Opinião

Depoimento por escrito em PAD para servidor doente é solução mais digna

Autores

  • Ophir Cavalcante Júnior

    é advogado sócio-fundador do escritório Ophir Cavalcante Advogados Associados e mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPa). Foi presidente do Conselho Federal da OAB (2010-2013) e procurador-geral do Estado do Pará (2016-2018).

  • Caio Neno Silva Cavalcante

    é advogado sócio do escritório Ophir Cavalcante Advogados Associados e mestrando em Direito Estado Tributação e Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília (PPGD-UCB).

16 de julho de 2020, 10h34

O artigo 158 da Lei nº 8.112/90 determina que o depoimento pessoal do investigado deve ser oral. É notório, no entanto, que o servidor público, quando submetido a processo administrativo disciplinar (PAD), frequentemente se vê em uma situação de grave ansiedade. O temor da punição, a angústia de ser malvisto pelos colegas e a sensação de injustiça frequentemente conduzem a graves problemas físicos e psicológicos. Diversos servidores desenvolvem aversão tão extremada ao procedimento que o simples fato de ser submetido a interrogatório pela comissão processante, ou ser intimado a prestar depoimento pessoal oral, já os leva a um estado de intenso desequilíbrio emocional.

Como solução apta a minimizar tais efeitos deletérios sobre a saúde do servidor público, propõe-se a possibilidade de deferimento da apresentação por escrito de depoimento pessoal e respostas aos questionamentos da comissão processante, desde que, por certo, tal estado de fragilidade seja corroborado por laudos médicos. Tais alternativas, inclusive, não são estranhas ao ordenamento jurídico pátrio. Como exemplo, tem-se o artigo 221, §1º, do Código de Processo Penal, que faculta tal possibilidade a determinadas autoridades, sem que reste vilipendiado o devido processo legal.

Trata-se de discussão sensível à preservação da saúde, a qual, por seu caráter especialíssimo, possui particular proteção constitucional, no artigo 196 e seguintes da Constituição Federal (CF/88), tendo como alicerce principal o sobreprincípio da dignidade da pessoa Humana, objetivo fundamental da República (artigo 1º, III, CF/88). Nesse prisma, a tutela à saúde assume particular relevância porque congrega "uma série de interconexões com a proteção de distintos bens fundamentais, apresentando zonas de convergência e mesmo de superposição em relação a outros bens, direitos e deveres que também constituem objeto de proteção constitucional" [1]. Verifica-se, no caso em comento, uma típica interconexão entre o direito à saúde e o direito ao devido processo legal.

Isso porque, em verdade, o devido processo legal, para cumprir sua finalidade primordial de garantia e proteção de direitos fundamentais, deve ser compreendido em duas acepções, o aspecto formal (procedural due process of law) e o aspecto material (substantive due process of law). Esta última, inclusive, já é reconhecida, no STF, como justificativa para a realização do controle de proporcionalidade de leis, levando em conta três aspectos: I) adequação; II) necessidade; e III) proporcionalidade em sentido estrito [2].

Todas estas dimensões, no caso concreto, se ancoram no objetivo perseguido pela Administração, que é a busca da verdade real, em conjunto com a ampla defesa, exteriorizado no direito de empregar todos os meios legais, ainda que não especificados no regramento processual, para provar a verdade dos fatos em que se funda a defesa e influir eficazmente na convicção da comissão, sem que haja agressão ao direito fundamental à saúde, até porque a jurisdição já "deixou de ter a simples incumbência de prestar as tutelas declaratória e ressarcitória pelo equivalente, assumindo o dever de tutelar, na forma específica os direitos, especialmente os direitos fundamentais" [3]

A própria normatização do processo administrativo federal, consubstanciada na Lei nº 9.784/99, dispõe, em seu artigo 29, §2º, que os atos de instrução que exijam a atuação dos interessados como é o caso do interrogatório e do depoimento pessoal devem realizar-se do modo menos oneroso para estes. Ora, a oitiva do investigado pelo regramento do artigo 158, Lei nº 8.112/90, certamente é ato instrutório de extremo ônus, considerando o estado de fragilidade física e psicológica no qual o servidor documentalmente comprova se encontrar.

Nesse diapasão, o artigo 2º, Lei nº 8.080/90, dispõe que "a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício". O Estado, neste caso representado pela comissão processante do PAD, por sua vez, é o principal sujeito passivo do direito à saúde [4], no sentido de que a ele cabe efetivar tal direito tanto em sua dimensão negativa, de não ameaçar ou violar o direito à saúde do servidor com a imposição de oitiva oral, quanto em sua dimensão positiva, no sentido de facultar ao investigado uma possibilidade que lhe seja menos onerosa, em homenagem ao já citado artigo 29, §2º, da Lei nº 9.784/99.

Assim, entende-se que, quando comprovado o estado de debilidade do servidor público, a melhor maneira de se unificar uma tutela jurisdicional efetiva, respeitadora das três dimensões do princípio da proporcionalidade e da dimensão substancial do devido processo legal, com a efetivação do direito fundamental à saúde, garantido pelo artigo 196, CF/88, e o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no artigo 1º, III, CF/88, sem dúvidas, é facultar ao servidor público a possibilidade de responder ao interrogatório e prestar depoimento na forma escrita.

 

Referências bibliográficas
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Direito fundamental à tutela adequada e efetiva. In: SARLET, I. W.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D. Curso de Direito Constitucional. 8ª. Ed. Capítulo 5.3. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação constitucional como interpretação específica. In: CANOTILHO, J. J. G., et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 91-95.

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Flichtiner. Da Saúde. In: CANOTILHO, J. J. G., et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 2003-2023.

 


[1] SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Flichtiner. Da Saúde. In: CANOTILHO, J. J. G., et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 2012-2013.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação constitucional como interpretação específica. In: CANOTILHO, J. J. G., et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 94.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Direito fundamental à tutela adequada e efetiva. In: SARLET, I. W.; MARINONI, L. G.; MITIDIERO, D. Curso de Direito Constitucional. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 827.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Flichtiner. Da Saúde. In: CANOTILHO, J. J. G., et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 2015.

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