Academia de polícia

O sínodo cadavérico: os efeitos extrapenais de negócios jurídicos processuais

Autores

  • Adriano Sousa Costa

    é delegado de Polícia Civil de Goiás autor pela Juspodivm e Impetus professor da pós-graduação da Verbo Jurídico MeuCurso e Cers membro da Academia Goiana de Direito doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

  • Pedro Henrique Ramos Sales

    é mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público; especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; analista Judiciário do STF; ex-assessor de Ministro do STF; e ex-assessor parlamentar no Senado Federal.

14 de julho de 2020, 8h00

Spacca
No final do século IX, o papa Estevão ordenou a exumação de seu antecessor, Formoso, morto nove meses antes de ele tomar posse, para submetê-lo a julgamento por excesso de ambição. O resultado foi que Estevão excomungou o falecido Formoso, que foi despido de suas vestes papais e teve amputados os dedos da mão direita, utilizados para abençoar os fiéis1. A pergunta que cabe responder: qual foi a função de se buscar uma punição teatral para um fato que já estava completamente resolvido pelo destino fatal?

A história acima se conecta claramente com o propósito desse artigo, cujo tema central é a (im)possibilidade de um suspeito se ver processado em múltiplas searas (administrativa, cível, penal etc.), mesmo tendo realizado e cumprido um negócio jurídico processual de espectro variado. Vale lembrar que um negócio jurídico – no âmbito criminal – pode trazer elementos de outras sendas do direito (civil, administrativo etc.), tornando, portanto, o seu alcance maior do que o permitido ao Direito Processual e Penal.

Por isso, é tão importante aprofundarmos a discussão sobre os efeitos da extinção total da punibilidade — derivada do cumprimento de acordos de não persecução penal, de colaboração premiada ou de transação penal2, — definindo se possuem a aptidão de vedar a instauração ou a continuidade, em outras instâncias interligadas, de procedimentos apuratórios — em detrimento dos mesmos atores — sobre pontos já pactuados em tais negócios jurídicos mais abrangentes. Claro que, se não houver acordo sobre a extinção da punibilidade total (a exemplo dos pactos que versam sobre a mera incidência de fatores de redução de pena e outras circunstâncias acessórias benéficas), não há motivo para se pugnar pelo obstáculo à continuidade de procedimentos apuratórios em outras esferas.

Para exemplificar, um servidor que pratique um crime contra a Administração Pública, ao realizar e cumprir um acordo de colaboração premiada (beneficiando-se do perdão judicial, v.g.), deve ser alvo de persecução administrativa pelo mesmo fato? A nosso ver, não. Se for realizado um negócio jurídico processual em face desse ato que afronta à administração pública, principalmente quando houver cláusula expressa nesse sentido, não haveria motivo para subsistir o interesse de se punir tal violação na senda administrativa.

A existência de várias esferas independentes não justifica a interpretação da moralidade administrativa e da administração pública sob várias rubricas e com significados estanques. O Estado é organismo uno e, se opta por transacionar sobre os seus bens jurídicos mais caros, não pode fazê-lo de forma fragmentária. Se a violação a um bem jurídico é incompatível com vetores importantes da nação, certamente tais pactos deveriam ser vedados pela lei3.

Ademais, é preciso recordar que o Direito Penal é a ultima ratio, o qual somente vem à baila quando nenhuma outra seara do direito é suficiente para dar solução satisfatória ao conflito social. E, nesse sentido, se a persecução penal se mostrou dispensável, tanto é que um acordo fora firmado, não parece haver motivo para remanescerem pretensões punitivas orbitárias e que tenham por fundamento os mesmos fatos já valorados quando do firmamento do negócio jurídico processual.

Outrossim, percebemos que o legislador deixou evidenciar — em inúmeras oportunidades — que o decisório em uma instância principal pode vincular e obstacularizar a outra. Entretanto, para além da aporia da estrita independência entre as instâncias — que reputamos ser passível de mitigações — cumpre-nos perceber o debate que já vinha sendo travado em nossos tribunais.

De plano, merece registro o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, analisado em Plenário, acerca da questão dos efeitos extrapenais dos acordos de colaboração premiada. A Corte assentou que o acordo de colaboração poderia dispor sobre efeitos extrapenais de natureza patrimonial da condenação4. Na espécie, tratou-se da liberação de imóveis do interesse do colaborador, supostamente produtos de crimes. (HC 127483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, 26 e 27.8.2015. HC-127483). No HC n. 127483/PR reconheceu-se a possibilidade de que "o Estado-Administração, representado pelo titular da ação penal pública, possa dispor, no acordo de colaboração, sobre questões de natureza patrimonial, ressalvado o direito de terceiros de boa-fé", no sentido de abrandar as consequências do crime relativas aos efeitos patrimoniais, com fundamento na Convenção de Palermo e na Convenção de Mérida, firmadas pelo Brasil.

