Limite penal

É preciso se dar fim à
seletividade probatória

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

17 de julho de 2020, 8h32

Spacca
O texto de hoje começa com cenas do cotidiano que há meses são compartilhadas pela grande maioria de leitores desta coluna.

Cena 1. São dez da manhã de um dia qualquer da semana. Lúcia, nossa personagem fictícia, acaba de receber as compras de supermercado, ordenadas no dia anterior. Ainda de máscara, após efetuar o pagamento na porta, encarrega-se de levar todas as bolsas para a cozinha. No caminho, Lúcia presta atenção redobrada e faz as curvas de modo a evitar qualquer contato entre as bolsas e as quinas dos móveis. Já na cozinha, tendo aterrissado todas as sacolas perto da pia, respira fundo, ao olhar para a quantidade de frutas, legumes, latas e caixas… Ela sabe que terá de se dedicar à higienização de todos os alimentos da semana ao menos pela próxima hora e meia. Enquanto lava as batatas, Lúcia liga para sua filha, Mariana: "— Mari, não se expõe, se cuida, deixa pra ver os amigos depois, minha filha. Esse vírus pode ser assintomático, mas pode não ser também. Todo cuidado é pouco."

Cena 2. Fim de semana, seis da tarde de domingo. Edson, nosso segundo personagem fictício, liga o computador e começa uma reunião por aplicativo. A ocasião é o aniversário de oitenta anos de sua mãe, Dona Edith. Depois de algumas tentativas, finalmente toda a família consegue se conectar; entre irmãos, filhos e netos da aniversariante. Sopram velinhas à distância e encerram a confraternização. Não sem antes explicarem para a Dona Edith que tudo é diferente este ano para assegurar a sua saúde; que as coisas irão melhorar e que certamente a comemoração dos seus oitenta e um anos contará com muitos beijos e abraços presenciais.

Em comum, Lúcia e Edson têm a profissão: ambos são juízes da Justiça criminal brasileira. E, tal como a grande maioria dos magistrados brasileiros, Lúcia e Edson vêm, reiteradamente, denegando os habeas corpus cujo pedido tenha o avanço da Covid-19 por fundamento1. Em suas decisões pode ser lido algo como "A pandemia provocada pela Covid-19 exige cuidados do Poder Judiciário para garantir a integridade dos custodiados. No entanto, não pode significar salvo conduto para liberar presos indiscriminadamente".

Higiene e isolamento — novos hábitos cumpridos à risca entre os seus — são desconsiderados quando o assunto passa a ser a vida "dos outros". Em tempos de pandemia há, pois, uma abissal distância entre o elevado grau de precaução incorporado em suas rotinas e o modo como decidem sobre os riscos à vida da população carcerária. Vale dizer, desta mesma população que já se encontra exposta a um estado de coisas reconhecido como inconstitucional, desde 2015, pelo próprio Supremo Tribunal Federal (ADPF 347). Como será possível ver, esta falta de empatia influi no raciocínio probatório realizado nas decisões denegatórias dos pedidos de HC’s.

Em caso de Paciente com câncer:

Habeas corpus – Execução penal – Paciente, que alega ser portador de “câncer”, “hipertensão arterial” e “hérnia inguinal” e que cumpre pena carcerária em regime semiaberto – pedido de prisão domiciliar, como medida para redução do risco de contaminação pelo “coronavírus” – Pleito indeferido pelo d. Juízo das Execuções – Decisão que deve ser mantida – Recomendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça que não estabelece a obrigatoriedade automática de concessão do benefício da prisão domiciliar, mas apenas recomenda o exame de seu cabimento segundo critérios nela enumerados – Prisão domiciliar que tem como pressuposto a comprovação da debilidade extrema em função de doença grave (artigo 117 da Lei de Execução Penal), existindo na legislação sobre execução penal em vigor previsões voltadas ao atendimento da saúde dos indivíduos que se encontram presos em razão da prática de crime – Necessidade de demonstração da impossibilidade de outras medidas de prevenção contra o contágio pelas autoridades incumbidas da administração pública dos estabelecimentos prisionais – Ausência de demonstração pelo paciente de que padece de especial condição de vulnerabilidade no presídio em que se encontra: que apresenta sintomas reais da enfermidade relativa à COVID-19 ou necessita por qualquer outra razão de cuidados especiais – Inexistência de coação ilegal – Ordem denegada2.

