Opinião

Ministro Schietti coloca o dedo na ferida dos 'precedentes'

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17 de julho de 2020, 19h10

Em uma webinar, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogério Schieti provocou interessante polêmica. Disse a verdade, colocou o dedo na ferida da aplicação do Direito e expôs outra chaga da cotidianidade das práticas tribunalícias: o "sistema" de precedentes que não é sistema. E sua desobediência.

Spacca
Explico. O ministro, falando sobre o TJ-SP, traz um exemplo de crime de tráfico privilegiado. A pena foi a mínima (um ano e oito meses). Porém, o regime foi o fechado, totalmente contrário à jurisprudência do STF, que reconhece que essa figura delitiva não é equiparada a hediondo e reconhece a possibilidade cumprimento de pena em regime aberto e substituição da PPL por PRD.

Schietti fez também, e nesse contexto, crítica à utilização inescrupulosa das prisões provisórias enquanto meio para cumprimento de pena, quando não respeitada a sua finalidade instrumental-cautelar. Mais, denuncia que o TJ-SP não segue a orientação das cortes superiores, que afirmaram esse caráter instrumental das prisões provisórias

Ou seja, o Tribunal de Justiça de São Paulo, segundo Schietti, não observa a jurisprudência de STJ e STF. Esse é o ponto. Não é o primeiro a assim lançar essa crítica. Os ministros Sebastião Reis, Jorge Mussi e o próprio Schietti já haviam feito esse tipo de crítica. Já em 2018, o presidente do STF, João Otavio Noronha, fazia essa crítica ao TJ-SP.

Na sequência, Schietti faz menção ao sistema de precedentes como mecanismo de padronização e controle das decisões (isonomia e segurança jurídica). Não está funcionando o sistema de precedentes. Pelo menos em relação a São Paulo. Na sequência, abordarei isso.

O Tribunal de São Paulo retrucou a fala de Schietti, por meio do desembargador Guilherme Strenger, presidente da Seção Criminal, afirmando que a corte paulista não desrespeita julgados de instâncias de Brasília.

Será que não desrespeita?

Vejamos. Duas coisas chamaram a atenção no pronunciamento do desembargador Strenger. Primeiro, diz que o TJ julga com "independência e presta a jurisdição criminal com estrito respeito às leis e ao consequencialismo".

Temos aí um problema. Grave. Direito criminal e consequencialismo? Direitos e garantias processuais-penais não admitem julgamentos consequencialistas contra o réu.

Ora, se é consequencialismo, não é Direito. Percebem o paradoxo? Direito existe exatamente para que não se faça juízos consequencialistas. Sobretudo ad hoc. E no direito criminal. Despiciendo falar sobre os problemas do consequencialismo no direito, que mais se assemelham à filosofia moral do que, propriamente, ao direito, que deve, exatamente, evitar sim, evitar raciocínios consequencialistas. Todavia, em uma dogmática jurídica que não se preocupa com epistemologia, tudo é possível.

O segundo problema está quando Strenger declarou que "eventual divergência quanto a posicionamentos jurídicos constitui fenômeno natural existente em todo e qualquer sistema de Estado democrático de Direito".

Como assim? Essa é uma frase típica daquelas que dizem muito, mas… não dizem nada. Não passa pela condição hermenêutica de sentido. Coloque um "não" à frente e não faz diferença nenhuma. Por que seria um fenômeno natural? O que é natural? Cumprir ou não cumprir a Constituição é uma questão de mera opinião ou de posicionamento? Como assim? Seguir ou não seguir jurisprudência de um Tribunal Superior é opção? Encarcerar ou não encarcerar é uma questão de posicionamento?

Mas há ainda um terceiro problema, sobre o qual já falei na coluna intitulada "O caso Queiroz e a aplicação do princípio da ipseidade". Ali dissertei sobre o tal "sistema de precedentes", que é tudo, menos um sistema. Assim como os precedentes podem ser teses ou qualquer coisa, mas não são precedentes. Fossem, mesmo, o resultado seria outro. Talvez nisso esteja o problema.

Tenho discutido esse assunto de há muito. Não me surpreendo que um tribunal não siga precedentes. Quem leu a coluna da qual falei acima sabe do que estou falando. Portanto, não insistirei com a crítica com o tal "sistema" que não é sistema.

Apenas direi que em um país em que se julga de forma confessadamente consequencialista, parece óbvio que ninguém está preocupado com coerência e integridade (que, aliás, é um preceito legal). Respeitar a coerência e a integridade do direito é decidir por princípio. E um princípio, autêntico, é um padrão moral, sim, mas nunca subjetivista: é um padrão moral institucionalizado, filtrado pelo direito. E isso não é uma mera opinião. É ciência jurídica.

Ajuste institucional é a locução cabível. Mais: princípio é sempre um padrão deontológico. Um autêntico princípio é antitético a consequencialismos, os quais abrem margem para todo tipo de decisão discricionária (e, portanto, arbitrária). Veja-se a correta indignação do ministro Schietti.

Esse é um problema recorrente no "mundo jurídico". Qualquer advogado sofre com isso todos os dias. Há poucos dias, um desembargador do TJ-RJ disse que decidiu com base na consciência e na Constituição. Bom, qual é a diferença entre decidir com base na consciência, no livre convencimento, no pragmatismo ou no consequencialismo? A decisão poderá ser qualquer coisa, menos coerente com um "sistema". Porque, de novo, e volto porque a palavra é exatamente essa: critérios. Esse pragmatismo ad hoc é a aposta no juízo discricionário que é sempre de ocasião, porque pode estar muito bem baseado em… em nada. A decisão consequencialista, precisamente porque consequencialista, é aquela que sempre acerta. Sempre. 100%. Claro: atira-se a flecha e depois se desenha o alvo (o que denominei de há muito de target effect).

Falta muito. Falta muito para respeitarmos a institucionalidade do Direito. Para entendermos o que é isso decidir por princípio, com coerência e integridade. Para que o Direito opere de fato como um sistema, em respeito à sua própria lógica principiológica/institucional interna. Até lá, falar em sistema e admitir consequencialismo é contradição em termos.

Está absolutamente certo o ministro Schietti.

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