Opinião

Considerações sobre atualização monetária dos créditos trabalhistas

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13 de julho de 2020, 6h04

O tema afeto à atualização monetária dos créditos trabalhistas obtidos a partir de condenações proferidas pela Justiça do Trabalho tem sido alvo de discussões tanto doutrinárias quanto judiciais há longo tempo e o mais recente capítulo desta saga foi produzido a partir das decisões tomadas pelo ministro Gilmar Mendes quando da análise da medida cautelar apresentada na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 58 — DF, a qual tem por objeto a declaração de constitucionalidade dos artigos 879, §7º, 899, §4º da CLT e artigo 39, caput e §1º, da Lei 8.177/91.

O artigo 879, §7º, da CLT assim dispõe:

"A atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial será feita pela Taxa Referencial (TR), divulgada pelo Banco Central do Brasil, conforme a Lei 8.177, de 1º de março de 1991".

Registre-se, por oportuno, que tal redação foi conferida pela Lei 13.467/17, a qual passou a viger a partir de 11 de novembro de 2017 (reforma trabalhista).

Até então, o dispositivo legal que regulava a matéria era precisamente o artigo 39, caput, da Lei 8.177/91, que em linhas gerais possuía o mesmo conteúdo, conforme se verifica abaixo:

"Os débitos trabalhistas de qualquer natureza, quando não satisfeitos pelo empregador nas épocas próprias assim definidas em lei, acordo ou convenção coletiva, sentença normativa ou cláusula contratual sofrerão juros de mora equivalentes à TRD acumulada no período compreendido entre a data de vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento".

Esse dispositivo legal já havia sido declarado inconstitucional pelo TST, em quando da análise do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade nº 479-60-2011-5-04-0231.

Em sede de embargos de declaração houve ajuste da modulação temporal, para que o IPCA-E fosse aplicado apenas a partir de 25 de março de 2015 e também foi excluída a determinação anterior no sentido de que fossem alteradas as tabelas unificadas, para que contemplassem tal índice a partir de 30 de junho de 2009.

Ocorre que, conforme visto acima, após a declaração de inconstitucionalidade do artigo 39 da Lei 8.177/91, houve alteração legislativa e o conteúdo do dispositivo do artigo 39, caput, passou a fazer parte integrante da CLT, em seu artigo 879, §7º.

Em razão dessa alteração legislativa nova arguição de inconstitucionalidade foi aviada junto ao TST, desta feita em face do artigo 879, §7º, da CLT e o julgamento do referido incidente estava prestes a ser encerrado, nos autos 24059-68-2017-5-24-0000, já com maioria formada no sentido de declarar inconstitucional a TRD para efeito de recomposição monetária dos créditos trabalhistas.

Antes da declaração final acerca deste tema, no âmbito do TST, foi ajuizada uma medida cautelar nos autos de ADC 58-DF acima mencionada, que tinha por objetivo sustar o julgamento em curso, até que o STF decidisse definitivamente sobre o tema.

Referida cautelar foi apreciada pelo ministro Gilmar Mendes, que assim decidiu:

"Ante o exposto, defiro o pedido formulado e determino, desde já, ad referendum do Pleno (artigo 5º, da lei 9.882 c/c artigo 21 da Lei 9.868) a suspensão do julgamento de todos os processos em curso no âmbito da Justiça do Trabalho que envolvam a aplicação dos artigo 879, § 7º e 899, § 4º, da CLT, com a redação dada pela Lei nº 13.467/2017, e o artigo 39, caput e § 1º, da Lei 8.177/91, Dê-se ciência ao Tribunal Superior do Trabalho, aos Tribunais Regionais do Trabalho e ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, para as necessárias providências. Publique-se. Brasília, 27 de junho de 2020".

Diante da perplexidade de toda a comunidade jurídica que atua na Justiça Especializada Trabalhista, ao verificar os impactos desmesurados da decisão proferida, que no limite paralisaria toda a Justiça do Trabalho, na medida em que em praticamente todas as reclamatórias trabalhistas há a necessidade de decidir-se acerca do índice de atualização dos créditos trabalhistas, houve então a interposição de agravo regimental por parte da Procuradoria-Geral da República, buscando maiores esclarecimentos acerca da extensão e alcance desta medida liminar.

Na nova decisão, também monocrática, o ministro Gilmar Mendes procura esclarecer que:

"Por todo o exposto, rejeito o pedido de medida cautelar no Agravo Regimental, mantendo in totum a decisão recorrida pelos seus próprios fundamentos. Para que não paire dúvidas sobre a extensão dos efeitos da decisão recorrida, esclareço mais uma vez que a suspensão nacional determinada não impede o regular andamento de processos judiciais, tampouco a produção de atos de execução, adjudicação e transferência patrimonial no que diz respeito à parcela do valor das condenações que se afigura incontroversa pela aplicação de qualquer dos dois índices de correção. Brasília, 1º de julho de 2020. Ministro GILMAR MENDES. Relator".

