Opinião

A pandemia da Covid-19 e o exercício da cidadania no Brasil

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17 de julho de 2020, 6h37

A sociedade brasileira vive um momento inusitado e perigoso. Circunstâncias incomuns desafiam os poderes da República e exigem do cidadão capacidade de ressignificação. O mundo tenta conter o avanço da pandemia e enfrentar os efeitos nefastos da Covid-19. No Brasil, a disseminação da nova doença e o aumento do número de óbitos parecem ocupar um segundo plano de importância, face à desarmonia de objetivos e interesses entre os integrantes da população.

A falta de conhecimento sobre conceitos básicos de cidadania, a ausência de tolerância entre os indivíduos e a ignorância acerca da função social do Estado provocam o alongamento da crise de saúde e conduz ao aprofundamento da exclusão social, em desfavor da igualdade. Percebemos, ainda, a nação brasileira fragmentada por ideologias políticas, acarretando prejuízo à manutenção da estabilidade nas relações sociais e à incolumidade das pessoas em tempos de pandemia.

Assim, faz-se imprescindível a reflexão sobre os direitos e deveres do cidadão brasileiro, bem assim, acerca da configuração do Estado contemporâneo, como forma de evitar anacronismo, retrocesso social e refrear uma ruptura da ordem moral, legal e democrática.

O artigo 1º da nossa Constituição Federal [1], ao declarar que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado democrático de Direito, adota os seguintes fundamentos: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político. Em resumo, a República é a forma de governo do Estado brasileiro (diferente da monarquia), a federação é a forma de organização das entidades governamentais (em contraposição à confederação) e a democracia é o regime político vigente no país (em oposição ao sistema autoritário ou ditatorial). A segurança jurídica e a estabilização das relações sociais têm como sustentação o princípio da separação de poderes, na forma prevista pelo artigo segundo da Constituição Federal: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".

Infere-se, portanto, que foram definidos nos primeiros artigos da Constituição as bases constitutivas do Estado Brasileiro, representando o núcleo das decisões políticas fundamentais e a vontade popular. Sobre o tema, a lição do Autor Dirley da Cunha Junior [2]: "Apesar de expressarem decisões políticas fundamentais que estabelecem as bases políticas do Estado, esses princípios são verdadeiras normas jurídicas operantes e vinculantes, que todos os órgãos encarregados de criar e aplicar o Direito devem ter em conta e por referência, seja em atividade de interpretação, seja em atividades de positivação do direito infraconstitucional (leis e demais atos normativos)".

Os pilares estampados na Lei Maior são frutos de conquistas da sociedade brasileira. Os anseios sociais, anteriores à edição da Constituição Federal, tinham por objeto assegurar estabilidade, controle e participação popular nas decisões do Estado, além de garantir direitos fundamentais.

Características imutáveis do Estado brasileiro são desconhecidas por grande parte da população, já que há uma precariedade na educação básica e inexiste um calendário de atividades cívicas no âmbito do ensino fundamental. Sendo assim, muitos não sabem como reagir frente a uma medida restritiva imposta pelo poder público, não conhecem as garantias pessoais e os limites do poder estatal. Outros, instigados pelas redes sociais, não respeitam e não toleram opiniões contrárias ou, ainda, defendem mudança de regime político e criminalização de condutas, atropelando os direitos de terceiros e da coletividade, com atitudes e palavras.

No Direito público, próprio do regime da União, dos Estados e municípios, a definição e delimitação das suas funções estão traçadas na lei, não há espaço para livre vontade do agente estatal. A atuação discricionária do agente público somente é legítima quando há autorização normativa. No Direito privado, aplicado às relações entres particulares, vigora a regra de que se pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Em todo caso, a pandemia não é motivo para atitude irresponsável ou ilegal, também não pode ser utilizada como único fundamento para ato público inadequado ou desproporcional.

A fiscalização dos entes estatais decorre do próprio princípio da separação de poderes, sendo feita através do sistema de freios e contrapesos. Esse mecanismo de controle consiste na contenção do poder pelo próprio poder, admitindo-se que cada Poder tem autonomia para exercer sua função precípua, contudo submetido ao controle externo exercido pelos outros poderes. A ideia principal é que se evite abusos no exercício do poder por qualquer dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) [3].