Em caso de Paciente portador de HIV:

Nada obstante se verifique que o ora Paciente foi identificado como portador de HIV, não se comprovou a inexistência de tratamento médico-hospitalar na Unidade Prisional em que o Paciente está custodiado. É dizer, não foi demonstrado, por meio de documentos hábeis pré-constituídos, que, além de ser portador de uma doença grave, o tratamento médico não possa ser ministrado no estabelecimento prisional, em que se encontra recolhido atualmente, ou, ainda que o tratamento médico ali prestado ao Acusado é ineficiente ou inadequado. Precedentes. 9. Ademais, quanto aos argumentos relativos à pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), é de rigor salientar que o disposto no art. 4o, inciso I, da Recomendação n. 62/2020, do Conselho Nacional de Justiça, trata-se de uma recomendação aos Magistrados, a fim de que reavaliem as prisões provisórias, visando à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto de disseminação do vírus, o que, decerto, foi realizado pela Autoridade Coatora, nada obstante a sua decisão haja sido lavrada em sentido contrário ao entendimento da defesa técnica. De toda sorte, salienta-se que a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Amazonas, já vem adotando as medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus, objetivando evitar e/ou reduzir a exposição dos presos aos riscos de contágio, fornecendo o tratamento adequado aos custodiados e isolando os que pertencem ao grupo de risco 10. Ordem de Habeas Corpus CONHECIDA E DENEGADA3.

Em caso de Paciente hipertenso e diabético:

CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. DISCUSSÃO ACERCA DA AUTORIA. ANÁLISE DE PROVAS. INACEITABILIDADE. VIA ELEITA INADEQUADA. CONCESSÃO DE LIBERDADE OU PRISÃO DOMICILIAR PELO COVID-19. GRUPO DE RISCO. INACEITABILIDADE. AUMENTO DA POSSIBILIDADE DE CONTÁGIO NÃO COMPROVADO. APLICAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. INADMISSIBILIDADE. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. MANUTENÇÃO DA PRISIONAL NECESSÁRIA. 1. A via estreita de habeas corpus é inadequada para analisar as provas atinentes à autoria delitiva. 2. Inviável a concessão de prisão domiciliar somente com base na pandemia do coronavírus COVID-19, eis que o Paciente não demonstrou aumento da possibilidade de contágio. 3. Impossível aplicar as medidas cautelares diversas da prisão, eis que a segregação cautelar foi decretada de acordo com fatos concretos apurados até o momento. 4. Habeas corpus parcialmente conhecido e denegado4.

Em comum, as três decisões denegam os pedidos de prisão domiciliar com base em uma suposta insuficiência probatória a qual, finalmente, entendem correr às custas da defesa. De acordo com a argumentação dos magistrados, estaria à conta dos Pacientes, respectivamente, enfermos de câncer, HIV e de comorbidades (hipertensão e diabetes) a prova de riscos adicionais que a manutenção prisional causaria às suas saúdes. Como vimos, os Pacientes com câncer e HIV teriam falhado na demonstração de que as suas unidades prisionais não ofereceriam tratamento suficiente à manutenção de sua saúde, enquanto que, por outro lado, o Paciente com as comorbidades não teria demonstrado o incremento do risco de contágio por Covid-19 caso fosse mantida a sua custódia. Essas decisões representam equívocos em matéria probatória. Considerando estes mesmos casos, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos também observou os excessivos requisitos exigidos pelos julgadores5.


 

 

 

