Opinião

Audiências telepresenciais no Processo do Trabalho: a verdade à distância

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13 de julho de 2020, 16h14

Introdução
O mundo está em crise. Neste imprevisível 2020, a pandemia da Covid-19 afetou Estados, economias e populações, que literalmente tiveram de parar, esconder-se, para poder lutar contra um inimigo invisível, mas feroz. Não há outro assunto nos jornais capaz de fazer frente ao temido coronavírus; por essa razão, esta introdução não faz mais do que lembrar à leitora e ao leitor a situação que serve de contexto para o debate.

Qual debate? O importante debate referente às audiências telepresenciais. Mais especificamente, às audiências de instrução telepresenciais no processo do trabalho.

2  O Poder Judiciário e a crise
Na esteira das medidas adotadas pela quase totalidade dos países afetados, o Brasil aderiu ao isolamento social, o meio até agora mais eficaz de reduzir a velocidade de propagação da doença, de modo a preservar a funcionalidade dos sistemas de saúde. Apenas atividades econômicas essenciais tiveram autorização para seguir seu curso.

O Poder Judiciário não ficou alheio à pandemia. Com os fóruns fechados, o trabalho forense vem sendo prestado remotamente, contando com o benefício de um processo eletrônico sustentavelmente desenvolvido nos últimos anos. As audiências e sessões de julgamento, que em um primeiro momento haviam sido suspensas, passaram a ser realizadas por meio de videoconferência.

É inegável que a estrutura que permite a prática de atos processuais à distância chegou ao nosso tempo pandêmico como uma grande e importante aliada. Muito pode ser feito, em vez de interromper a tramitação de milhões de processos. A dúvida que tem sido colocada ultimamente diz respeito às audiências de instrução. De início, os tribunais recomendavam que não fossem realizadas por videoconferência; já agora, todavia, a recomendação é que as audiências sejam retomadas, inclusive com a produção de provas, se necessário. Mas afinal, a audiência de instrução é compatível com a videoconferência? Existe algum problema relevante na produção de provas à distância?

Audiências telepresenciais de instrução: o problema da verdade
É notório que os processos na Justiça do Trabalho requerem, em sua grande maioria, a produção de provas orais. Isso ocorre por uma série de fatores ligados ao direito material do trabalho, a respeito dos quais o aprofundamento é inviável neste espaço. Por consequência, a audiência é o ato
ou o complexo de atos mais importante do procedimento trabalhista.

Por outro lado, é preciso recordar que a busca da verdade é o valor supremo da atividade probatória. É para esclarecer a verdade que se produzem, analisam-se e se valoram as provas. Elas se destinam a mostrar a verdade ao julgador, que, assim, terá mais instrumentos para alcançar um julgamento justo. Em que pesem as fundadas discussões filosóficas sobre a existência da verdade e a possibilidade de atingi-la, é importante reafirmar que o processo não pode dar as costas à busca pela verdade. Ainda que se defenda ser impossível a certeza de ter atingido o conhecimento da verdade, o vetor da busca da verdade legitima o processo como instrumento democrático de resolução de conflitos. Se o processo não fosse orientado a esclarecer a verdade e proporcionar um julgamento justo, sua qualidade como instrumento social não seria eticamente superior à aplicação da lei do mais forte. Aliás, o processo é um mecanismo destinado a superar e evitar a resolução de conflitos pela força.

Várias regras instrumentais são, por isso, previstas pelas leis processuais para a produção das provas. A arguição de falsidade de documento, regras de elaboração de perícias, impedimentos e suspeições de testemunhas e peritos, a vedação de que uma pessoa conheça os outros depoimentos antes de prestar o seu (a chamada incomunicabilidade da testemunha) etc. Também é nesse contexto que as juízas e os juízes procuram desenvolver técnicas e aptidões para analisar depoimentos, usando elementos como linguagem corporal da testemunha, seu tom de voz, a direção do seu olhar durante a fala, entre tantos outros. Todo esse aparato de regras, institutos e saberes dota o processo de mais eficácia no esclarecimento da verdade e, consequentemente, o aproxima de gerar um julgamento justo.

Tendo em mente essas questões, alguns problemas se revelam na adoção da instrução processual por videoconferência. O primeiro deles é a notória dificuldade de acesso de muitas pessoas a uma plataforma de videoconferência. Ela requer consumo elevado de dados para conexão. E não são muitas pessoas que possuem acesso a um plano de internet razoável. Hoje, como outrora, na Justiça do Trabalho a maioria dos processos é movida por pessoas desempregadas o que também ocorre por uma série de fatores ligados ao direito material que por ora não vêm ao caso e, por isso, com sua renda prejudicada, senão totalmente suprimida. Trata-se, assim, de um problema afeto à questão mais abrangente do acesso à Justiça. A audiência telepresencial é um desafio muito maior para pessoas de baixa renda que do para a maior parte das empresas. Logo, no coração do processo do trabalho (a audiência), viola-se de plano a paridade de armas entre os litigantes. Compromete-se o equilíbrio do processo. Não é filigrana.

