Diário de classe

O sistema penitenciário e a responsabilidade política dos intérpretes

Autores

  • Frederico Pessoa

    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Pietro Cardia Lorenzoni

    é advogado professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

18 de julho de 2020, 8h01

O "Diário de Classe" deste sábado (18/7) aproxima-se da própria ideia que o nomeou. Acercamo-nos das discussões de sala de aula da graduação do curso de Direito com o rigor científico que marca a Crítica Hermenêutica do Direito. A proposta aqui é analisar, dentro do limite da coluna, a situação do sistema penitenciário brasileiro. O tema é recorrente em trabalhos de graduação Brasil afora e acreditamos que é possível contribuir para o debate.

Para iniciar, lembramos de uma frase da filósofa Hannah Arendt. Em 1964, ela concede uma entrevista a Gunter Gaus na série Zur Person. Ainda numa fase inicial do diálogo, o jornalista pergunta sobre o objetivo da filósofa no momento em que escreveu a sua obra. A resposta dela é o que motiva a nossa pesquisa. Hannah Arendt respondeu: "Compreender, o essencial para mim sempre foi compreender".

Tentemos compreender, então, como convivemos com um sistema penitenciário que viola de forma sistemática a dignidade da pessoa humana a ponto do Supremo Tribunal Federal, na decisão da ADPF nº 347, entender que se trata de um Estado de Coisas Inconstitucional.

A decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal não está isenta de críticas, podendo, inclusive, ser considerada um bom exemplo de decisão ativista [1]. Na obra "30 anos da CF em 30 julgamentos uma radiografia do STF", o professor Lenio Streck denunciou com rigor e completude como o Estado de Coisas Inconstitucional é um instrumento perigoso que, na tentativa legítima de buscar efetivar a normatividade de direitos e garantias fundamentais, pode representar justamente o oposto, colocando em xeque a própria força normativa da Constituição [2].

No entanto, embora tal decisão possa ser considerada uma invasão, pelo Poder Judiciário, da seara do debate sobre a efetivação e a formulação de políticas públicas, a denúncia está feita. A situação geral e comum do sistema penitenciário nacional é inaceitável do ponto de vista constitucional, sendo palco de constantes violações a direitos fundamentais. Superlotações, condições degradantes, torturas, ausências de atenção básica à saúde dos apenados e exposições recorrentes ao coronavírus são apenas alguns dos elementos que compõem a paisagem cotidiana de boa parte dos presídios brasileiros.

Há honrosas exceções. A metodologia Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), desenvolvida em Minas Gerais, e a PCE-UP, em Piraquara, no Paraná, são exemplos de instituições comprometidas com a humanização do cumprimento da pena e, consequentemente, o combate à própria violência endêmica observada em nosso país. O resultado pode ser visto num importante indicador: baixos índices de reincidência e elevados índices de ressocialização. Contudo, elas são exceções que comprovam a regra geral.

A responsabilidade dessa situação é compartilhada. Nessa linha específica, acerta a Corte Constitucional da Colômbia quando identifica que é pressuposto do "estado de cosas inconstitucional en materia carcelaria" a falha estrutural do Estado em responder à violação maciça e generalizada de direitos fundamentais, o que não pode ser corrigido sem uma atuação conjunta, coordenada e complexa de ações de diferentes poderes e níveis federados [3]. Destarte, não é difícil identificar que os três poderes constituídos possuem certa parcela de responsabilidade diante desse contexto.

Nesse sentido, no documentário dirigido por Eugenio Puppo ("Sem Pena"), vemos exposta a atuação do Poder Judiciário diante da situação do sistema carcerário brasileiro. A partir dela, é possível constatar a utilização inadequada de institutos como a prisão em flagrante utilizada, por exemplo, para computação de estatística para as bases de dados das secretarias de segurança e das prisões provisórias utilizada praticamente como cumprimento de pena, o que pode ser diagnosticado a partir de grande parte da massa carcerária estar presa provisoriamente, aguardando julgamento (alguns sem respeito à razoável duração do devido processo).

Ainda, o documentário denota a já referida ineficiência da aplicação da pena que não cumpre a sua finalidade enquanto instrumento de ressocialização e, de modo geral, não funciona como instrumento de neutralização e diminuição da violência. A realidade é que boa parte das prisões no país contribui — na medida em que são dominadas por facções criminosas, as quais preenchem o vácuo institucional deixado pelo Estado para a absorção do apenado pela criminalidade.

Mesmo diante desse cenário, é inadequado pensar que os agentes policiais, os magistrados e os promotores que participam desse sistema veem, na figura do preso, alguém a ter sua dignidade violada. Pelo contrário, há fortes razões para crer que os agentes públicos, pelo menos a esmagadora maioria, não possuem um sentimento punitivista acrítico que nega a humanidade do outro.

Nesse sentido, parece improvável que a atual situação do sistema punitivo do Estado brasileiro se mantenha apenas com a ação de uma pequena parcela de agentes com fetichismo por linchamentos públicos. É muito mais razoável, e correto, pensarmos que a situação é diametralmente oposta: a impessoalidade com que magistrados atuam em função da extrema carga de trabalho que lhes é imposta, frequentemente decidindo por meio de terceiros (estagiários(as) e assessores(as)), os quais também veem-se impotentes diante das pilhas enormes de processos, produz um estado permanente no qual esses agentes veem-se obrigados a desonerar-se da responsabilidade política e moral de aprofundar os casos e levar a sério a prisão de um cidadão e a interpretação do próprio Direito.

