Opinião

A presidência do STJ como novo órgão decisório dos recursos especiais

Autores

  • Rafael Araripe Carneiro

    é doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim professor e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa do IDP. Sócio-fundador do Carneiros & Dipp Advogados.

  • Amanda Visoto de Matos

    é advogada no escritório Carneiros Advogados Associados mestranda em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em direito civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

17 de julho de 2020, 14h08

A interposição de recursos especiais dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça é uma realidade corriqueira na vida de advogados e advogadas de todo o país. Contudo, a crescente quantidade de recursos não conhecidos pela corte demonstra a necessidade de se atentar cada vez mais para a técnica própria dos apelos excepcionais, que demandam conhecimento especializado para que tenham mínima chance de êxito.

As dificuldades decorrem de inúmeros fatos. De um lado, há um ambiente interno restritivo à admissão dos recursos. De outro, está a pouca familiaridade com os requisitos processuais específicos e certa tendência de tratar os apelos extremos como se qualquer outro recurso fossem.

Não é de hoje que vigora o entendimento de que o STJ não busca fazer justiça no caso concreto, mas sim manter a interpretação jurisprudencial uniforme, hígida e coerente [1]. Essa premissa ensejou o paulatino recrudescimento da chamada jurisprudência defensiva, que busca falhas na argumentação dos recursos para deles não conhecer.

A novidade tratada nesse artigo envolve a significativa ampliação de competências decisórias da presidência do STJ, que crescentemente interfere no juízo negativo de admissibilidade dos recursos e consolida-se como órgão de não conhecimento recursal. Buscando trazer luz a referida situação, o texto apresentará as recentes mudanças na tramitação dos recursos ao chegaram no STJ e os seus reflexos para a advocacia.

A paulatina consolidação da presidência do STJ como órgão de não conhecimento dos recursos
Em 2008, a presidência do STJ, por meio da Resolução nº 03/2008, criou o Nupre 
Núcleo de Procedimentos especiais da Presidência, o qual, nos termos do próprio Tribunal, funcionaria como um "filtro" para processos sem perspectiva de provimento [2].

Por meio desse sistema, recursos patentemente incabíveis teriam o seguimento negado antes mesmo da distribuição ao relator. Essa situação objetivava que os ministros, em vez de prolatar diversas decisões de não conhecimento, se dedicassem a julgar os processos que possuíam verdadeira chance de exame do mérito recursal.

Seguindo essa tendência, em 2015, o STJ estabeleceu a Triagem Parametrizada com Automação de Minutas  um software que busca identificar vícios processuais nos recursos e confecciona automaticamente as minutas das decisões [3]. O sistema é composto por dois questionários processuais, os quais precisam ser completamente preenchidos pelos recursos para que eles não sejam imediatamente negados. A triagem, portanto, é uma espécie de checklist de elementos essenciais para a possibilidade da análise de mérito dos apelos.

O primeiro questionário verifica os elementos objetivos dos recursos, como: tempestividade, exaurimento da instância ordinária, preparo, regularidade da representação. O segundo, por sua vez, analisa alguns requisitos de admissibilidade (principalmente o cotejo entre os fundamentos de inadmissão do recurso especial e as razões do agravo), os quais são atualizados periodicamente e compõem a "árvore de fundamentos de inadmissão do recurso especial Afire" [4].

Se o apelo deixar de cumprir qualquer dos requisitos dos questionários, o próprio sistema minuta uma decisão automática e encaminha o processo para a presidência. Lá, a decisão é revisada por dois servidores que conferem a existência da falha e, em seguida, o ministro presidente valida a decisão. Essa triagem parametrizada com automação de minutas foi uma das vencedoras do Prêmio Innovare 2016 [5].

Como consequência imediata teve-se a redução do número de recursos que são distribuídos aos ministros relatores, apesar da quantidade de processos que chegaram ao STJ ter aumentado exponencialmente. De acordo com os dados do STJ, no período de março de 2015 a maio de 2016 o trabalho de triagem automatizada encaminhou 133.649 processos para a presidência, o que representa 39% do total de 339.440 recursos recebidos pela corte no período. O número médio de processos distribuídos por dia para cada ministro do STJ caiu de 50, em 2014, para 22, em 2015 [6].

Em 2018, estabeleceu-se por meio da Resolução nº 10/2018 a restruturação da organização interna do STJ. Entre as diversas alterações viabilizadas pela norma, criou-se o Núcleo de Admissibilidade e Recursos Repetitivos (Narer), órgão de assessoramento à presidência que tem por finalidade a elaboração de minutas de decisões nos feitos originários e recursais ainda não distribuídos.

