Opinião

A retroação do acordo de não persecução penal e suas consequências

Autor

  • Eduardo Emanoel Dall'Agnol de Souza

    é advogado criminal em Curitiba mestre em Direito com menção em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Penal da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.

14 de julho de 2020, 17h13

Uma das inovações da Lei 13.964/2019 é o acordo de não persecução penal. O novo instituto autoriza o Ministério Público a negociar com o investigado a aplicação de condições assemelhadas a penas restritivas de direitos [1] e a efeitos da condenação [2] em substituição ao oferecimento da denúncia [3]. Em contrapartida, o investigado deve confessar "formal e circunstancialmente" [4] a prática do crime investigado e se comprometer a cumprir as condições acordadas. A validade do acordo depende de homologação judicial. Depois de cumpridas as condições, a punibilidade é extinta.

O acordo de não persecução penal carrega consigo uma série de questões complexas, que repercutem no sistema penal como um todo. Neste momento, trataremos de um de seus aspectos mais recorrentes nos primeiros meses de aplicação da nova lei. Trata-se de saber se o acordo é aplicável a fatos que teriam ocorrido antes da vigência da Lei 13.964/2019, especialmente quando já há processo criminal em curso. Analisaremos os elementos que compõem a questão, apresentaremos uma resposta e discutiremos algumas de suas consequências. Ao tratar das consequências, avaliaremos primeiro como o acordo incide nas diferentes fases dos procedimentos em curso. Em seguida, trataremos dos limites da atuação do juiz. Por fim, apresentaremos uma interpretação sistemática a respeito de quais devem ser os limites máximos das condições de cumprimento do acordo de não persecução penal.

A Lei 13.964/2019 não possui regra específica a respeito da incidência do acordo de não persecução penal sobre fatos anteriores à sua vigência. É necessário partir das regras gerais de vigência temporal da lei penal. Como se sabe, por força do artigo 5º, XL, da Constituição e do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, só se admite a retroação de norma penal favorável ao investigado, acusado ou apenado. Portanto, para saber se o novo instituto pode retroagir, é necessário primeiro determinar se ele contém norma de caráter penal material e depois identificar se seus efeitos e condições são, de fato, mais favoráveis que as eventuais consequências de um processo criminal conduzido até o final.

A natureza das normas do novo instituto pode ser identificada através da análise de sua estrutura. O novo artigo 28-A do CPP apresenta o acordo de não persecução penal como um substitutivo penal de caráter negocial que cria hipótese de extinção da punibilidade em contrapartida ao cumprimento de condições determinadas.

O procedimento do acordo realiza-se em três etapas. A primeira etapa abrange a negociação entre as partes e a formalização do acordo por escrito. A versão final do acordo deve ser firmada pelo Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor. Essa etapa exige a confissão da infração penal e deve ser conduzida sem a participação de juiz.

A segunda etapa compreende o controle judicial de legalidade e a homologação do acordo. Ela deve ser realizada em audiência conduzida pelo juiz das garantias [5]. Tendo em vista que a eficácia das disposições sobre o juiz das garantias encontra-se suspensa [6], o juiz da causa é atualmente o responsável por realizar a audiência de homologação. Nela, o juiz deve verificar a voluntariedade e a legalidade do acordo, bem como a adequação, a suficiência e a ausência de abusos nas condições estabelecidas.

A última etapa corresponde à execução das condições do acordo perante o juízo de execução penal. Ao final, se todas as condições forem devidamente cumpridas, a punibilidade é extinta sem a formação de juízo de responsabilidade penal [7] e sem a produção de antecedentes criminais [8].

Como efeito jurídico do cumprimento das condições, a extinção da punibilidade resulta no desaparecimento da pretensão punitiva do Estado sobre o fato objeto do acordo. Trata-se de disposição de evidente caráter penal material. Já as condições a serem cumpridas pelo investigado são semelhantes a penas restritivas de direitos e a efeitos da condenação [9], com exceção da reparação do dano, que parece constituir condição independente, mas também tem caráter sancionatório. Embora a lei não tenha utilizado as expressões pena ou efeito da condenação, não se pode negar o caráter penal material dessas condições. Não por acaso a competência de execução das condições acordadas é do juízo de execução penal [10].

