Opinião

O decisionismo na decisão do ministro João Otávio De Noronha

Autores

  • Roberta de Lima e Silva

    é advogada criminalista. Sócia do escritório De Lima e Silva Advocacia. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Mestranda em Raciocínio Probatório pela Universitat de Girona. Integra o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

  • Rômulo Monteiro Garzillo

    é advogado professor de Direito Constitucional e Processo Penal e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP.

20 de julho de 2020, 18h08

O termo decisionismo costuma ser utilizado sobretudo na área penal  para designar decisões arbitrárias, autoritárias, que ignoram direitos fundamentais previstos na Carta Constitucional, culminando, via de regra, no prejuízo a liberdades individuais de cidadãos em procedimentos penais. Entretanto, a decisão proferida no último dia 9 pelo presidente do STJ, o ministro João Otávio de Noronha que possibilitou a prisão domiciliar de Fabrício Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar , nos mostra que o decisionismo também se manifesta em decisões que, legitimamente, busquem concretizar a efetividade das liberdades individuais.

Muito embora esse argumento possa causar certa estranheza e desconfiança — principalmente aos leitores mais atentos ao ascenso do autoritarismo diário demonstraremos como a decisão do ministro Noronha não passou de um reles ato de vontade, lastreado em interesses de ordem privada, de modo a carecer de juridicidade.

A princípio, é necessário admitir: a decisão, vista de modo isolado, foi de todo correta.

Como se espera, o ministro: I) deu efetividade ao primado constitucional que coloca a liberdade individual como regra e sua restrição como exceção; II) atendeu aos termos da Resolução nº 62/2020 do CNJ que "recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo"; e III) deu efetividade à dignidade da pessoa humana do casal, na medida que os possibilitou gozarem do confinamento durante uma pandemia que já ceifou, até o momento, quase 80 mil vidas no país.

Ora, mas qual seria, então, a razão de ser da polêmica que circunda decisão harmônica com o Direito pátrio? Respondemos: a sua flagrante denúncia à falha sistêmica da Justiça Penal.

A decisão em questão foi feita como um terno "sob medida", alcançando tão somente o casal Queiroz e mais ninguém.

Como bem pontua o constitucionalista Lênio Streck em sua valiosa coluna nesta ConJur [1], a decisão desrespeita os proferimentos anteriores da corte inclusive aquelas de lavra do próprio ministro Noronha [2] ignorando, portanto, o "sistema de precedentes". Desse modo, a consequência não poderia ser outra senão a elaboração de uma decisão que não poderá servir como "precedente" a uma decisão futura, já que em nenhuma outra se fundamenta e se alicerça, fugindo completamente da lógica do próprio tribunal, tamanha sua singularidade. Com efeito, trata-se, ao fim e ao cabo, de uma decisão completamente isolada e em descompasso com a grande maioria daquelas que negaram liberdade a presos que fazem parte do mesmo grupo de risco que Queiroz e cujas vidas são, igualmente, suscetíveis à ameaça pelo Covid-19 sem mencionar as centenas de mães cuja idade de seus filhos não atinge os 12 anos.

É aí que mora o ovo da serpente do decisionismo.

A disparidade de tratamento logo chamou a atenção de advogados, jornalistas e da população em geral, resultando em uma série de manifestações públicas. Assim, em artigo publicado no Estadão, advogados ligados ao IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) se manifestaram demonstrando o pífio número de liberdades concedidas pelos tribunais do país a presos que ostentam o mesmo quadro de Queiroz e de sua esposa, mas que padecem relegados às mazelas do sistema penitenciário [3]. Por sua vez, o The Intercept Brasil publicou matéria atestando que "o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, que reúne advogados de diversas partes do país, analisou 468 decisões de ministros do Supremo em ações desse tipo, e, em apenas 15,5% dos casos, as mulheres foram liberadas para a prisão domiciliar" [4].

Não obstante, atentos a tais fatos, os advogados do coletivo ingressaram com Habeas Corpus coletivo requerendo que os efeitos da decisão que beneficiou Fabrício Queiroz e Márcia Aguiar também alcançassem outros presos na mesma situação [5]. No Habeas Corpus, os advogados listaram uma série de casos em que a prisão domiciliar foi negada para pacientes com câncer e HIV, todos pertencentes ao grupo de risco da doença.

Ora, qual a razão de se negar a liberdade para mães de crianças menores de 12 anos e permitir que Márcia Aguiar volte para casa para cuidar de seu marido?

Ampliado o espectro de subjetividade e de "consciência" jurisdicional, essa pergunta restará respondida por especulações que se afastam da lógica ou que se baseiam em uma lógica particular como a decisão do presidente do STJ — e a opinião pública que se entretenha!

Vale dizer, como já se pôde sentir, que o decisionismo é um conceito cunhado pelo constitucionalista alemão (vinculado ao Terceiro Reich, frise-se) Carl Schmitt, cujo pensamento filia-se à visão antiliberal do Direito que, diversamente de seu antagonista, não acredita que o poder político deva estar submetido à Constituição. Essa lógica, que coloca a política como refém do Direito, é o que caracteriza a essência do próprio Estado DE Direito. Nesse sentido, juiz decisionista é aquele que inverte essa relação e insere o Direito (e seus derivativos, como o próprio Processo Penal) como instrumento a serviço de seus interesses políticos.

Essa perspectiva do decisionismo no interior do Processo Penal levou autores, como Pedro Serrano e Fernando Hideo, a enxergarem a instrumentalização e utilização do processo como ferramenta para atingir justamente objetivos políticos espúrios que escapam ao controle de legalidade. Aqui, como bem dizem tais autores, as decisões apresentam um verniz de legalidade, simples aparência de que está em acordo com o Direito (já que proferido por juiz togado e dentro de um aparente rito processual) quando, em verdade, em seu conteúdo, são preenchidas por um ato de vontade disfarçado de ato processual, que esvazia o direito de sua substancia constitucional.

Não se trata de um conjunto de ritos e procedimentos atinente às balizas regentes de um Estado democrático de Direito, mas de verdadeiras apropriações normativas privadas, conforme ensina Serrano, que condicionam o intérprete à hermenêutica de seus interesses pessoais, isto é, sua moralidade privada.

Assim, não passa o processo de simples farsa alegórica.

É justamente por essa razão que decisões judiciais devem ser fartamente motivadas, como bem garante o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Impor ao juiz togado a necessária refutação da tese schmittiana, ou seja, a de que a política não está acima do Direito.

Por fim, as disparidades gritantes não mudam a máxima: a liberdade é a regra e seu cerceamento, a justificada e devida exceção. Bem por isso, a defesa que aqui se patrocina é aquela compromissada com o controle da função de julgar à luz das delimitações legais, para que se possamos, quem sabe um dia, não nos preocuparmos em não sermos os amigos do rei.

 


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    é advogada criminalista, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela FGV, sócia-fundadora do escritório De Lima e Silva Advocacia em São Paulo, pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), especialista em Direito Probatório pela Universidade de Salamanca (Espanha) e mestranda em Filosofia do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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    é advogado criminalista, colaborador no escritório De Lima e Silva Advocacia e mestrando em Filosofia do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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