No que refere ao raciocínio probatório, já de partida será necessário reconhecer que consiste em atividade complexa. Ir das provas aos fatos que se quer determinar implica a realização de uma série de inferências6. Chama-se inferência o passo que vai de uma informação integrada ao processo à conclusão sobre o fato cuja ocorrência importa ao caso em questão. Vejamos um exemplo: nu processo pela suposta prática de homicídio, a informação de que havia resíduos de pólvora nas mãos de Felipe (acusado) conduz à conclusão de que Felipe manipulou uma arma de fogo; a informação de que por debaixo das unhas de Maurício (vítima) havia material genético compatível com o material genético de Felipe conduz à conclusão de que o Felipe e a Maurício procederam a uma luta corporal. Estas inferências são chamadas de inferências probatórias epistêmicas. Probatórias porque são realizadas precisamente na etapa processual das provas e epistêmicas porque se devem ao esforço do agente em se aproximar ao máximo da verdade dos fatos. O esforço de determinar os fatos o mais próximo possível a como ocorreram, em realidade, dependerá do emprego de generalizações empiricamente observadas do tipo “Quando A ocorre, B ocorre também”. Elas são válidas porque efetivamente a ocorrência de fatos da categoria A costuma ser seguida da ocorrência de fatos da categoria B. Logo, quando no processo se determina a ocorrência de um fato a, fica autorizada, com isso, a conclusão da ocorrência do fato b também. Voltando para o nosso exemplo do homicídio por arma de fogo, são as generalizações empíricas relativas i) à “aderência de vestígios” e “manuseio de arma de fogo” e ii) “presença de material genético debaixo das unhas” e “luta corporal”, preexistentes ao caso, que permitem que se considere a hipótese acusatória mais provável do que a hipótese da inocência; pelo menos até que outras informações sejam produzidas pela defesa, de modo a debilitar tais conclusões.

 

Não é demais esclarecer que as inferências probatórias epistêmicas representam a valoração racional e livre das provas. De posse de suas faculdades intelectuais, o juiz integra as generalizações que estima relevantes aos fatos do caso individual que tem sob exame. Não há regras que predeterminem o rendimento de meios de provas em específico, ou que, ainda, entre eles, produza qualquer sorte de hierarquia. Daí dizer-se livre. Mas também é importante salientar o predicado racional, que significa que a liberdade para valorar as provas não inclui liberdade para considerar prova sua mera convicção íntima. O juiz é livre de tarifações jurídicas que engessem previamente o raciocínio, mas não é livre da tarefa de determinar fatos conforme razões cuja qualidade possa ser controlada por outros sujeitos.

Apesar do importante papel desempenhado por inferências probatórias epistêmicas no contexto de determinação dos fatos no processo, não há como se deixar de acudir às chamadas inferências probatórias normativas. Há exercício livre das faculdades cognitivas, mas a determinação dos fatos também pode significar o seguimento de regras. A regra conhecida como presunção de inocência, por exemplo, obriga o juiz a decidir com base na inocência sempre que inexistam provas suficientes da culpabilidade do acusado. A regra antecipa o resultadoinocente” nas hipóteses de ausência/insuficiência de provas. Terminada a atividade probatória, perseverando a dúvida, a regra predetermina que ela ‒ a dúvida ‒ deve aproveitar sempre ao réu. Desse modo, quando, por exemplo, no processo criminal movido contra Joana, o juiz constata que só havia prova de reconhecimento e que, ademais, dita prova fora realizada por show up (via foto de whatsapp), deve reconhecer a obrigação de decidir com base na inocência da ré. A regra da presunção de inocência impõe um desfecho obrigatório ao caso de Joana e a todos os casos que apresentem as mesmas características.

Assim, resta evidente que na inferência probatória normativa, a regra jurídica (presunção de inocência, no exemplo) ocupa estruturalmente o mesmo lugar que a generalização empírica ocupa na inferência probatória epistêmica. Isto significa que há situações em que os arquitetos responsáveis pelo desenho institucional probatório reconhecem discricionariedade ao julgador, mas também há hipóteses em que a determinação dos fatos contará com a delimitação a partir de regras. Embora a regra da presunção de inocência seja componente das mais destacáveis inferências probatórias normativas, nada impede que outras sejam somada a ela. Por exemplo, a criação de uma regra de prova legal em negativo segundo a qual "O reconhecimento de pessoa por show up é nulo" obrigaria a inutilização pelo juízo de todo e qualquer reconhecimento de pessoa realizado por show up, sem deixar ao campo de discricionariedade judicial o risco da sobrevaloração.

Em suma: claro está que a determinação dos fatos é complexa e mais; que a sua complexidade é perfeitamente justificada. Nela, inferências probatórias epistêmicas e normativas dividem espaço. As inferências probatórias normativas servem à determinação dos fatos em hipóteses as quais o emprego da discricionariedade judicial no tema probatório envolve riscos que merecem ser evitados. A condenação de inocentes é uma dessas hipóteses. Mas em se falando em riscos, o que pensar do risco à vida no contexto de avanço da pandemia?