Ocorre que esses esclarecimentos ainda não solucionam a questão, senão vejamos:

1) Se existe a possibilidade de realizarmos atos de execução isso significa que a decisão já transitou em julgado definindo qual o índice a ser aplicado. Se a decisão já transitou em julgado a futura decisão a ser tomada no âmbito da ADC não lhe atinge (Artigo 525, §12 e 14, CPC), mostrando-se inócua a determinação contida na liminar;

2) Se a execução é provisória ela perderá essa característica a partir do trânsito em julgado da decisão. Caso essa decisão seja pela inconstitucionalidade da TR e aplicação do IPCA-E, esta é a decisão que deverá ser executada, tornando ineficaz qualquer julgamento futuro da ADC;

A par dessas incoerências teremos questões muito mais graves a serem dirimidas.

Perceba-se que em um dos trechos da decisão o ministro relator deixa claro que:

"Em situações como a ora colocada, resta claro que a matéria controvertida o índice de correção monetária aplicável aos débitos trabalhistas é matéria passível de apreciação pelo juiz tanto na fase de conhecimento quanto na fase de execução. Todavia, a preservação da utilidade real do julgamento de mérito desta ADC de modo algum exige a paralisação de todo e qualquer processo trabalhista que possa vir a ensejar a prolação de sentença condenatória. O que se obsta é a prática de atos judiciais tendentes a fazer incidir o índice IPCA-E como fator de correção monetária aplicável em substituição da TR, contrariando o disposto nos arts. 879, § 7º, e 899, § 4º da CLT, com a redação dada pela lei nº 13.467/17".

A única interpretação possível é a de que o ministro relator autorizou que se prossigam as decisões judiciais, ainda que no sentido de declarar a inconstitucionalidade da TR para atualização dos créditos trabalhistas, porém quando da liquidação e execução do julgado deverá ser observado o índice afeto à TR, até que sobrevenha decisão definitiva do STF a respeito.

Isso fica mais evidente a partir do exame do seguinte excerto:

"Assim, deve ficar claro que a medida cautelar deferida na decisão agravada não impede o regular andamento de processos judiciais, tampouco a produção de atos de execução, adjudicação e transferência patrimonial no que diz respeito à parcela do valor das condenações que se afigura incontroversa pela aplicação de qualquer dos dois índices de correção… A controvérsia sobre eventuais valores compreendidos no resultado da diferença entre a aplicação da TR e do IPCA-E (parcela controvertida) é que deverá aguardar o pronunciamento final da Corte quando do julgamento do mérito desta ADC…".

Ora, se temos dois índices isso significa que se mostra possível determinar-se a adoção do IPCA-E, no caso concreto, o que ficou vedado, ao que tudo indica, é apenas a execução de valores atualizados pelo IPCA-E, devendo ser aplicado, de forma conservadora e provisória, os índices relativos à TRD, até a decisão definitiva a ser tomada no referido ADC.

Se isso é verdade, teremos algumas situações inusitadas, do ponto de vista teórico e prático.

Aquelas decisões que declararem inconstitucional o artigo 879, §7º, da CLT passarão a ter natureza de provimento condicional vinculado a evento futuro e incerto.

O evento futuro e incerto é a decisão final do ADC, que não sabemos se entenderá pela constitucionalidade ou não do referido artigo.

Sabemos que não é dado ao julgador proferir decisões condicionais, pois o título executivo deve ser certo, ainda que resolva relação jurídica condicional, a teor do disposto no artigo 492, § único do CPC.

Esse é o primeiro problema técnico a ser levado em consideração.

Em segundo lugar, temos a questão inarredável da coisa julgada, que caso ocorra em período dentro do qual ainda não tenha havido decisão definitiva da ADC, fará com que a decisão proferida pelo juízo trabalhista não seja mais passível de alteração, exatamente em razão do disposto no artigo 525 e parágrafos 12 e 14 do CPC acima mencionado.

Em terceiro lugar temos a inusitada situação de que, se assim não entendermos, teríamos que admitir a possibilidade de conviver com execuções provisórias de decisões já transitadas em julgado, o que, notadamente, não encontra respaldo em qualquer dispositivo legal que se encontra em vigor. Isso ocorreria na hipótese de decisão transitar em julgado declarando inconstitucional o artigo 879, §7º, da CLT e ainda assim termos que executá-la com base em índices relativos à TRD, sem qualquer respaldo em nenhum comando contido nos autos.