A propósito, as Forças Armadas não representam um quarto poder, não são um poder moderador e não estão a serviço de um dos poderes, o que se infere pela simples leitura sistemática da Carta Magna, em especial, a junção do artigo 2º e do artigo 142 da Carta Política Fundamental. Nesse sentido, a posição do jurista Lenio Luiz Streck [4] e do Conselho Federal da OAB [5].

No Brasil, a soberania é exercida apenas pela República federativa. União, Estados e municípios são autônomos e exercem competências pré-estabelecidas na Constituição Federal e leis esparsas. Existindo, entretanto, abuso de poder ou divergência acerca de qual ente da federação é o responsável pela atuação no concreto, cabe ao Poder Judiciário deliberar e pacificar o conflito, impedindo assim a paralisação ou omissão na prestação do serviço público.

O Supremo Tribunal Federal, cuja função maior é a garantia da supremacia da Constituição Federal, decidiu que as medidas para o enfrentamento do novo coronavírus estabelecidas pelo governo federal (MP – 926/2020) não têm o condão de afastar a validade de atos a serem praticados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, que têm competência concorrente para legislar sobre saúde pública (artigo 23, inciso II, da Constituição) [6]. A competência concorrente é definida pela doutrina como aquela que se exerce simultaneamente sobre a mesma matéria por mais de uma autoridade ou órgão.

Imaginamos a imprecisão que reside no pensamento do cidadão brasileiro, pois até para os 'letrados" é difícil saber como se comportar diante das ordens emanadas pelos poderes públicos. Essa confusão aumenta em razão da proliferação de notícias falsas ou distorcidas pela posição de revanchismo, ódio e intolerância adotada por muitos atores sociais, reunidos em grupos virtuais e também pessoalmente.

A pandemia que assola o mundo traz à tona um confronto social entre a necessidade de proteção da saúde da coletividade e a liberdade de cada um para se autodeterminar. A Constituição brasileira é chamada de "cidadã" pelo fato de que contempla uma das maiores declarações de direitos do mundo, consagrando a proteção do ser humano. Todo brasileiro deve conhecer a redação do artigo 5º da Constituição Federal, que prescreve a igualdade, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Nesse aspecto, a educação inclusiva se apresenta como forte aliada ao desenvolvimento de uma sociedade voltada à efetivação da justiça social e à preservação da vida, medidas que se impõem.

A educação é um direito social, cuja implementação compete concorrentemente aos entes da Administração direta, constituindo-se como direitos de todos, dever do Estado e da família, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

O cidadão do século XXI precisa ter ciência de direitos individuais, deveres morais, legais e democráticos. Com isso, o indivíduo pode exercer sua cidadania, sem interferência indevida do Estado e do particular. A cidadania evita conflitos. A tolerância e o respeito são imprescindíveis ao convívio social. Certo é que a implementação da política pública e da atividade econômica privada, além de questões meramente técnicas e organizacionais, precisa ser conduzida por um modelo de gestão adequado para controle dos impactos socais.

Destarte, inadmissível uma atitude inerte e indiferente do Estado, face a evidente necessidade de instruir o cidadão do seu dever cívico, através da educação. Também a impessoalidade na atividade privada provoca desavença social, sendo recomendável que os diversos atores sociais atuem, em suas esferas de competência, para garantir acesso ao conhecimento.

Não existe cidadão melhor que outro. Também não há agente público menos ou mais responsável. As discussões em torno do modelo ideal da gestão pública, da configuração jurídica e política do país retiram o foco necessário ao enfrentamento da crise de saúde e dividem os brasileiros em um momento da história que exige união, solidariedade e empatia.

As razões humanas e sociais são evidentes para que cada cidadão possa se reinventar, conhecer direitos e assumir responsabilidades para a dissipação da pandemia, sempre pautado pelo respeito. Precisamos ressignificar a expressão concorrência, atribuindo um sentido de atuação conjunta, para garantia da economia e da saúde coletiva, permitindo que todos possam ter condições dignas de vida, durante e após a pandemia.

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