Trata-se de situação que podemos relacionar com o efeito Eichmann, ou a banalidade do mal (conceito proposto por Hannah Arendt em sua análise do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém) no âmbito do processo penal brasileiro. Os agentes públicos, sufocados por pilhas de papel, alvejados todos os dias com prisões em flagrante que sequer deveriam ter sido realizadas por outros agentes, os quais operam também em más condições de trabalho afinal, a polícia que mais mata no mundo é, também, a que mais morre , são obrigados minimizar uma tarefa essencialmente humana, qual seja, a de responsabilizarem-se moral e intelectualmente diante de suas funções e os resultados de suas práticas institucionais [4].

Não é à toa que as prisões provisórias, em sua maioria, fundamentam-se em conceitos abstratos como "ordem pública" e juízos genéricos acerca do perigo do delito supostamente praticado. A razão disso é simples: é institucionalmente possível, recomendado e orientado a ser feito, considerando, ainda, ser muito menos trabalhoso operar dessa forma do que operar realizando uma análise atenta às condições particulares que cada caso apresenta.

Assim, se por um lado a burocracia estatal responsável pela organização do sistema processual penal e carcerário brasileiro viola a dignidade dos presos, considerados geralmente como vagabundos ou bandidos, minimizando e eliminando oportunidades dessas pessoas demonstrarem ser mais, também essa burocracia reduz a possibilidade de aproximação entre o intérprete e o real sentido da sua condição enquanto tal, desonerando-o, portanto, da sua cota de responsabilidade política que só é reconhecida pelo agente no seu diálogo do eu consigo mesmo.

Nessa linha, para compreendermos o problema, é preciso mencionar tanto a ineficiência referida como a tecnocracia cultivada no seio de inúmeras instituições de ensino jurídico do país. Grande parte das faculdades de direito do Brasil formam burocratas e, como se meros burocratas fossem, juízes e promotores analisam seus processos. A falha sistêmica, então, torna-se cíclica. A elevada carga de trabalho dificulta sobremaneira o necessário aprofundamento ao mesmo tempo em que o contexto exige profissionais "operários", e não intérpretes. Contudo, o processo judicial (principalmente o penal) sempre é mais que um procedimento burocrático de extração de sentido.

Nesse ponto, Arendt e Streck encontram-se: para ambos, a degradação da democracia é também resultado de um negação do ser humano. O exercício da atividade pública no âmbito do direito, na sua condição inalienável de intérprete, não pode ser confundido com uma prática mecanizada e acrítica.

Contudo, o que ocorre quando o sujeito não se sente constrangido epistemologicamente pela responsabilidade do seu "cargo" de intérprete [5]? Bom, o Diário de Classe e o Senso Incomum denunciam semanalmente os mais variados sintomas como ativismo judicial, degradação da autonomia do direito, solipsismo judicial etc.

No caso da regra geral do sistema penitenciário brasileiro, compreender a responsabilidade política e moral da função de intérprete dos agentes públicos envolvidos no processo é essencial para a concretização das promessas constitucionais. Os equívocos causados por uma má compreensão dessa função têm consequências graves [6] e marcam a nossa história institucional. Por outro lado, a construção de um sistema penitenciário adequado à perspectiva constitucional exige uma correta compreensão da responsabilidade que vem com o exercício da prática interpretativa que é o Direito.

A prática das instituições públicas envolvidas, portanto, não pode se afastar da missão constitucional de edificar um sistema penitenciário protetor da dignidade humana dos envolvidos. Com isso, lembramos de Dworkin para assinalar que a legitimidade do sistema necessita que os agentes compreendam a sua responsabilidade pessoal, moral e política para com a atividade pública e com o outro enquanto sujeito de direitos. Assim, apesar dos apesares excesso de carga de trabalho, burocratização da práxis institucional e tecnocracia do ensino jurídico , é de suma importância que cada ator institucional encare essa realidade e, na medida do possível, não retire os pesos de suas responsabilidades de seus ombros.

 


[1] STRECK, Lenio Luiz. Estado de coisas inconstitucional é uma nova forma de ativismo.In: Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 24 out. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo. Acesso em: 16 jul. 2020.

[2] STRECK, Lenio Luiz. 30 anos em 39 julgamentos – uma radiografia do STF. Rio de Janeiro: Editora Forense – Grupo Gen, 2018, cap. 25.

[3] COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-388 de 2013, M. P. María Victoria Calle Correa.

[4] DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011, p. 163.

[5] Ver verbetes INTERPRETAÇÃO – REPRODUÇÃO E ATRIBUIÇÃO DE SENTIDO (AUSLEGUNG E SINNGEBUNG), CONSTRANGIMENTO EPISTEMOLÓGICO, APPLICATIO e ESQUEMA SUJEITO-OBJETO da obra STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica – 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2020.

[6] Impossível não levantar o caso do ex-deputado Meurer. A falha e os seus perigos foram denunciados pelo professor Lenio Streck, antes (https://www.conjur.com.br/2020-jun-11/senso-incomum-inconstitucional-abstencao-ministro-contar-favor-relator) e depois (https://www.conjur.com.br/2020-jul-13/streck-voto-omissao-ex-deputado-fica-preso-morre) do triste caso.

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    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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    é advogado, professor de Direito Público do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter) e da Faculdade Monteiro Lobato (Fato), doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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