Opinião

Direito Financeiro e Direito Tributário no pós-pandemia da Covid-19

Autor

  • José Marcos Domingues

    é professor doutor da Universidade Católica de Petrópolis professor titular aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

13 de julho de 2020, 14h13

O Direito Financeiro é o ramo jurídico dedicado ao regramento da atividade financeira do Estado (arrecadação, gestão e dispêndio do dinheiro público), ocupando-se, então, dos aspectos jurídicos de seus institutos fundamentais: o orçamento, a receita, a despesa, o crédito e o controle de seu registro e manejo imbricado com a correspondente responsabilidade financeira ou fiscal.

Deve-se reconhecer o progressivo desenvolvimento do direito do orçamento reduzindo a distância de volume e densidade para o direito dos tributos; esse menor corpo foi robustecido entre nós ao longo do século XX pela tipificação como crimes de responsabilidade [1] dos atentados à probidade administrativa e à lei orçamentária; pela edição de leis de normas gerais (Lei nº 4.320, de 1964 [2] e Lei nº 5.172, de 1966 CTN) e a criação do Banco Central (Lei nº 4.595, de 1964); pela promulgação da Constituição Federal, de 5/10/88, modernizando a estrutura do orçamento e do sistema tributário; e pela edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar, nº 101, de 4/5/2000), entre outras iniciativas para a repressão a improbidade administrativa e delitos contra as finanças públicas, com importantes e duradouras repercussões para o Direito Financeiro, e para a democracia brasileira. É que sem democracia fiscal, inexiste democracia política.

Duas ordens de consideração dignificam o Direito Financeiro: a importância reconhecida ao princípio do equilíbrio orçamentário para a sustentabilidade do desenvolvimento, além de mero fator inibidor da inflação pelo descontrole das contas públicas; e a superação da pseudadoutrina da lei formal [3], que permitiu o controle judicial [4] do orçamento; e, ainda, o expresso reconhecimento da impositividade da lei orçamentária.

Todo orçamento, por definição planejado, refletido e discutido com olhos postos no bem comum, entende-se naturalmente impositivo. E projetos ou programas de trabalho, políticas públicas, devem ser pensados antes da aprovação do orçamento, objetiva e racionalmente, e propostos, seja pelos poderes, seja pelas instituições legitimadas constitucionalmente [5], pena de se reeditarem-se as caudas orçamentárias da República Velha [6], como se fez esdruxulamente constar na Emenda Constitucional nº 86, de 2015, cuja ilegitimidade apontou-se à época [7]. Em boa hora a Emenda Constitucional nº 100, de 2019, veio a consagrar que "a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade".

Sob pena de voltar a ser visto como peça de ficção, o orçamento e também a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o plano plurianual regem-se entre outros por um princípio de seriedade em linha com o ser instrumento de planejamento ("determinante para o setor público e indicativo para o setor privado" [8]), pela transparência [9] (já que "a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente…" [10]), e pela sinceridade (exigindo-se clareza de linguagem e vedando-se a dissimulação, o desvio de verbas e o inflar artificial da receita para cobrir despesa especiosa sem lastro na capacidade contributiva da população.

É nessa unicidade do fenômeno financeiro, que se imbricam orçamento e tributação, estabelecendo-se uma clara proporcionalidade entre ingressos e gastos públicos.

O sistema tributário deve ser compatível com a riqueza nacional [11], pois é nela que se buscam os recursos necessários à manutenção do Estado. É aquela força econômica que condiciona o gasto público; sistema tributário justo é o que observa a capacidade contributiva do povo destinatário do serviço público, numa repartição equitativa e solidária dos gastos públicos. A Constituição brasileira agasalha essa principiologia conjugando o objetivo fundamental de construção de uma sociedade justa e solidária com a determinação de graduação da carga tributária consoante a capacidade econômica da cidadania (artigo 3º, I; e artigo 145, § 1º.), ademais de prever que a Administração Pública obedeça à eficiência e à moralidade (artigo 37).

Pelo prisma orçamentário, essa repartição equitativa e solidária do gasto exige economicidade na gestão dos recursos financeiros arrecadados pelo Estado, do que depende a intensidade da tributação e a qualidade do atendimento às políticas públicas; estas, se eficientes, podem poupar recursos, determinando a redução da carga tributária ou reduzindo as pressões pelo respectivo aumento.

