um todo, exercendo uma opção nacional". Acrescia, ainda, que "a nação como um todo o escolheu, e está cônscia de que não possui nem um outro porta-voz político"; e que "não há mais do que uma voz nacional no país, e é a voz do presidente" [1].

Na essência do posicionamento, encontra-se a ideia do mito do mandato presidencial, que consubstancia o entendimento de que a eleição majoritária garantiria ao eleito a legitimidade para conduzir o seu programa político chancelado pela maioria dos votantes. A rigor, trata-se da legitimidade democrática da tomada de decisões por parte do mandatário como representante de um de três dos poderes da República.

A título de ilustração de como essa perspectiva é explorada politicamente, Robert Dahl [2] faz menção à reação de Nixon diante do escândalo de Watergate, oportunidade em que, influenciado pelo seu assistente Patrick Buchanan, que considerava que seus acusadores tentavam destruir o mandado democrático de 1972, manifestou-se no sentido de que os votos que teria recebido "foram um mandato" por ele aceito para completar as iniciativas da primeira gestão e realizar as promessas que havia feito na segunda.

Dessa forma, exsurge a ideia de que os opositores a determinada conduta do presidente eleito, a rigor, colocar-se-iam contra, na verdade, à própria manifestação legítima da maioria democraticamente manifestada no pleito eleitoral nacional.

Subjacentemente a essa compreensão da legitimidade dos poderes presidenciais são incluídas para além dos efeitos constitucional e legalmente previstos as discutíveis percepções de que: I) a eleição majoritária de um presidente define um plano de ação vencedor cuja implementação in totum é desejada pela maioria dos eleitores; e II) consequentemente, na hipótese de conflitos entre o posicionamento do Judiciário e do Congresso a respeito de qualquer item do referido plano de ação, deverão prevalecer os posicionamentos do presidente, uma vez que representam a escolha da maioria manifestada pelo voto.

É de se indagar, de fato, se o povo, pela regra da maioria, efetivamente se manifestou, na integralidade, de acordo com o programa apresentado. A realidade é substancialmente mais complexa do que uma resposta afirmativa à referida indagação poderia indicar. Não por outra razão, Robert Dahl se manifesta criticamente à ideia da existência desse mandato presidencial caracterizado por plenos poderes, haja vista que, entre outros fatores, "os processos deliberativos são fracos no processo de formação de opinião do grande público quanto aos candidatos e aos presidentes" [3].

No caso brasileiro, no contexto das últimas eleições majoritárias, muito embora seja incontestável a legitimidade constitucional do mandato do presidente, é possível demonstrar, em pesquisas de opinião pública, a existência de tendências de divergências com alguns aspectos do programa vencedor. Ilustrativamente, menciona-se o acesso às armas de fogo, uma das principais bandeiras de campanha.

Enquanto em maio de 2019 assinava-se o Decreto 9.785/19 para flexibilizar o controle e o acesso a armas de fogo, um mês antes pesquisa de opinião pública do Datafolha indicava que 64% dos brasileiros seriam contrários à flexibilização. Posteriormente, o Senado tornou o decreto sem efeito e, em resposta, foram editados novos decretos (9.845/2019, 9.486/2019 e 9.847/2019). Os referidos decretos também são objeto de impugnação no Supremo Tribunal Federal, pela ADI 6134, que aguarda análise do pleno.

O exemplo demonstra a complexidade que envolve a deliberação pública acerca de temas sensíveis. O silogismo que está por trás do raciocínio de que a eleição nacional majoritária confere legitimidade (política) ampla ao mandato presidencial, pois seria consequência natural da suposta concordância integral da população com os pontos (mesmo os principais) do programa de governo vencedor, simplesmente não é verdadeira.

Retornamos, pois, ao argumento de Robert Dahl para destacar que, para que se possa ter como democraticamente legítima uma determinada decisão, é necessário que se garanta ampla oportunidade de acesso às informações que estão subjacentes às deliberações a serem tomadas. A ausência de informação poderá resultar em má compreensão entre meios e fins, assim como em uma percepção equivocada em relação à valoração de determinado fim possível. Assim, o desequilíbrio informativo, ou de compreensão, a respeito do que se está a decidir, poderá desvirtuar a escolha manifestada por determinados cidadãos, que, em outras circunstâncias, poderiam decidir de forma diferente [4].

No caso das eleições de 2018, esse aspecto tornou-se ainda mais relevante em razão do fato de termos presenciado verdadeira revolução no que se refere às fontes de informação sobre os candidatos. Se, há pouco tempo atrás, os veículos tradicionais detinham o monopólio (ou pelo menos a maior parte) da informação, hoje verifica-se uma profusão de fontes distintas e atomizadas com intensa produção de dados (verdadeiros ou não), o que dificulta sobremaneira um controle se não jurídico, ao menos social a respeito da qualidade das informações.

Por outro lado, não se pode subdimensionar o efetivo posicionamento tomado pela população votante. Posições democráticas legítimas foram firmadas e os respectivos mandatários, tanto do Executivo quanto do Legislativo, encarregar-se-ão de levá-las adiante no pleno exercício dos poderes investidos. Todavia, não o farão sem o necessário e profícuo diálogo entre os representantes das demais instituições que compõem o nosso complexo sistema de freios e contrapesos.

De fato, se de um lado, não é possível afirmar que o presidente eleito tem a prerrogativa para implementar irrestritamente seu programa, por outro deve-se reconhecer que há legitimidade constitucional para que o chefe do Executivo, no exercício de suas competências delimitadas na Constituição, exerça o mandato a fim de obter o maior êxito institucional possível, a partir da estrita observância das formas, limites e procedimentos estabelecidos no ordenamento jurídico.

