Opinião

A perícia é um instrumento indispensável, inclusive em crimes formais

Autores

  • Fellipe Matheus da Cunha

    é advogado sócio e coordenador da área de relações governamentais do escritório Malta Advogados bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduado em Direito Público pela Escola da Magistratura do Distrito Federal (Esma-DF).

  • Natalie Alves

    é advogada sócia e diretora executiva do escritório Malta Advogados.

18 de julho de 2020, 6h37

Há uma confusão habitual quanto à leitura do artigo 158 do Código de Processo Penal, artigo que preceitua a indispensabilidade do exame de corpo de delito quando a infração deixa vestígios. Há quem entenda que essa disposição dispensa a perícia criminal nas hipóteses de crimes formais ou crimes de mera conduta, como se a execução de perícias nesses casos pudesse ficar sujeita a juízo de conveniência e oportunidade de agentes públicos que conduzem a investigação.

Ocorre, todavia, que a leitura do CPP não abre margem para dúvidas: todo crime, seja ele material, seja ele formal, havendo sido deixados vestígios, importa realização de exame de corpo de delito, sob pena de nulidade (artigo 158 c/c artigo 564, III, "b"). O artigo 158 do Código de Processo Penal trata de uma verdadeira garantia processual do acusado, essencialmente no sentido de evitar condenações sem que tenha havido comprovação da materialidade delitiva.

A título ilustrativo, imagine-se a hipótese do indivíduo que responde a processo criminal por ter sido flagrado na posse de 200 gramas de pó branco. Nesse caso, o magistrado competente pelo processo e julgamento só estará autorizado a condenar o acusado por tráfico de drogas se houver, nos autos, prova pericial comprovando que tal pó branco trata-se, de fato, de uma substância entorpecente. Essa é uma garantia mínima do acusado.

Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já se pronunciou, em mais de uma oportunidade [1], que em caso de crime de descaminho (infração penal compreendida enquanto crime formal), havendo sido deixado vestígio, faz-se indispensável a execução de exame de corpo de delito, sob risco de vulnerar direitos de ordem fundamental, inclusive o princípio do devido processo legal.

Acresce-se a essa discussão que o artigo 6º, inciso I, do CPP determina que logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais. O dispositivo é claro ao estabelecer a obrigatoriedade de perícia criminal no local do delito, independentemente da sua natureza, se material ou formal.

A corroborar o caráter impositivo desse preceito, tem-se que ele resultou da reforma legislativa promovida pela Lei nº 8.862/1994. A redação anterior do dispositivo estava delineada nos seguintes termos:

"Artigo 6º (…)

I se possível e conveniente, dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e conservação das coisas, enquanto necessário".

Observa-se, portanto, que a finalidade da reforma foi justamente afastar o caráter facultativo quanto ao isolamento do local do delito, com fins de preservar o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais. Ademais, não se vislumbram, no novo dispositivo, quaisquer discriminações em termos de natureza do delito para efeitos da providência nele descrita.

Mesmo sentido manifesta o artigo 169 do CPP, o qual dispõe que, para efeito de exame do local onde houver sido praticada a infração, a autoridade providenciará imediatamente para que não se altere o estado das coisas até a chegada dos peritos, que poderão instruir seus laudos com fotografias, desenhos ou esquemas elucidativos. Como se verifica, esse dispositivo também não distingue os delitos para fins de observância da providência que ele prescreve.

E diga-se, por oportuno, que nem poderia haver essa distinção; afinal, comprovar a materialidade delitiva não se revela a única incumbência da perícia criminal. Além de produzir a prova da materialidade, a perícia busca também o conhecimento da autoria delitiva. Ressalte-se, a propósito, que essa reforma promovida pela Lei nº 8.862/1994 é corolário da compreensão, por parte do legislador, da importância da atuação dos peritos criminais para alcançar-se o conhecimento da verdade real acerca dos fatos delituosos.

Diante disso, não se afigura razoável pressupor que a perícia criminal não seja obrigatória em casos de delitos formais.

Pior do que isso: há quem entenda que existem até mesmo crimes materiais cuja perícia seria dispensável. Seria os casos daqueles crimes em que a materialidade é "facilmente perceptível", podendo ser constatada, inclusive, pelo "olho leigo". Afora a presunção desse entendimento, é importante destacar que em muitos casos aquilo que parece nem sempre é. Retome-se o exemplo do indivíduo que foi preso em flagrante por estar em posse de 200 gramas de pó branco. Imagine-se mais: que esses 200 gramas estejam repartidos em 20 embalagens de 10 gramas cada. Nesse caso, qualquer "olho leigo" afirmará com toda certeza que se trata de tráfico de cocaína.

Nessa hipótese, a constatação pelo "olho leigo" será suficiente para sustentar um édito condenatório? Presume-se que não. Afinal, o artigo 158 do CPP é expresso ao dispor que quando a infração deixar vestígios será indispensável o exame de corpo de delito, não podendo supri-lo nem sequer a própria confissão do acusado. Trata-se de uma disposição que prestigia a prova pericial, reconhecendo a sua credibilidade e confiabilidade.

Portanto, compete aos peritos criminais atestar, por meio de laudos periciais, a materialidade delitiva, uma vez que são esses profissionais que possuem a habilitação e a capacidade técnica necessária para o exercício dessa função. A confecção de prova pericial não é questão de mera política criminal; mas, ao contrário, tem relação indissociável com os direitos e garantias do acusado, sobretudo com o direito à presunção de inocência, bem com a efetividade da persecução penal — a partir de sua elevada força probatória.

Diante dessas considerações, impõe-se reconhecer que as disposições do Código de Processo Penal são evidentes quanto ao caráter impositivo da perícia criminal em todo e qualquer delito, independentemente da sua natureza.

De todo modo, ainda que se admita uma esfera reservada ao juízo de conveniência e oportunidade quanto às diligência periciais em locais de crime, esses juízos valorativos, inexoravelmente, devem ficar a cargo dos peritos criminais: profissionais que possuem a expertise necessária à avaliação da pertinência e adequação de um determinado exame pericial.

A corroborar isso destaque-se, no âmbito federal, o artigo 2º-D da Lei 9.266/1996, que confere aos ocupantes do cargo de perito criminal federal a responsabilidade pela direção das atividades periciais do órgão. No mesmo sentido, a Lei 12.030/2009, em seu artigo 2º, confere a todos os peritos oficiais de natureza criminal autonomia técnica, científica e funcional, a reforçar que cabe a esses avaliar a necessidade ou não da realização do exame pericial.

Com efeito, a legislação não intenciona atribuir aos peritos criminais uma responsabilidade meramente executiva, mas também, e sobretudo, uma responsabilidade gerencial das atividades periciais. Dessa forma, havendo alguma margem para juízos de conveniência e oportunidade quanto à perícia em locais de crime, essa valoração compete exclusivamente aos peritos criminais, no intuito de se preservar o comando insculpido no Código de Processo Penal e a própria idoneidade da persecução penal brasileira.

 


[1] TRF-1 APR: 00060438120114013304 0006043-81.2011.4.01.3304, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES, Data de Julgamento: 19/09/2016, QUARTA TURMA, Data de Publicação: 30/09/2016 e-DJF1; e ACR: 27500 DF 0027500-51.2006.4.01.3400, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO, Data de Julgamento: 22/01/2013, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.1286 de 08/02/2013.

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