Mas a irresponsabilidade fiscal e a improbidade administrativa, ilícitos contra o cidadão-contribuinte, precisam ser melhor prevenidos e reprimidos, sob pena de continuarmos a nos lamentar da impunidade dos crimes contra as finanças públicas; nesse sentido, e como ponderei em outro trabalho [12], impõe-se rever o sancionamento respectivo, pois, para exemplificar com a Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, as penas máximas nesse capítulo penal não passam de quatro anos, algumas nem de um ou dois anos, ensejando curta prescrição em conexão com a dificuldade probatória e a necessária dilação processual. Como a jurisprudência e a lei [13] determinam a prescrição pela pena in concreto, evidencia-se a desproporção entre dano social e castigo. Sem adequada punição não há efeito dissuasório e tem-se a impunidade; então o prejuízo moral não se repara e o prejuízo financeiro tende a ser coberto por novos saques à bolsa do cidadão-contribuinte. Tudo inadmissível.

Pelo ângulo da tributação, o trato equitativo dos recursos públicos deve obedecer ao princípio fundamental da capacidade contributiva, quer na sua dimensão de potencial requisitório, quer no seu aspecto distributivo, a justificar a um só tempo o necessário emprego da progressividade e da seletividade fiscais; ademais, a tributação completa sua conformação como processo financeiro justo, na medida em que serve a propósitos de desenvolvimento socioeconômico, através da progressividade e da seletividade extrafiscais como instrumentos de implementação de políticas públicas constitucionalizadas ou acordes com os valores da ordem jurídica.


 

 

 

 

 

 

 

Não obstante a notória regressividade [14] do sistema tributário nacional, no qual a tributação direta sobre a renda responde por apenas 7,19% do PIB, e a sobre o patrimônio meros 1,54%, e a tributação indireta sobre os bens e serviços sobe a 14,32%, ainda assim podem-se anotar avanços na direção da justiça tributária.

 

São exemplos, a começar pela repositivação da capacidade contributiva e pela explicitação de principiologia protetiva dos contribuintes na Constituição, os diversos regimes simplificados de imposto de renda para pessoas físicas (atribuindo dedução global) e para microempreendedores individuais, e outros empreendimentos, com base no lucro presumido; a isenção do imposto sobre a renda face a proventos de aposentadoria de portadores de moléstia grave, e a subsequente orientação do Superior Tribunal de Justiça (STJ [15]) compreendendo-a existente mesmo quando o paciente já foi tratado e está assintomático, porque tem despesas permanentes com medicação e monitoramento da saúde; a jurisprudência do STJ reconhecendo a legitimidade ativa dos consumidores [16] de energia a que for repercutido pelo concessionário o ICMS cobrado pela potência contratada, mas não integralmente utilizada, para pleitear a respectiva repetição do indébito, protegendo então a capacidade contributiva do contribuinte de fato; e a nova jurisprudência do Supremo Tribunal (STF) admitindo a repetição do indébito de ICMS quando o fato gerador realiza-se por valor inferior ao do fato presumido, acatando pois a tese de que a base de cálculo é a expressão econômica do fato gerador, ou seja, a dimensão da capacidade contributiva do sujeito passivo [17]; na mesma toada, o STF vem de definir no último dia 8 de junho a tese do tema 700 [18], no sentido de que o ISS não incide sobre o valor total da aposta, mas apenas sobre a remuneração pelo serviço de distribuição e venda de bilhetes, cupons etc., tese que também realça o valor da capacidade contributiva específica, apartada de outros recortes que possam ensejar tributações diversas sobre diferentes medidas de riqueza; esta é uma tese que dialoga com outras questões em matéria de tributação de situações complexas, como franquias comerciais e certos afretamentos marítimos, de grande relevância econômica.

Ainda no campo dos impostos indiretos, arrancando do princípio geral de seletividade, nota-se um progressivo reconhecimento do mérito da tributação ambiental, que a meu sentir atende também a razões de capacidade contributiva em face da eventual apropriação ou capitalização privada do meio ambiente [19], que veio a ser constitucionalizado no capítulo da ordem econômica, admitindo-se às expressas o tratamento diferenciado dos produtos e serviços, e de seus processos de elaboração e prestação, conforme o respectivo impacto ambiental, ajustando-se adequadamente a medida dos tributos em questão.

De futuro, cabe alvitrar uma autocrítica do Estado brasileiro em matéria de tributação, mercê de uma reforma tributária constitucional, mas também na revisão da legislação, quer para melhor distribuir os impostos diretos [que pouco arrecadam dos que mais têm, e muito sacam contra os que menos têm, seja como imposto de renda (onde o capital e seus dividendos são privilegiados em comparação com os rendimentos do trabalho — gravados praticamente pelo bruto e não pela justa renda líquida que deles resultaria), seja como imposto sobre o patrimônio e sobre heranças e doações (cujas não incidências e medidas de valor favorecem a concentração da riqueza)] e os impostos indiretos em geral, que precisam ser reestruturados e reavaliados, pois, a pretexto de glosa à informalidade e combate à evasão, atravancam a circulação de bens e serviços e oneram exacerbadamente os consumidores menos favorecidos, cidadãos ademais maltratados em sua dignidade humana por serviços públicos ineficientes. O sistema tributário nacional parece um item de reforço da histórica desigualdade no país.