De acordo com o Manual de Organização do STJ, o Narer é responsável por: I) analisar agravos em recurso especial quanto à impugnação, de modo específico, de todos os fundamentos da decisão de inadmissibilidade; II) analisar recursos especiais e agravos quanto ao atendimento aos pressupostos recursais objetivos de cabimento, tempestividade, preparo, exaurimento de instância e regularidade na representação; e III) analisar recursos especiais verificando possível confronto com recurso paradigma de tema repetitivo, súmula ou jurisprudência dominante no tribunal ou, ainda, se o acórdão recorrido está em confronto com recurso paradigma de tema repetitivo, súmula ou jurisprudência dominante no tribunal, entre outros [7].

Após essa alteração estrutural o número de processos distribuídos à presidência do STJ aumentou consideravelmente. Em 2017, antes da reestruturação da organização interna, 30,5% dos processos foram encaminhados para lá [8]; já em 2019, 47,4% dos processos, portanto, quase metade dos processos, foram distribuídos àquele órgão [9].

Necessidade de especialização da advocacia e aspectos relevantes para superar a barreira do conhecimento recursal
Por um lado, é possível dizer que as triagens pela presidência do STJ podem permitir julgamentos mais igualitários, afinal, todos os recursos precisarão preencher os mesmos requisitos de admissibilidade, que serão analisados pelo mesmo órgão decisório.

Em recente pesquisa empírica intitulada "STJ em Números: Improbidade Administrativa", do Grupo de Pesquisa do IDP, que analisou mais de 700 acórdãos da Corte, verificou-se, por exemplo, que a chance do recurso esbarrar na Súmula 7/STJ é duas vezes maior na 2ª Turma em comparação com a 1ª Turma. A pesquisa identificou ainda que a chance de o recurso não ser conhecido varia de 7,5% a 51,92% a depender do relator, mesmo em julgamentos colegiados [10].

A partir da adoção de parâmetros idênticos por um único órgão decisório é razoável imaginar que se reduza a desuniformidade na aplicação de súmulas e outros óbices de conhecimento dos recursos.

Por outro lado, a ampliação dos julgamentos pela presidência do STJ consolida no caminho processual um órgão decisório voltado eminentemente para não conhecer os recursos. Estabelece-se mais um degrau a ser superado no tormentoso trajeto de admissibilidade recursal.

Tal fato fica evidente quando os números são analisados. Em 2014, ou seja, antes da criação do sistema de triagem, apenas 4,56% dos recursos especiais e 27,38 % dos agravos em recurso especial julgados pelo STJ não foram conhecidos [11]. Em 2016, com o software devidamente implementado, 13,79% dos recursos especiais e 54,95% dos agravos em recursos especiais não foram conhecidos [12]. Em 2019, com a reestruturação interna do STJ, 23,1% dos recursos especiais e 63% dos agravos em recurso especial não foram conhecidos [13].

Essa realidade configurou-se mesmo sob a vigência do Novo CPC (Lei 13.105/15), que buscou prestigiar o conteúdo em detrimento da forma.

Válido mencionar ainda que, a despeito da recorribilidade das decisões da presidência do STJ, as chances de êxito recursal são mais difíceis. Primeiro, porque os julgamentos do presidente da Corte podem trazer carga hierárquica que dificulta a reversão do julgamento pelos demais ministros; segundo, porque cada vez mais a discussão afasta-se do mérito recursal; terceiro, porque os agravos internos não permitem a realização de sustentação oral e costumeiramente são julgados em lista. De acordo com o relatório estatístico de 2019, apenas 5,4% dos agravos internos interpostos são providos [14].

Diante desse quadro, torna-se ainda mais importante que a defesa jurídica da parte recorrente preze pela técnica processual própria desses apelos excepcionais. Assim, vale destacar alguns aspectos relevantes para superar a barreira do conhecimento dos recursos especiais:

— Indicar o dispositivo constitucional no qual se fundamenta o recurso especial, a fim de identificar se pretende a análise de violação de dispositivo de lei federal (artigo 105, III, a da CF) ou divergência jurisprudencial (artigo 105, III, c da CF) (AgInt no AREsp 995.819/BA, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe 1º/3/2017);