Especificamente sobre a extensão dos efeitos do negócio jurídico processual, à luz do que dispõe a Lei n. 8.429/1992, quando movida a ação de improbidade administrativa em face do colaborador5, por fatos inclusos nos termos do acordo de colaboração premiada, o Supremo Tribunal Federal reconheceu como tema de repercussão geral a utilização da colaboração premiada no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público6.

É preciso ficar claro que não estamos discutindo a possibilidade de acordos penais (gerando efeitos em outras searas do direito) serem fundados em argumentos utilitaristas da teoria dos poderes implícitos7. Não se quer transformar os acordos penais em um quid pro quo negocial. Não obstante, se as pretensões punitivas orbitárias forem devidamente previstas em um desses mecanismos negociais mais abrangentes (independentemente de quem seja o ator estatal responsável pelo firmamento), não parece razoável rechaçar tal vinculação às sendas acessórias respectivas, principalmente quando o único óbice apresentado for o argumento de que as searas são independentes e autônomas8.

Lembre-se de que tais acordos precisam da chancela homologatória do Poder Judiciário, o que serve para lhes conferir essa maior oponibilidade. Essa tarefa de análise da adequação dos benefícios pactuados, inclusive em face de efeitos extrapenais que se irradiariam por outras sendas, será necessariamente realizada pelo magistrado na homologação do acordo (cf. art. 4º, § 7º, inciso II, da Lei n. 12.850/2013). Inclusive, não vemos impedimento na busca do magistrado pela manifestação (não vinculativa) dos órgãos ou dos Poderes responsáveis por essas outras possíveis medidas sancionatórias, antes de tomar a sua decisão de homologar o acordo naqueles estritos termos ou de devolvê-lo para reparos (cf. art. 4º, § 8º, da Lei n. 12.850/2013).

Ademais, não é uma questão de quem fez o acordo (por exemplo, na colaboração premiada, se foi um Delegado de Polícia ou um Promotor de Justiça); a questão é a de se evitar a incongruência lógica do próprio sistema persecutório do Estado, bem como manter hígido o macrossistema de justiça negociada brasileiro. Desarrazoado é pensar em um sistema multifragmentário que obrigaria o colaborador a uma via crucis por solução cabal de sua situação jurídica, mesmo estando tudo vinculado ao mesmo fato. Não pode o investigado ser obrigado a pactuar em tantas quantas forem as searas possíveis de tangenciamento do fato que praticara, sob a ameaça velada de ser processado em todas elas.9

Importante destacar que existem negócios jurídicos processuais, em nosso ordenamento, que suplantam a atuação de órgãos que tem atribuições extraídas diretamente da Constituição Federal, como é o caso do TCU10. Há também os negócios que, ao serem firmados por autoridades alheias à persecução penal, geram efeitos na senda criminal. Isso reforça a tese de que o indivíduo negocia com o Estado (no âmbito do microssistema de justiça consensuada), e não com determinados membros e órgãos de Poder isolados.

Por exemplo, no caso dos acordos de leniência, o principal legitimado a firmar acordos de leniência, nos termos da Lei Antitruste, é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça, ao qual incumbe velar pela aplicação escorreita da Lei de Defesa da Concorrência no Brasil (Lei n. 12.529/2011). E as repercussões de tal acordo de leniência não se resumem à senda civil e à administrativa, porquanto impactam na órbita criminal.

Nos termos do artigo 87 do referido diploma legal, nos casos de crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo de prescrição penal e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. Ademais, nos termos do parágrafo único do mesmo dispositivo, cumprido o acordo de leniência pelo agente investigado, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo.

Ao fim e ao cabo, o reconhecimento dos efeitos extrapenais vinculantes dos negócios jurídicos processuais é medida que se impõe para assegurar a eficácia, a atratividade dos referidos institutos jurídicos e a necessária segurança jurídica. Tais contratos são voluntários e contam com a renúncia do Estado ao seu poder-dever de reprimenda mais grave (Direito Penal) em troca daquilo que acredita mais compatível com suas limitações e com o interesse público. Não é muito difícil notar a pertinência prática do que estamos a evidenciar aqui: em qualquer tipo de negócio jurídico, ninguém se vê incentivado a pactuar no escuro e por fragmentos, correndo o risco de sua confissão e ajuda ao Estado não serem considerados por outros órgãos públicos. Enfim, esse tema precisa ser mais debatido no Brasil, principalmente pela nova roupagem de justiça negociada que toma corpo por aqui.


