Procuradores da autointitulada "lava jato" em São Paulo (FTLJ-SP), para manter com eles próprios feitos desmembrados da "força tarefa" em outros estados — ignorando o princípio do promotor natural —, ignoraram que tais feitos deveriam ter sido distribuídos a outro ofício, já prevento.
É o que mostra uma representação assinada pelo procurador Thiago Lemos de Andrade, enviada ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em março deste ano. A peça, conforme revelou a ConJur, explica como a "força-tarefa" burlou o sistema regular de distribuição de processos.
Segundo narrou Lemos de Andrade, em setembro de 2015, circulou na rede de mensagens eletrônicas da Procuradoria da República de SP (PR-SP) uma mensagem dando conta de que, a pedido da procuradora Anamara Osório Silva, à época chefe da PR-SP, autos de desmembramento da "lava jato" em outros estados deveriam ser enviados ao seu gabinete, ao invés de passarem pela livre distribuição.
Após sua menagem causar surpresa e reações contrárias entre os procuradores, os autos foram distribuídos livremente, via sorteio, ao 16º Ofício Criminal da PR-SP. O caso deu origem à apelidada "operação custo brasil".
Em 2018, outro e-mail veio à tona: todos os novos autos com menção à "lava jato" deveriam ser enviados à Anamara, não mais chefe da PR-SP, mas agora procuradora lotada no 5º Ofício Criminal.
Dessa vez ela obteve êxito, tendo recebido a Notícia de Fato 1.34.001.004550/2017-19, um dos vários anexos desmembrados do acordo de delação premiada da construtora Odebrecht. Para receber apoio na condução da notícia de fato, Anamara solicitou à Procuradoria-Geral da República a criação do que se tornaria a força-tarefa da lava jato.
Com isso, criou-se uma regra: desde então, os feitos que levam o rótulo "lava jato" são todos enviados à FTLJ-SP, que funciona no 5º Ofício Criminal, ainda que não haja nenhuma previsão permitindo tal concentração de processos.
16º Ofício
Na representação enviada ao CNMP, Lemos de Andrade diz que, se os procuradores da FTLJ-SP respeitassem seus próprios critérios — admitindo que um mesmo ofício pudesse concentrar casos da "lava jato", o que não é permitido, mas ainda assim é feito — os autos desmembrados deveriam, por prevenção, ser remetidos ao 16º Ofício, que recebeu o primeiro processo, e não ao 5º.
"Na seara da PR-SP, o primeiro desmembramento oriundo da operação lava jato havia sido distribuído ao 16º Ofício Criminal, quase dois anos antes que o 5º Ofício recebesse a Notícia de Fato 1.34.001.004550/2017-19 e sua titular, a procuradora da República Anamara Osório Silva, resolvesse fazer uso da grife 'lava jato' para tocá-la adiante. Portanto, ainda que o termo 'lava jato' pudesse servir de parâmetro para a distribuição por prevenção nesta unidade, o Ofício hipoteticamente prevento seria aquele (16º Ofício Criminal) e não este (5º Ofício Criminal)", diz Lemos de Andrade.
Ele, por fim, observa que a situação em São Paulo é tão à parte que, diferentemente de como ocorre em outros estados, em que os casos da "lava jato" são julgados em uma única vara, diversas seções apreciam as ações em SP. No Paraná, por exemplo, os processos são julgados na 13ª Vara Federal de Curitiba.
"(…) Ao contrário do que acontece em outros mutirões da operação lava jato, cujos casos estão concentrados em uma única vara da respectiva seção judiciária federal, nessa circunscrição de São Paulo os inúmeros casos sob o rótulo guarda-chuva de 'lava jato' tramitam em diferentes varas, circunstância que, por si só, escancara a ausência de conexão entre eles", diz.
Após a representação de Lemos de Andrade, o conselheiro Marcelo Weitzel Rabello de Souza, do CNMP, determinou que o uso de "critérios próprios" para distribuir processos relacionados a "lava jato" deve ser imediatamente cessado na Procuradoria da República de São Paulo até que eventuais irregularidades sejam apuradas.
"Distribuição de processos"
Um outro documento dá conta do modus operandi lavajatista em São Paulo. Embora tenha sido concebida para fornecer auxílio a procuradores naturais, a "força-tarefa" em São Paulo atua como uma unidade que concentra e distribui processos. Essa forma de atuação foi revelada em um ofício assinado pela procuradora Viviane de Oliveira Martinez e enviado ao PGR, Augusto Aras, em 18 de maio.
Martinez narra que, desde que assumiu a chefia do 5º Ofício Criminal da Procuradoria da República de São Paulo, em 13 de março de 2020, constatou que "há um contingente muito grande de processos que foram remetidos à FTLJ-SP (força-tarefa da "lava jato" em São Paulo) sem passar pela livre distribuição, dos quais muitos não são conexos na forma estabelecida na PR-SP e deveriam ser livremente distribuídos".
A força-tarefa, que funciona de modo autônomo no 5º Ofício Criminal, foi criada para prestar auxílio aos procuradores naturais sorteados para atuar nos casos envolvendo a "lava jato".
Desde 2018, no entanto, os processos com a grife "lava jato" são enviados diretamente à força-tarefa que, segundo critérios próprios de conexão entre os casos, retém ou distribui os feitos aos procuradores do 5º Ofício.
O simples fato dos processos estarem sendo enviados diretamente aos procuradores lavajatistas fere os preceitos constitucionais da isonomia, impessoalidade e do promotor natural, representando violação ao artigo 129, parágrafo 4º, combinado com o artigo 93, XV, da Constituição. E o fato de a força-tarefa estar distribuindo processos viola os próprios motivos pelos quais ela foi concebida.
"Na PR-SP, na prática, a FTLJ-SP continua sendo uma unidade de distribuição, pois os feitos são encaminhados diretamente a ela, e não ao 5º Ofício Criminal (são dois cartórios separados e estruturas físicas localizadas em diferentes andares). Como ela é composta por colegas, não é possível que eu avoque processos de lá e que decida sobre minha atribuição", prossegue a procuradora. Ela também informou que optou "por simplesmente não assinar com os colegas de lá [da força-tarefa] os feitos que não foram livremente distribuídos ao 5º Ofício Criminal".