— Indicar expressamente o inciso e alínea do artigo de lei federal violado (AgInt no AREsp 1026239/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe 25/06/2019), inclusive quando o recurso especial fundar-se na alínea "c" do permissivo constitucional (AgInt no AREsp 1437376/PE, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, DJe 27/6/2019); 

— Não alegar ofensa a direito local (AgInt no AREsp 1432891/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe 28/6/2019); 

— Não fundamentar o recurso em violação a enunciado sumular, mas sim a dispositivo da lei federal, sob pena de incidência da Súmula 518/STJ (AgInt no AREsp 426.527/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, DJe 10/6/2020); 

— Impugnar especificamente todos os fundamentos do acórdão recorrido, sob pena de incidência da Súmula 182/STJ (AgRg no AREsp 50.542/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, DJe 4/6/2019); 

— Deixar claro quais os fatos necessários para o acolhimento da pretensão recursal e demonstrar que esses fatos são incontroversos nos termos do acórdão, limitando o pleito à revaloração jurídica dessa moldura fática incontroversa (AgRg no AREsp 1587747/GO, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, DJe 3/6/2020);

— Caracterizar a divergência jurisprudencial com a exposição precisa das circunstâncias que assemelham os casos confrontados, evitando a mera transcrição das ementas (AgInt no AREsp 1157446/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, DJe 14/6/2019);

— Não utilizar julgados proferidos pelo mesmo tribunal para fundamentar o dissídio jurisprudencial (AgInt no AREsp 1384502/MT, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, DJe 2/4/2019), tampouco julgados que tenham sido decididos com base em normas legais distintas (AgInt no AREsp 925.222/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, DJe 26/10/2018);

Quanto aos agravos em recurso especial, são ainda bastante significativos os seguintes procedimentos: impugnar especificamente todos os fundamentos da decisão agravada, sob pena de incidência da Súmula 182/STJ, e nos casos em que o não conhecimento do recurso especial se fundamentar no óbice da Súmula 83/STJ, diferenciar o caso concreto de todos os julgados indicados como paradigma para a negativa.

Os elementos supracitados não exaurem todos os aspectos técnicos que devem ser respeitados, mas exemplificam os principais requisitos processuais específicos que os advogados precisam cumprir para alcançar o julgamento do mérito dos seus recursos. Enfim, mais do que nunca a advocacia nos tribunais superiores precisa se especializar.

 

Referências bibliográficas
ARRUDA ALVIM NETTO, José Manuel de. A alta função da jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial e a relevância das questões. STJ: 10 anos – obra comemorativa 1989 -1999. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 1999.

Carneiro, Rafael Araripe. STJ em Números: Improbidade Administrativa. Jota. https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/stj-em-numeros-improbidade-administrativa-06062020

KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça. 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório estatístico 2014. Brasília: STJ, 2014.

______. Relatório estatístico 2016. Brasília: STJ, 2016

______. Relatório estatístico 2017. Brasília: STJ, 2017

______. Relatório estatístico 2019. Brasília: STJ, 2019

______. 25 anos do Tribunal da Cidadania.  Brasília: STJ, 2013

 


[1] Nesse sentido, ver: KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça. 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2005. pp. 105-107 e ARRUDA ALVIM NETTO, José Manuel de. A alta função da jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial e a relevância das questões. STJ: 10 anos – obra comemorativa 1989 -1999. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 1999. p. 40.

[2] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 25 anos do Tribunal da Cidadania. Brasília: STJ, 2013. p. 86

[3] Disponível em: <https://www.premioinnovare.com.br/pratica/1598/print> Acesso em: 20/4/2020.

[4] Ibid.

[7] Ver: Capítulo III, item 3.9 Núcleo de Admissibilidade e Recursos Repetitivos. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/manualst/article/view/1210/3457 Acesso em 7/5/2020.

[8] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório estatístico 2017. Brasília: STJ, 2017. p. 05

[9] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório estatístico 2019. Brasília: STJ, 2019. p. 13

[11] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório estatístico 2014. Brasília: STJ, 2014. p. 20

[12] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório estatístico 2016. Brasília: STJ, 2016. p. 07

[13] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. cit. 2019. p. 19

[14] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. cit. 2019. p. 19

Autores

  • Brave

    é sócio-fundador do escritório Carneiros Advogados Associados, mestre pela Universidade Humboldt (Alemanha), professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), coordenador do Grupo de Improbidade Administrativa do IDP e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF.

  • Brave

    é advogada no escritório Carneiros Advogados Associados, mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em direito civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

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