Por fim, caso se interprete que a decisão futura a ser tomada pelo STF pode vir a desconstituir a coisa julgada, teremos aqui uma hipótese sui generis de ação rescisória também não contemplada no ordenamento jurídico, não havendo que se falar em coisa julgada inconstitucional quando a decisão definitiva tomada pelo STF ocorreu APÓS a decisão já transitada em julgado.

São essas as perplexidades observadas a partir da análise das decisões liminares proferidas nos autos de ADC 58 DF e que merecem ser definitivamente aclaradas, sob pena de prosseguirmos em um estado de insegurança jurídica por muito tempo, dado que normalmente o julgamento definitivo desta modalidade de ação não costuma ocorrer com brevidade.

Um efeito indesejado e bastante concreto, é a impossibilidade de determinarmos o arquivamento definitivo das execuções por um largo período de tempo, pois as execuções "provisórias" somente se tornarão "definitivas" após o evento futuro e incerto consubstanciado na decisão a ser tomada nos autos da referida ADC.

Não desconheço o teor do § único do artigo 21 da Lei 9.868/99, que prevê decisão de mérito em ações de controle concentrado no máximo em até 180 dias após a decisão liminar, ocorre que esse artigo vem sendo "flexibilizado" pelo STF ao longo do tempo, permitindo que, na prática, tais decisões passem a reger as relações jurídicas por ela tuteladas por longo período de tempo, conforme se verifica, por exemplo, na ADPF/QO nº 130:

"Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Lei de Imprensa. Referendo da medida liminar. Expiração do prazo de 180 (cento e oitenta) dias. Tendo em vista o encerramento do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, fixado pelo Plenário, para o julgamento de mérito da causa, resolve-se a Questão de Ordem para estender esse prazo por mais 180 (cento e oitenta) dias".

Conclusão
Estamos diante de um tema bastante sensível a ser dirimido definitivamente pelo STF, porém o que se verifica é que até que essa questão seja pacificada é necessário que diversas questões sejam melhor esclarecidas, sob pena de convulsão futura em toda a Justiça especializada, quer seja por obrigar os juízes a proferir sentenças condicionais, quer seja por criar a figura de execução provisória de decisão já transitada em julgado, quer seja por conferir efeitos rescisórios a decisão futura a ser tomada pelo STF.

Tudo conspira, portanto, para que essa decisão seja tomada no mais breve tempo possível, e que a um só tempo se preserve o resultado útil da declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade do dispositivo legal, porém sem inviabilizar o regular trâmite dos processos judiciais que já se encontram em curso.

Importante deixar registrado que a decisão proferida pela TST em sede de Arguição de Inconstitucionalidade 479-60-2011-5-04-231 se utilizou da mesma ratio decidendi já apresentada pelo STF em julgamentos proferidos em controle concentrado (ADI 4357 e 4425) e difuso (RE 870.947), no sentido de que a TRD não se mostra um índice hábil a captar a variação inflacionária e esse argumento levou a referida corte a determinar a aplicação do IPCA-E para a atualização monetária dos débitos da Fazenda Pública.

Não parece razoável que o mesmo índice declarado incapaz de detectar a variação do índice de preços para efeito de recomposição de créditos tributários e que foi declarado como verdadeira agressão ao princípio da propriedade pelo STF, possa agora ser reputado legítimo para apurar a atualização monetária dos créditos trabalhistas, eis que, estes sim, possuem natureza alimentar e sofrem direto impacto dos índices inflacionários, que somente são detectados a partir dos índices apontados pelo IPCA-E.

Oportuno reproduzir aqui os argumentos assentados pelo ministro Carlos Ayres de Brito em seu voto sobre o tema, e que se mostrou o voto condutor neste particular, ao afirmar que a atualização monetária deve ser capaz de recompor o valor histórico da moeda, sob pena de configurar agressão ao direito de propriedade.

Nesse sentido a ementa extraída da ADI 4357:

"…5. O direito fundamental de propriedade (CF, artigo 5º, XXII) resta violado nas hipóteses em que a atualização monetária dos débitos fazendários inscritos em precatórios perfaz-se segundo o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança, na medida em que este referencial é manifestamente incapaz de preservar o valor real do crédito de que é titular o cidadão. É que a inflação, fenômeno tipicamente econômico-monetário, mostra-se insuscetível de captação apriorística (ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o fim a que se destina (traduzir a inflação do período)".

Evidente que se temos aqui uma agressão ao direito de propriedade do contribuinte (caso tratado nas ADIs em que o voto foi proferido) também teremos agressão ao direito de propriedade do trabalhador, pois a TR segue sendo um instrumento incapaz de detectar as variações dos índices de preços em ambas as hipóteses.

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