Justiça tributária

A elétrica combinação entre Direito Tributário e Direito Penal

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

13 de julho de 2020, 8h00

Spacca
Seguramente você soube da prisão do empresário Ricardo Nunes, fundador da empresa Ricardo Eletro, bem como de sua filha e do Diretor Financeiro, em operação conjunta da Polícia Civil, do Ministério Público e da Secretaria de Fazenda de Minas Gerais. Caso não tenha lido, a reportagem de Ivan Vargas e Fernanda Canofre na Folha de S.Paulo relata o fato. Todos foram liberados pela polícia em menos de 24 horas.

Consta da reportagem que a empresa está em recuperação extrajudicial, na forma do art. art. 161, da Lei 11.101/2005, e deve R$ 387 milhões de ICMS à Fazenda de Minas Gerais, apurados entre 2014 e 2019. Relata ainda que o advogado de Ricardo Nunes, Marcelo Leonardo, alegou que esses débitos estavam escriturados na contabilidade e foram declarados ao Fisco. Ou seja, a crer nas alegações – e me baseio exclusivamente na reportagem -, não houve fraude, simulação ou qualquer outro mecanismo de ocultação das operações ou da dívida.

Em breve síntese, estas pessoas são investigadas por suposta prática do crime de apropriação indébita de ICMS, que ocorreria quando o valor do tributo é cobrado do consumidor na venda da mercadoria, mas não é repassado ao Estado.

Começa a aparecer a consequência de uma leitura apressada de um julgamento enviesado, que começou tratando de um assunto e acabou desviando para outro. Vamos ao caso.

A 3ª Seção do STJ, por maioria, no Habeas Corpus 399.109, decidiu que o não recolhimento de ICMS em operações próprias devidamente declaradas ao Fisco se configurava como crime previsto no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90, denominado como “apropriação indébita tributária”, identificando como crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Em conjunto com Ana Elisa Bechara, Profa. Titular de Direito Penal da USP, analisamos essa decisão em setembro de 2018. Então afirmamos que "não é função do Direito Penal garantir o adimplemento de dívidas de qualquer natureza, muito menos de incentivar os indivíduos a serem bons pagadores. Sua missão está em evitar, sob ameaça de pena, a prática de condutas especialmente desvaloradas, porque voltadas a burlar a ordem tributária, o que não é o caso de meras dívidas com o Fisco".

Em dezembro de 2019, quando o STF julgava o recurso oriundo do STJ (RHC 163.334) e o Ministro Toffoli pediu vista, escrevi: "O ponto central é que o tipo penal da apropriação indébita (inciso II, artigo 2º, Lei 8.137/90) não contempla a inadimplência do ICMS próprio. Criminalizar a inadimplência nesta hipótese será um erro do STF.” Concluído o julgamento por maioria1, foi fixada a seguinte tese: “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990."

Tratei do tema após finalizar o julgamento, mencionando que o assunto havia sido modificado ao longo de seu percurso, "pois o que se propunha inicialmente era a criminalização do inadimplente, e acabou sendo criminalizado o devedor contumaz. Porém, o que é um devedor contumaz tributário?" — esse "tipo", seja penal, seja tributário, ainda não foi estabelecido, e o Projeto de Lei 1646/2019 permanece em debate no Congresso. Previ ainda que "tudo indica que ocorrerá enorme queda na inadimplência (pois, embora transparente, pode ensejar apropriação indébita) e exponencial aumento da sonegação (que não deixa registros claros). E passaremos anos ouvindo sobre a transformação do crime de apropriação indébita tributária de objetivo em subjetivo".

Volto à reportagem sobre o "crime" do grupo Ricardo Eletro, base desta análise. Consta que todos os registros contábeis estavam feitos e que o Fisco estadual tinha amplo conhecimento da dívida, a qual estava descrita até mesmo na recuperação extrajudicial em que se encontra a empresa.

Então, qual a razão de todo o aparato policial, envolvendo inclusive o Ministério Público estadual? Parece ter sido para dar efeitos intimidatórios ao específico contribuinte e efeito demonstração a todos os contribuintes, inadimplentes ou não, o que deve ser amplificado nestes tempos de crise pandêmica do coronavírus, conforme apontei em texto escrito a quatro mãos com o advogado criminalista Filipe Silveira.

Em suma, o STJ, em um julgamento míope, decidiu criminalizar a inadimplência tributária, transformando um ilícito fiscal (que se revolve no âmbito patrimonial) em um ilícito penal (que se resolve cerceando a liberdade do indivíduo), sem lei específica a respeito. O STF alterou a decisão de forma parcial, restringindo a aplicação da norma apenas ao devedor contumaz e que age com dolo de apropriação, cujo tipo penal e fiscal ainda não foi determinado pela lei. O alcance da decisão do STF é mais restrito que a decisão do STJ, que foi reformada.

Reitero que só conheço o caso Ricardo Eletro pela mencionada reportagem, sem saber dos detalhes da operação, o que pode revelar outros contornos na análise do caso concreto.

Enfim, peço desculpas aos leitores contumazes desta coluna sobre direito tributário, que divido com Raul Haidar, pois ela tem um certo ar de déjà vu, de repetição de textos já escritos. Tristemente pode-se afirmar: “eu não disse que isso ia acontecer?”.


1 Votos vencedores dos Ministros Barroso, relator, Toffoli, Fux, Cármen, Weber, Fachin e Alexandre; votos vencidos dos Ministros Gilmar, Lewandowski e Marco Aurélio. Ausente o Ministro Celso.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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