Opinião

O Brasil, o jurista Ackerman e a lição de Platão em Siracusa

Autor

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG mestre e doutor em Direito (UFMG) com estágio pós-doutoral com bolsa da Capes na Università degli Studi di Roma III e bolsista de produtividade do CNPq (1D).

15 de julho de 2020, 8h59

Spacca
No Correio Braziliense, o conhecido constitucionalista estadunidense Bruce Ackerman publica, em português, um artigo defendendo a adoção do parlamentarismo com assembleia constituinte exclusiva para 2023. Nos Estados Unidos? Não! No Brasil. Sim, o leitor leu bem.

Segundo Ackerman, somente o parlamentarismo poderia resolver o problema das crises políticas brasileiras. Ackerman, numa brevíssima, superficial e um tanto equivocada história do debate constituinte de 1987-88, lembra que o projeto A de Constituição propunha a adoção do sistema parlamentar, mas não obteve apoio suficiente entre o centro e a centro-esquerda para ser aprovado, levando, segundo ele, a uma solução de compromisso entre as forças políticas de então: mantém-se o presidencialismo com a previsão de plebiscito para decisão sobre o sistema de governo. O plebiscito veio e manteve o presidencialismo.

Interessante é que, para Ackerman, mesmo após o impeachment de Collor, a posse de Itamar e as eleições de FHC e de Lula, a proposta de adoção do parlamentarismo teria ficado em segundo plano, justamente pelo papel institucional desses presidentes na consolidação da democracia. E, isso, mesmo com a crise do governo Dilma e o seu impeachment.

Mas, para o jurista estadunidense, diante da crise política atual, a única saída seria, não um possível aperfeiçoamento do presidencialismo, mas a adoção, por meio de uma constituinte, do parlamentarismo. Segundo ele, a crise atual exigiria isso, porque "números crescentes de brasileiros estão perdendo a fé no sistema estabelecido em 1988". E ele explica: "A corrupção política revelada pela Lava-Jato, culminando na resposta irresponsável de Bolsonaro à crise do coronavírus, levaram cidadãos comuns a temer que a democracia não tenha futuro".

Ora, o problema de uma suposta "perda de fé no sistema estabelecido em 1988" não é do presidencialismo como sistema de governo. Nem da suposta "corrupção política revelada pela Lava Jato".

Se há uma "perda de fé no sistema", quem sabe as razões e motivos para isso não advenham

  1. dos abusos perpetrados com instrumentos jurídicos utilizados contra a própria Constituição e contra a legislação, desde o impeachment sem crime de responsabilidade contra Dilma, passando pela criminalização da política,

  2. de decisões judiciais ativistas, controversas e em desrespeito à Constituição,

  3. da ausência de uma justiça de transição que pudesse acertar as contas com o passado ditatorial,

  4. do discurso institucional e naturalizado da estabilidade e da austeridade econômicas mesmo contra direitos fundamentais e contra os próprios compromissos constitucionais,

  5. do excesso de emendas constitucionais inconstitucionais e, mais ainda,

  6. da vigência de emendas desconstituintes, como é o caso da emenda do teto, a EC n. 95/16? Seis elementos objetivos que podem ajudar a responder as dúvidas de Ackerman sobre um país que não conhece.

A questão é, portanto, exatamente outra. É não lançar por terra a Constituição de 1988, reconhecendo as tensões políticas e jurídicas, os usos e abusos, o aprendizado histórico cujo sentido ainda está, mais do que nunca, em disputa.

Mas todas essas questões passam ao largo do texto de Ackerman, tão preocupado em nos apresentar uma solução fácil para o nosso problema institucional. Ironicamente, não há como não nos lembrarmos de Platão em Siracusa e suas três tentativas frustradas de transformar tiranos em reis-filósofos1. Quem terá convidado, afinal, Ackerman para dar uma solução institucional para o Brasil? E quem terá contado uma determinada versão do Brasil ao preclaro jurista? Do ar ele não tirou isso.

Afinal, é de se perguntar, em meio aos legítimos protestos antirracistas nos EUA, com todos os históricos problemas do federalismo e do sistema eleitoral de lá, com as últimas decisões da Suprema Corte, inclusive, nessas matérias, com a crise humanitária e a com a precarização cada vez mais cruel e absurda de sua população, representada, exatamente, pela "irresponsável resposta" de Trump à crise do coronavírus, por que, justamente, por que, um jurista como Ackerman, o grande defensor da soberania popular contra a constituição, vem escrever um artigo propondo uma constituinte com mudança, sem participação direta do povo, do sistema de governo para o parlamentarismo, aqui, no Brasil, e não lá, nos EUA? Eis a questão. Parece ser matéria encomendada por gente que deseja que o Brasil cometa um haraquiri institucional.

Bom, a história de Platão, em Siracusa, sabemos como termina. Nem os tiranos, nem o povo, acabam por levar Platão muito a sério. O que, afinal, ele sabia de Siracusa? Fazer o que, se não voltar para Atenas? Fica a lição.

Post scriptum: A propósito, o mesmo Professor escreveu no mesmo Correio Brasiliense no dia 25 de maio de 2020, sobre os EUA:
Sobre freios e contrapesos – "A grande questão, a partir de agora, é se Joe Biden fracassará na adoção de medidas sérias para revigorar o sistema constitucional de 'freios e contrapesos', que tem sido violado sistematicamente por Donald Trump ao longo dos últimos quatro anos. Se Biden permanecer passivo, os norte-americanos poderão enfrentar outra campanha presidencial em 2024, na qual um demagogo nacionalista tentará impulsionar os Estados Unidos rumo a uma ditadura autoritária."

Bom, nem por isso ele anda propondo parlamentarismo por lá, pois não?


1 Reale, Giovanni. História da Filosofia Antiga, vol. II. São Paulo: Loyola, 1994, p. 8.

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