Isso nos leva de volta às decisões denegatórias dos pedidos de prisão domiciliar. Como já afirmado, nelas são cometidos equívocos probatórios. Apresentadas as categorias conceituais das inferências probatórias epistêmicas e normativas, proponho que realizemos a análise daquelas deficiências argumentativo-probatórias. Como visto, em suas palavras, os magistrados afirmam que a hipótese defensiva não estava suficientemente corroborada pelo conjunto probatório produzido. Nenhuma afirmação poderia ser mais apressada, contudo.

Em primeiro lugar, os Pacientes demonstraram padecerem das enfermidades de câncer, HIV e das comorbidades de hipertensão e diabetes. Sobre o incremento dos riscos da Covid-19 nas hipóteses citadas, a Recomendação 62/2020 do CNJ (publicada ainda no mês de março) afirma:

CONSIDERANDO que o grupo de risco para a infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 compreende pessoas idosas, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções;

(…)

RESOLVE:

Art. 1o Recomendar aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus ‒ Covid-19 ‒ no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo7.


 

 

 

Parágrafo único. As recomendações têm como finalidades específicas:

 

I a proteção da vida e da saúde das pessoas privadas de liberdade, dos magistrados, e de todos os servidores e agentes públicos que integram o sistema de justiça penal, prisional e socioeducativo, sobretudo daqueles que integram o grupo de risco, tais como idosos, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções.

Como se pode ver, de forma explícita, a Recomendação n. 62 afirma que é preciso adotar medidas preventivas à propagação da infecção da Covid-19, para, assim, salvaguardar a vida e a saúde das pessoas privadas de liberdade, sobretudo daqueles que integram o grupo de risco, composto por idosos, gestantes, pessoas com doenças crônicas (câncer8), outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções.

Além do mais, tendo em vista a competência do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ para a fiscalização do sistema prisional e socioeducativo, não há como se desprezar o caráter normativo da Recomendação 62. A interpretação literal do vocábulo “recomendação” deixa a desejar, principalmente considerando a gravidade dos riscos envolvidos. Tal como explicado em momento anterior deste artigo, em certas situações, os arquitetos responsáveis pelo desenho institucional — neste caso, probatório — podem decidir, justificadamente, determinar fatos a partir do constrangimento criado por normas jurídicas. À semelhança da presunção de inocência, a Recomendação 62 do CNJ reduz a atuação discricionária judicial e, nesta medida, erra o juiz que não a observa. Enquanto a presunção de inocência cuida de expressar que na dúvida, é melhor absolver culpados a condenar inocentes, a Recomendação 62 prefere mandar para casa pessoas que poderiam ter a sorte de, permanecendo custodiadas, nunca se contaminarem. O que em definitivo se pretende evitar com a Recomendação 62 é que o sistema prisional venha a contribuir para a morte de pessoas que poderiam continuar vivendo. Em casos concretos as medidas de desencarceramento poderiam ser prescindíveis, mas o risco de agressivo e rápido desenvolvimento da Covid-19 nos organismos humanos com a probabilidade do desfecho "morte" é algo que acertadamente não se quer pagar para ver.

Logo, as defesas que corroboraram o pertencimento dos Pacientes a grupos de risco provam o suficiente para a realização de justificadas inferências probatórias epistêmicas e normativas por parte dos magistrados. Epistêmicas porque confirmam, por meio de laudos técnicos confiáveis, que cada Paciente possui determinada doença, e isso implica a subsunção do caso individual à categoria geral "grupo de risco". Normativas porque, a partir da subsunção do caso à categoria "grupo de risco", não resta alternativa distinta à sujeição judicial ao disposto pelo CNJ.

Por derradeiro, a tudo isso ainda pode se sobrepor o status de fato notório da pandemia da Covid-19 bem como do estado de coisas inconstitucional em que vive a população carcerária brasileira. Como explica Gascón Abellán, "pode-se dizer que são fatos notórios os que são conhecidos ou que podem ser conhecidos por todos, e, em consequência também pelo juiz; por exemplo uma inundação, uma epidemia (…)"9. Tanto o estado inconstitucional de coisas reconhecido pela mais alta corte brasileira, quando os avanços da Covid-19 são fatos notórios para o magistrado brasileiro. Até porque, o mínimo de coerência deve ser exigida dos juízes, que resistem ao retorno das atividades presenciais10.