1 https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-estevao-o-papa-que-julgou-um-cadaver.phtml

2 Se não houver acordo sobre a extinção da punibilidade total (a exemplo dos pactos que versam sobre a mera incidência de fatores de redução de pena e outras circunstâncias acessórias benéficas), não há motivo para se pugnar pelo obstáculo à continuidade de procedimentos apuratórios em outras esferas.

3 Não é inviável o legislador proibir, no texto legal, negócios jurídicos processuais acerca de crimes contra a administração pública. Se não o faz, reputamos que é por uma questão de política criminal.

4 A título de exemplificação, cita-se cláusulas de efeitos cíveis devido a danos ao patrimônio público contidas no termo de acordo de colaboração premiada de Paulo Roberto Costa na Operação Lava Jato, confira-se: Cláusula 6ª. O colaborador renuncia, em favor da União, a qualquer direito sobre valores mantidos em contas bancárias e investimentos no exterior, em qualquer país, inclusive mantidos no […], os quais reconhece serem todos, integralmente, produto de atividade criminosa O colaborador se compromete a prontamente praticar qualquer ato necessário à repatriação desses valores em benefício do país, assinando, em anexo, desde logo, termo nesse sentido

5 Fato é que a discussão acima perdeu um pouco a importância após o pacote anticrime (Lei n. 13.964/2019) porquanto agora, com a substituição da antiga redação do art. 17, § 1º, da Lei n. 8249/1992, passou-se a permitir ao Ministério Público, expressamente, firmar acordos de não persecução cíveis, o que não lhe era permitido pela mera leitura da lei de improbidade. Nesse caso, por óbvio, um acordo de colaboração premiada ou de não persecução penal – abrangendo a matéria de improbidade, não seriam anômalos, até porque o Parquet estaria legitimado pela lei a atuar nessas arenas.

6 RE 1175650 RG, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 25/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-093 DIVULG 06-05-2019 PUBLIC 07- 05-2019

7 […] Não há como aplicar, analogicamente, os benefícios da delação premiada e do perdão judicial nos casos de ações nas quais se debatem a existência de atos de improbidade administrativa, eis que se trata de institutos específicos da esfera penal. A indisponibilidade do patrimônio público e do interesse público primário obstam a aplicação, em sede de ação de improbidade administrativa, do "perdão judicial" decorrente de celebração de Acordo de Delação Premiada. (TJDFT, Acórdão n.804101, 20110110453902APC, Relator: CARMELITA BRASIL, Revisor: SÉRGIO ROCHA,2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 09/07/2014, Publicado no DJE: 21/07/2014. Pág.: 100

8 Seguindo esta diretriz, a Justiça Federal em Curitiba admitiu os efeitos extrapenais do acordo de colaboração premiada firmado com Paulo Roberto Costa na ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal na Operação Lava Jato. Ação Civil de Improbidade Administrativa nº 5006717-18.2015.4.04.7000/PR, 5ª Vara Federal de Curitiba. Decisão. Juíza de Direito Giovanna Mayer. Data: 17/11/2015

9 Em semelhante direção, mas em sentido inverso, note que os órgãos incumbidos da persecução penal, ao realizarem um negócio jurídico processual, também abrem "mão" de ver a perda do cargo do agente público (art. 92, inciso I, do Código Penal) ser concretizada como um efeito específico da condenação. E a perda do cargo – mesmo sendo a maior pena possível pela autoridade administrativa – é sopesada como de menor importância frente aos efeitos que se poderá alcançar com um negócio processual desse quilate, tanto é que, a nosso ver, não seria inviável que um acordo de colaboração premiada trouxesse como uma de suas cláusulas a não perda do cargo. Afinal, se é possível transacionar sobre o próprio jus puniendi, parece-nos razoável que também o possa fazê-lo em relação aos efeitos específicos da condenação.

10 A título de exemplo, o Tribunal de Contas da União solicitou acesso aos anexos da delação da JBS homologada pelo Ministro Edson Fachin para instruir auditoria que busca ressarcimento de eventuais prejuízos havidos em operações do BNDES no mercado de valores mobiliários. Em novembro do ano passado, o Tribunal de Contas da União solicitou novamente acesso aos termos de um termo de colaboração, desta vez dirigindo-se ao acordo firmado com Antônio Palocci, também em procedimento aberto para apurar eventuais prejuízos suportados pelo BNDES.

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    é delegado de Polícia Civil de Goiás; autor pela Juspodivm e Impetus; professor da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás, Verbo Jurídico e CERS; membro da Academia Goiana de Direito; doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

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    é mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público; especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; analista Judiciário do STF; ex-assessor de Ministro do STF; e ex-assessor parlamentar no Senado Federal.

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