Por combinar normas procedimentais com efeitos e condições de caráter penal material, o acordo de não persecução é instituto híbrido. Sua retroação é possível desde que a nova lei seja favorável ao agente.

Para saber se o acordo é, de fato, favorável ao investigado, é necessário considerar a extensão de seus efeitos jurídicos e de suas condições de cumprimento. Os efeitos do acordo são, em princípio, mais favoráveis que os possíveis efeitos da persecução criminal, tendo em vista que ele produz a extinção da punibilidade sem o risco de atribuição de um juízo de responsabilidade penal e sem a formação de antecedentes criminais. Além disso, o acordo dispensa o investigado do desgaste de enfrentar um processo criminal.

Já as condições de cumprimento só serão mais favoráveis se encontrarem limites materiais claros. Sustentamos que esses limites devem ser definidos a partir do estado em que se encontra o procedimento: se ainda não há sentença condenatória proferida, as condições de cumprimento não podem ultrapassar a pena mínima cominada ao delito; se já há sentença condenatória proferida, as condições não podem ultrapassar a pena aplicada. Apenas duas condições a reparação do dano e a perda de bens e direitos aparentemente não se encaixariam nesses critérios e já são objeto de reflexões específicas. Na parte final deste texto apresentaremos a fundamentação e a determinação concreta dos limites propostos, construídas a partir de uma interpretação sistemática do artigo 28-A do CPP.

As considerações até aqui expostas permitem a formulação de nossa resposta à questão inicial: por ser instituto híbrido favorável ao investigado, o acordo de não persecução penal pode retroagir a fatos anteriores à sua vigência.

A primeira consequência da possibilidade de retroação é a de que o acordo de não persecução penal pode ser aplicado em qualquer procedimento criminal em curso, com exceção de investigações preliminares ainda não concluídas. Cabe considerar as particularidades de cada caso.


 

 

 

O caso mais simples diz respeito à aplicação do acordo em investigações preliminares já encerradas que não comportam arquivamento e ainda não têm denúncia oferecida. O acordo pode ser proposto desde que o Ministério Público fundamente a existência de justa causa para o oferecimento da denúncia. Nesse caso, a aplicação da nova lei pode se justificar tanto pela regra de retroação da lei penal favorável ao investigado, quanto pela regra de vigência temporal da lei processual penal [11]. O acordo não pode ser proposto, em nenhuma hipótese, antes da conclusão das investigações preliminares.

 

O caso seguinte refere-se à incidência do acordo sobre processos em curso. O acordo é plenamente aplicável a processos em curso ainda não sentenciados. Essa é uma consequência natural da regra de retroação da lei penal mais favorável. Também não existe qualquer óbice legal à incidência do acordo em processos que se encontrem em fase recursal. Discussão semelhante já foi realizada, por exemplo, no início da vigência da transação penal e da suspensão do processo, com a admissão da retroação da Lei 9.099/1995 [12].

O acordo também pode ser aplicado em processos com sentença condenatória transitada em julgado, cuja pena ainda não se encontre extinta. O artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal dispõe expressamente que a "lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado". Deve-se ponderar, no entanto, que quando a execução das penas já se encontra em curso, o acordo nem sempre será uma alternativa concretamente vantajosa ao apenado.

O segundo ponto relevante que decorre da aplicação do acordo a procedimentos já iniciados é a delimitação do âmbito de atuação do juiz. De acordo com o artigo 28-A do CPP, a iniciativa de propor o acordo é do Ministério Público e o juiz somente atua na fase de homologação.

Apesar disso, nos procedimentos em curso em que a possibilidade de acordo não pôde ser avaliada no momento processual adequado, não existe qualquer prejuízo no ato judicial de intimação das partes para que elas se manifestem sobre o interesse no acordo [13], havendo ou não prévia provocação. O fundamental é que o juiz não participe de nenhuma maneira da negociação propriamente dita, pois não se poderia mensurar qualquer interferência do juiz sobre o resultado dessa fase. A negociação não pode ocorrer dentro de autos judiciais. Consequentemente, ela não deve ser aceita no âmbito de audiência judicial. Se o processo já se encontra em curso e há possibilidade de negociação, a melhor solução parece ser a suspensão do processo durante o período das tratativas, exceto se o processo já tiver transitado em julgado e se encontrar em fase de execução.