É verdade que o Judiciário não se mostra de todo insensível a essa problemática. Sustenta-se que a comprovação de ocorrência de problemas técnicos de acesso possibilitaria o adiamento da audiência. Todavia, na linha do que, em texto recente, sustentaram Olga Fortes e Soraya Lambert, entende-se que "o mero desinteresse em participação na audiência, entretanto, não é motivo hábil para afastar sua realização" [1]. Mas, além do que já foi exposto, há outras implicações a indicar que não se trata de "mero desinteresse".

Uma recente matéria jornalística mostra, com amparo em entrevistas com pesquisadores, alguns dos efeitos da comunicação por videoconferência. Ela pode ensejar um cansaço extraordinário, devido às dificuldades de decifrar o processo comunicativo. E não só:

"É tentador pensar que uma reunião realizada com câmera de vídeo pode ser o substituto adequado para uma presencial, mas a verdade é que o corpo humano as decifra de uma forma completamente diferente, segundo as conclusões de Gianpiero Petriglieri, professor do Insead, e Marissa Shuffler, professora da Universidade Clemson. Esses especialistas se referem às chaves de comunicação que se perdem em uma videoconferência, como o tom de voz, uma parte das expressões faciais e os gestos físicos. Ao não serem tão evidentes em uma videoconferência, o participante se vê obrigado a prestar mais atenção e no fim, principalmente se houver muitos participantes, a reunião pode ser esgotadora" [2].

Além disso, há aspectos de inegável relevância para perceber a limitação de conhecimento e percepção da comunicação durante a videoconferência:

"A linguagem não verbal é o primeiro ingrediente da comunicação oral", explica ao jornal El País Yago de la Cierva, professor de Gestão de Pessoas em Organizações do IESE Business School, da Universidade de Navarra. "Equivale a mais de dois terços do que a pessoa quer compartilhar: fornece a interpretação e o significado". Em uma videoconferência, isso fica muito limitado, "há duas dimensões em vez de três, geralmente ficamos sentados e quietos, e o controle do espaço é muito importante”, assinala o especialista. A ausência dessa terceira dimensão é que desencadearia, no final, um esforço psicológico excessivo" [3].

Não é difícil perceber aonde o conjunto desses elementos irá nos levar: a dificuldade de conhecimento da verdade será maior. Se nas audiências tradicionais já existem muitos problemas, com o acréscimo das dificuldades inerentes à comunicação por videoconferência a tarefa será extremamente complexa, quiçá impossível.

Ademais, as dificuldades de conexão de internet de partes e testemunhas hipossuficientes poderão ensejar atrasos de transmissão de áudio, de vídeo ou de ambos (o chamado delay). Essas ocorrências na prática podem gerar a falsa percepção de insegurança da testemunha, por exemplo; ou a falsa percepção de que a testemunha buscou confirmar informação antes de responder à pergunta. Além disso, como tem sido objeto de manifestações da advocacia, é reduzida a possibilidade de controle da incomunicabilidade de testemunhas antes de seu depoimento, e também de verificação de ausência de interferências indevidas durante o depoimento (pessoas fora da área captada pela imagem que façam sinais à testemunha durante as perguntas, por exemplo). Por fim, mas não menos importante: a comunicação de profissionais do direito com pessoas hipossuficientes durante uma audiência é bastante delicada. Além do esforço da (do) profissional para produzir uma fala mais clara e menos técnica possível, o uso de gestos e linguagem corporal nesses momentos é primordial e facilita o entendimento do destinatário da fala (partes ou testemunhas). A partir do momento em que uma pessoa de educação rudimentar, fragilizada pelo desemprego e supressão de renda, esteja diante de uma tela de celular, assistindo à fala de uma juíza ou um juiz, sem poder identificar suficientemente os gestos, o tom da voz, a posição da sobrancelha e a linguagem corporal, nós estaremos diante de uma autêntica, e grave, prática de exclusão social por meio do processo judicial.

Considerar todos os elementos trazidos implica concluir que a realização da audiência de instrução em meio telepresencial faz avançar o processo em seus atos, sem dúvida, mas à custa de parte importante dos já limitados instrumentos para a busca da verdade e de um julgamento justo.