Nesse particular, residem os principais riscos associados à democracia. Isso porque determinadas pautas, constantes ou não do programa de governo, não avançam na velocidade almejada pelo chefe do Executivo e apoiadores, ou, simplesmente, não avançam. Trata-se de circunstância de absoluta normalidade democrática, em que, diante de conflitos e divergências, as instituições funcionam.

A demora ou a derrota na tentativa de implementação da pauta em questão gera frustrações, ressentimentos e, eventualmente, descrédito nos processos democráticos. Sentimentos dessa natureza, a rigor, constituem o combustível de movimentos autoritários, pois, na expressão de Loewenstein, o emocionalismo é o fator de coesão de regimes autoritários [5].

Tratando de contexto político-social concernente a momento histórico específico, Loewenstein alerta que o fascismo não pode ser considerado, propriamente, como ideologia, mas sim como técnica (ou tecnologia) política, utilizada para o fim de concentração de poder. Essa técnica envolve mecanismos como a identificação de alvos (judeus, maçons, banqueiros etc); o disparo massivo de propaganda contra os adversários vulneráveis com exageros e/ou excessivas simplificações; o estímulo de conflitos entre setores da sociedade, entre outros. Em suma, são empregados instrumentos de toda natureza para efeitos de manipulações de caráter emocional de parcelas da população [6].

Da época do trabalho de Loewenstein até os dias de hoje, muito se evoluiu em termos de meios de comunicação. Estamos diante de formas muitíssimo mais sofisticadas de manipulação. A título exemplificativo, pode-se mencionar as estratégias de disparo em massa de fake news em redes sociais, contas automatizadas que são empregadas para se manifestar contra ou a favor de algo, a utilização das ferramentas de deep fake, que emulam falsamente imagens e sons de pessoas e inúmeras outras ferramentas.

Cabe, nesse particular, destacar que o texto de Loewenstein é de 1937. Os paralelismos e analogias das categorias nele desenvolvidas com o contexto atual são bastante polêmicos e ensejam discussões que excedem este artigo. Isso não significa dizer, por outro lado, que instituições democráticas e a sociedade civil não precisam ficar atentas a eventuais movimentos dessa natureza. São as condições, e respectivos defeitos, da democracia que possibilitam o surgimento de regimes autoritários.

Igualmente, não caberia uma discussão mais aprofundada a respeito do potencial destrutivo de técnicas de natureza fascista para regimes democráticos [7]. Parte-se da premissa de que, nesses casos, há a necessidade de reações por parte das instituições democráticas [8]. Considerando, por óbvio, que as instituições democráticas não podem dispor das mesmas ferramentas. A imposição de limites deve ser realizada com fundamento na ordem jurídico-normativa.

No campo político-social, há inúmeros instrumentos de fiscalização legitimados constitucionalmente que garantem as liberdades civis, como a liberdade de imprensa, liberdade de associação, direito de votar e ser votado. No âmbito legislativo, há, sob determinadas condições de viabilidade política, a possibilidade de edição de normas que responsabilizem disseminadores fake news ou que instrumentalizem a norma de vedação ao anonimato em manifestações de caráter ofensivo.

Para garantir a estrita observância desses limites, destaca-se o papel do Judiciário, sobretudo no exercício da jurisdição constitucional, que tem, entre suas atribuições, a compatibilização tanto quanto possível do desejo da maioria (ainda que assim efetivamente reconhecida), ou mesmo de uma agenda apoiada pelo Executivo ou pelo Legislativo, com a nossa carta de direitos fundamentais, que, em certa medida, resguarda posições jurídicas das minorias não contempladas pela regra da decisão majoritária.

Em tempos de significativa alternância nos poderes políticos, o Judiciário tem o papel fundamental no desenvolvimento da compreensão de que, no âmbito de um Estado democrático de Direito, as decisões democráticas, sob texto constitucional comum, seguem narrativa contínua, que, muito embora sujeita a ajustes, liga-se, de certo modo, à trajetória já percorrida, e segue adiante, afirmando e reafirmando direitos, e projetando-se para nossas melhores pretensões evolutivas como sociedade.

 


[1] WOODROW, Wilson. Constitutional Government in the United States. New York. Columbia University Press: 1908. Pp. 68 e 202

[2] DAHL, Robert. The myth of the presidential mandate. Political Science Quarterly, vol. 105, n. 3. Atunumn, 1990. 361-362.

[3] DAHL, Robert. The myth of the presidential mandate. Political Science Quarterly, vol. 105, n. 3. Atunumn, 1990. 371.

[4] DAHL, Robert. Democracy and its critics. New Haven: Yale University Press. 1989. P. 109

[5] "Since, in the long run, no government can rely only on force or violence, the cohesive strength of the dictatorial and authoritarian state is rooted in emotionalism, which thus has supplanted the element of legal security in the last analysis determining constitutional government". LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights. The American Political Science Review. Vol. 31. N. 3 Jun. American Political Science Association. 1937. P. 418.

[6] LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights. The American Political Science Review.Vol. 31. N. 3 Jun. American Political Science Association. 1937. P. 423.

[7] Para maior discussão sobre este tema: HOLMES, Stephen. "How democracies perish". In: SUNSTEIN. Cass. R. Can it happen here? New York. Harper Collins Publishers. 2018. P. 387. Can it happen here?

[8] O alerta sobre a necessidade de reações contra o risco de perecimento de regimes democráticos pode ser visto, por exemplo, no apelo de Norberto Bobbio contra movimentos capitaneados por Berlusconi, no contexto da Itália em 2000. BOBBIO, Norberto. Contra os novos despotismos: escritos sobre o berlusconismo. São Paulo: Editora Unesp. 2016. P. 93

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