A última consequência a ser analisada refere-se aos limites materiais das condições de cumprimento que podem ser fixadas no acordo. O estabelecimento de limites claros às condições de cumprimento é relevante não somente em casos de retroação; ele é condição de validade em qualquer acordo, tendo em vista que o artigo 28-A, § 5º, do CPP impede a homologação de condições de cumprimento inadequadas ou abusivas.

Nas investigações concluídas e nos processos ainda não sentenciados, as condições de cumprimento não podem ser mais graves que o limite mínimo abstrato do tipo penal. Nos processos que se encontram em fase recursal ou em execução, as condições do acordo não podem ultrapassar a pena aplicada em sentença, embora deva-se preferir a aplicação do limite mínimo abstrato nos casos em que a condenação possa ser revertida ou reduzida.

Um acordo firmado com condições mais graves que as acima expostas deixaria de representar uma alternativa menos prejudicial que a persecução penal. Para justificar condições mais graves que a pena mínima ou a pena aplicada, o Ministério Público teria que fazer implícita ou explicitamente um juízo especulativo sobre a possível pena que o investigado ou acusado receberia ao final do processo. Ocorre que uma especulação do Ministério Público sobre a pena concreta durante a negociação pode violar o princípio da presunção de inocência como regra de tratamento, tendo em vista que a aferição da pena concreta é ato judicial que pressupõe produção de provas sob contraditório judicial e aplicação dos critérios legais de medição da pena. Do mesmo modo, esse juízo especulativo pode ter efeito intimidatório sobre o investigado. Diante do temor de receber a pena eventualmente indicada pelo Ministério Público como provável, o investigado pode se sentir inibido ou pressionado durante a fase de negociação. Assim, ficaria fragilizada a voluntariedade, que é condição de validade do acordo [14].

Em uma leitura sistemática do artigo 28-A do CPP, a limitação das condições à pena mínima ou à pena aplicada conduz à conclusão de que as condições de cumprimento não podem ultrapassar os limites mínimos das penas restritivas de direitos que substituiriam a pena privativa de liberdade. Isso porque os crimes que podem ser objeto do acordo admitem, em princípio, a aplicação de penas restritivas de direitos.

A determinação desses limites deve observar duas balizas concretas: a quantidade de condições que podem compor um acordo e o valor de cada condição considerada individualmente. Os limites para a quantidade de condições devem ser extraídos do artigo 44, §2º, do Código Penal. Crimes com pena mínima igual ou inferior a um ano podem ter apenas uma condição fixada. Já crimes com pena mínima superior a um ano podem ter apenas duas condições estabelecidas. Essa interpretação é conforme ao artigo 28-A do CPP, porque ele estabelece que as condições devem ser aplicadas "cumulativa e alternativamente".

Já o valor concreto de cada condição escolhida deve ser negociado de acordo com os parâmetros de necessidade e suficiência "para reprovação e prevenção do crime", como também estabelece o artigo 28-A do CPP. Embora esses parâmetros, isoladamente considerados, transmitam certa indeterminação à ponderação dos fatos, é certo que não se pode ultrapassar os limites máximos das respectivas penas restritivas de direitos, quando o próprio artigo 28-A do CPP já não os estabelece.

Se as condições fixadas ultrapassarem as balizas apresentadas, elas podem ser reputadas inadequadas ou abusivas, o que autoriza o juiz a devolver os autos ao Ministério Público para a reformulação da proposta, nos termos do artigo 28-A, §5º, do CPP.

Três condições contidas no artigo 28-A do CPP podem apresentar maiores dificuldades de harmonização com a interpretação aqui proposta e devem suscitar maiores discussões no futuro. O cumprimento "de outra condição indicada pelo Ministério Público", presente no artigo 28-A, V, do CPP, é disposição excessivamente indeterminada, mas pode ser harmonizado com a interpretação aqui apresentada desde que a condição indicada pelo Ministério Público corresponda à aplicação de interdições temporárias de direitos (artigo 47 do Código Penal) ou limitação de fim de semana (artigo 48 do Código Penal). Em virtude do caráter penal das condições do acordo de não persecução penal, não seria possível ao Ministério Público criar condições não previstas em lei. Se uma condição sem previsão legal fosse homologada, poderia haver violação ao princípio da legalidade penal.