Seriam os magistrados brasileiros incapazes de empatia? Casos como o de Queiroz e de Geddel já mostraram que não. Nestes casos, a prova de pertencimento dos Pacientes a grupos de risco foi considerada suficiente, e o Judiciário não deu de ombros aos riscos que a aglomeração, a insalubridade, a manifesta inconstitucionalidade a que se encontra submetida a terceira maior população carcerária mundial representam ao incremento do risco de contágio por Covid-19. Assim, à semelhança exata destes casos, verificada concretamente alguma hipótese presente na Resolução 62 do CNJ — que, friso, vai além do pertencimento a grupos de risco — cabe ao Judiciário brasileiro a sua irrestrita observância. A revogação das prisões preventivas por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, por exemplo, é hipótese na qual se subsume a grande maioria dos assistidos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, em razão do "Mutirão Pandemia Covid-19: pelo direito de defesa da vida"11: nos dados provisórios conhecidos até o presente momento, dos 310 assistidos, 274 casos devem-se a processos por crimes sem violência, precisamente como já contemplado pela Resolução 62. Ou seja: tal qual fizeram nos casos de Queiroz e Geddel, o Judiciário não pode se omitir da sua função, sob pena de eliminar de vez as chances de justo equilíbrio no jogo democrático. Empatia e raciocínio probatório justificado para todos. É preciso se dar fim à seletividade probatória endêmica de que padece o nosso sistema de justiça.

Agradeço as observações feitas por Rachel Herdy, Alexandre Morais da Rosa, Geraldo Prado, Simone Schreiber e Lívia Moscatelli. Também agradeço as informações cedidas pelo IDDD, em especial a Vivian Peres


1. Segundo levantamento feito pela Defensoria Pública de São Paulo, entre março e junho de 2020, dentre os 25.822 processos movimentados desde a edição da Recomendação 62 do CNJ apenas 756 processos tiveram alvará de soltura expedido no período, o que representa apenas 3% deles. Acesso por: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=89767&idPagina=3086

2. TJSP; Habeas Corpus Criminal 2098876-58.2020.8.26.0000; Relator (a): Otavio Rocha; Órgão Julgador: 7a Câmara de Direito Criminal; Foro de Bauru – 2a Vara Criminal; Data do Julgamento: 08/07/2020; Data do Registro: 08/07/2020. Grifei.

3. TJAM, Habeas Corpus Criminal n. 4002620-31-2020.8.04.0000, Des. Rel. Hamiltom Saraiva dos Santos, 1a Câmara Criminal, Dje 10/06/2020). Grifei.

4. Relator(a): Elcio Mendes; Comarca: Sena Madureira; Processo n. 1000825-25.2020.8.01.0000; órgão julgador: Câmara Criminal. Dara do julgamento: 08/06/2020; Data do registro: 08/06/2020.

5. Habeas Corpus Coletivo impetrado pelo COLETIVO DE ADVOCACIA EM DIREITOS HUMANOS. Acesso: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/hc-coletivo-aplicacao-precedente-1.pdf

6. A mesma temática foi abordada em Matida, Janaina.; Herdy, Rachel. Inferências probatórias: entre compromissos epistêmicos. In Cunha, José Ricardo (org.). Epistemologias Críticas do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. Acesso livre por: https://www.academia.edu/31120187/As_inferências_probatórias_compromissos_epistêmicos_normativos_e_interpretativos. Em realidade, Herdy e eu desenvolvemos reflexões iniciadas por Daniel González Lagier em, por exemplo: Quaestio Facti: Ensayos de prueba, causalidad y acción. Ciudad de México, Fontamara, 2013. Acesso por: https://www.academia.edu/24429680/Quaestio_facti_Ensayos_sobre_prueba_causalidad_y_acción. Em cenário brasileiro e no mesmo sentido, ver Badaró, Gustavo. Epistemologia Judiciária e Prova Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 93-ss.

7. Grifos no original.

8. câncer consiste em doença crônica segundo órgãos oficiais brasileiros. acesso por: https://www.saude.gov.br/vigilancia-em-saude/vigilancia-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-dcnt

9. Gascón Abellán, Marina. Los hechos en el derecho. Madrid: Marcial Pons. p. 181.

10. https://www.conjur.com.br/2020-jun-15/retomada-atividades-presenciais-judiciario-minimizar-riscos

11. https://iddd.org.br/iddd-da-inicio-a-novo-mutirao-carcerario-diante-de-epidemia-do-novo-coronavirus/

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  • Brave

    é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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