Então, duas perguntas merecem resposta: vale a pena realizar mesmo assim a audiência telepresencial de instrução? E a quem cabe essa decisão?

4 — A relevância do consentimento das partes
C
omo vimos, a instrução por audiência telepresencial permite que o processo avance, mas com o risco de gerar exclusão social e em prejuízo da segurança, da busca pela verdade e, consequentemente, da probabilidade de um julgamento justo.

Nessas condições, a decisão deverá guiar-se pelas necessidades do caso concreto, haja vista a diferença das ações quanto à complexidade na produção probatória e também quanto à urgência. É possível que em alguns casos a urgência determine a realização da instrução por videoconferência, de modo a apressar a solução da lide; em outros casos, porém, a primazia será das melhores condições possíveis para o esclarecimento da verdade, e portanto a audiência telepresencial não será conveniente.

No entanto, parece-me fora de dúvida que a decisão cabe às partes litigantes, assessoradas pelos seus advogados. Se as partes declaram não ter interesse na audiência telepresencial, não deveria o juiz determinar imperativamente sua realização. Nesse aspecto, discordo, respeitosamente, da afirmação, acima citada, das magistradas Olga Fortes e Soraya Lambert, e o faço por pelo menos duas razões, uma de ordem teórico-jurídica, outra de ordem prática.

Primeiramente, cabe à pessoa que recorre ao Judiciário o direito fundamental de receber o serviço público nos termos prometidos pela Constituição Federal (artigo 5º, XXXV) e pelas leis processuais. Por todos os motivos já expostos, a audiência telepresencial não permite o mesmo controle que a audiência tradicional quanto à legitimidade das provas; é mais difícil para dizer o mínimo precaver-se em relação a desvios de curso que prejudiquem a busca pela verdade. Logo, apesar dos esforços do Estado para fornecer um instrumento para uso nestes tempos de pandemia, é direito da parte resguardar-se para produzir suas provas e ver as da parte contrária em uma situação mais controlada. Não se trata, a meu ver, de "mero desinteresse". Há muitos e fundados motivos para o desinteresse. O Estado pode fornecer a alternativa da plataforma para videoconferência, que está à disposição da sociedade, mas o direito de escolha é precipuamente das partes interessadas na solução do litígio.

Por fim, uma razão de ordem prática para outorgar relevância ao consentimento das partes quanto à audiência telepresencial é a possibilidade que a lei lhes assegura de, por convenção, suspender a tramitação do processo, por até seis meses (CPC, artigo 313, II, e § 4º). Ora, se por convenção as partes podem suspender o processo como um todo, por imperativo lógico poderiam também suspender a audiência. E por outro lado, se o juiz não tem a prerrogativa de rejeitar a suspensão do feito, igualmente não teria a de impor a realização da audiência de instrução telepresencial.

Considerações finais
Para sintetizar tudo o que expus, posso concluir que:

I) A audiência telepresencial é um instrumento importante de funcionamento do Judiciário;

II) Sua aplicação é destinada por natureza às sessões de julgamento dos tribunais e de conciliação, nas quais não são produzidas provas orais;

III) As dificuldades de controle de legitimidade das provas na audiência telepresencial permitem compreender que a busca da verdade é, nesse meio, sensivelmente afetada;

IV) As dificuldades de comunicação na videoconferência podem agravar situações de exclusão social de pessoas hipossuficientes; e

V) Cabe às partes, não ao Judiciário, a decisão sobre a realização da audiência telepresencial para instrução.

Feitas tais considerações, reitero todo o respeito que dirijo aos entendimentos divergentes, por valorizar o ambiente democrático de discussão de ideias, e espero ter contribuído minimamente para o debate dessa importante questão processual em nossos dias.

 


[1] FORTES, Olga; LAMBERT, Soraya Galassi. "Audiências trabalhistas pós-pandemia". In: Valor Econômico de 3/7/2020. Disponível em https://valor.globo.com/legislacao/coluna/audiencias-trabalhistas-pos-pandemia.ghtml. Acesso em 7/7/2020.

[2] ZURIARRAIN, José Mendiola. "Por que as videoconferências nos esgotam psicologicamente?". In: El País de 6/5/2020. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/por-que-as-videoconferencias-nos-esgotam-psicologicamente.html?fbclid=IwAR2GzWUiG4vNO2Hh8a1Wa3I557N7bMmew_TLcAwpSX2IjbUh0OXiXEAxEZw. Acesso em 7/7/2020.

[3] Ibidem.

Autores

  • é juiz do Trabalho substituto em São Paulo (2ª Região). Foi professor de Direito Civil da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, da Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso do Sul e de cursos preparatórios para concursos públicos da área jurídica.

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