 

 

 

Já a renúncia a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumento, produto ou proveito do crime, contida no artigo 28-A, II, do CPP, assemelha-se a um efeito da condenação (artigo 91, II, b, do Código Penal) e pode apresentar problemas mais complexos, como o relativo à prova da relação do bem ou do direito com o crime. Por fim, como já mencionado, a reparação do dano (artigo 28-A, I, do CPP) parece se apresentar como condição autônoma que não parece se enquadrar nos limites aqui propostos e exigirá reflexões específicas no futuro.

 

Em conclusão, o acordo de não persecução penal pode retroagir a fatos anteriores à sua vigência e pode incidir em procedimentos criminais em qualquer fase, com exceção das investigações que ainda se encontrem em curso. Mas algumas limitações devem ser obrigatoriamente observadas. O juiz não pode participar da negociação, sob pena de interferência em um ato que só pode ser praticado pelas partes. Além disso, as condições de cumprimento firmadas não podem ser mais graves que os limites mínimos das penas abstratas previstas no tipo penal, caso ainda não haja sentença proferida, nem podem ultrapassar as penas fixadas, caso já haja sentença condenatória. Acreditamos que a aplicação desses parâmetros básicos tem o potencial de contribuir para a harmonização desse novo e complexo instituto com o sistema penal vigente.

 


[1] As condições do artigo 28-A, III e IV, do CPP assemelham-se a penas restritivas de direitos previstas nos artigos 44 e 46 do Código Penal. A condição do inciso V tem sido objeto de maiores questionamentos. Mais adiante no texto defenderemos que ela também deve ser lida à luz das regras das penas restritivas de direitos.

[2] A condição do artigo 28-A, II, do CPP tem evidente semelhança com o efeito da condenação previsto no artigo 91, II, b, do Código Penal.

[3] A reparação do dano (artigo 28-A, I, do CPP) parece se colocar como condição autônoma que merece reflexões especiais. Sem se negar a importante discussão que envolve essa condição, seus limites não serão discutidos no presente texto.

[4] artigo 28-A, caput, do CPP.

[5] Conforme o artigo 3º-B, XVII, do CPP. Dentre outras vantagens, a atuação do juiz das garantias evitaria a contaminação do processo com a confissão produzida no acordo.

[6] A eficácia se encontra suspensa em virtude de decisão monocrática do ministro Luiz Fux proferida conjuntamente nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, em 22 de janeiro de 2020.

[7] Artigo 28-A, § 13, do CPP.

[8] Artigo 28-A, § 12, do CPP.

[9] Cf. notas de rodapé 1 e 2.

[10] Artigo 28-A, § 6º, do CPP.

[11] O artigo 2º do CPP estabelece que “[a] lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.”

[12] Nesse sentido: HC 9.077/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 04/11/1999, DJ 29/11/1999. O argumento também é defendido, com maiores detalhes, em: ROCHA, Cláudia da; LUZ, Ana Beatriz da; ALMEIDA, Gabriel Bertin. Acordos de não persecução penal em processos com sentença condenatória já proferida. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/opiniao-acordo-nao-persecucao-penal-condenacao-proferida#_ftnref1>. Acesso em: 13/5/2020.

[13] É digna de nota a Portaria Conjunta 20/PR-TJ-MG/2020, firmada em Minas Gerais pelo Tribunal de Justiça e pelo Ministério Público, que prevê procedimento específico para a verificação da possibilidade de se firmar acordos em processos em curso. O artigo 2º da portaria estabelece, inclusive, que os juízes com competência criminal devem determinar às respectivas secretarias que identifiquem inquéritos e processos não sentenciados que se enquadrem nas hipóteses do acordo de não persecução.

[14] Artigo 28-A, § 4º, do CPP.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!