Mas não é só; é preciso reformar também a legislação sobre a administração tributária, desburocratizando-a e abrindo-a sempre mais aos influxos da racionalidade, à inteligência humana, mas também à inteligência artificial; do contrário nem os logarítimos supremos de "VICTOR" e nem os superiores de "SÓCRATES" se encontrarão, por exemplo, com a "DRA. LUÍZA" e outros softwares que neles procuram esvaziar os corredores telemáticos da Justiça obstruídos pela projeção judicial do contencioso administrativo-fiscal mal resolvido.

Mas aí já não se falará mais de capacidade contributiva, mas de capacidade de pagamento de débitos muitas vezes irrecuperáveis (neste ponto, louvem-se recentes iniciativas legislativas e administrativas quanto à transação tributária [20]). Oxalá amadureçam também outras formas de solução de litígios tributários na dimensão profícua da Justiça multiportas).

Em tempos de pandemia, é preciso alertar que o custo das medidas estatais de combate a essa calamidade haverá de ser suportado por toda a sociedade brasileira, onde o orçamento e o tributo têm um encontro marcado, sob a regência do Direito Financeiro e Tributário, com os olhos postos no bem comum.

Antes de mais nada, em sintonia com o aperfeiçoamento do sistema repressivo, parece necessário um novo regramento para a prevenção das fraudes e outros desvios nas compras públicas, um desafio juspolítico, máxime num ambiente federativo tão complexo, como o brasileiro. Se é verdade que sem federalismo fiscal inexiste federalismo político, então abre-se a oportunidade para repensar a disciplina do poder financeiro na federação, que é regime de distribuição de encargos.

Nesse sentido, note-se que ao gasto extraordinário com a pandemia podem acudir o maior endividamento público, a instituição ou o incremento de tributos ordinários e mesmo a tributação extraordinária; mas, seja qual for a solução, haverá de ser observado o cânone da capacidade contributiva para que se alcance uma justa distribuição do ônus correspondente, considerando-se que a cidadania está empobrecida em comparação à situação anterior à pandemia.

Incentivos fiscais improdutivos ou privilegiados deverão ser revistos, pois, a par de sua ineficiência ou imoralidade, impactam negativamente a receita e sua odiosa manutenção induzirá a um correspondente e não menos odioso aumento geral da carga tributária, hoje em torno de 33% do PIB. Incentivo fiscal deve ser um investimento indutor do desenvolvimento socioeconômico da população a ensejar adiante mais geração e recirculação de riqueza, e mais impostos, em círculo virtuoso.


 

 

 

 

 

 

 

E será preciso considerar também a constituição de um legado positivo da Covid-19, primeiramente pelo exemplar e agravado sancionamento administrativo e criminal aos desvios de verbas públicas verificados durante a pandemia; em segundo lugar, pela incorporação ao serviço público das estruturas de combate à pandemia, oriundos de um esforço fiscal sem precedentes, pois é inaceitável que bens dessa natureza sejam tratados como meras despesas correntes. É necessário otimizar a estrutura e o custeio da Administração Pública, para servir, e tornar mais eficiente a gestão do gasto público, que deve ser equitativo para ser profícuo, com a consequente redução e redistribuição da carga tributária.

 

Impõe-se conter o poder mal exercido pelos governantes, pelo adequado manejo do Direito Financeiro. Assim abrir-se-á aqui um caminho novo, como nas democracias consolidadas, deixando-se de padecer de ajustes fiscais que se resumem a ilegítimo arrocho sobre uma população trabalhadora doente, mal educada, submetida a carga tributária de sabor confiscatório por um Estado que não provê aos direitos fundamentais em favor do desenvolvimento e da felicidade prometidos pela ordem constitucional antes que se banalizem medidas que parecem afirmar, na imprevisão financeiro-orçamentária, a comoção interna e a calamidade pública.

As gerações futuras devem ser preservadas do que as passadas e presentes até aqui não foram capazes de evitar.

Ao fim e ao cabo, a mudança fundamental é cultural e para que esta se faça urge a tomada de importante decisão política: educar; educar e fazer chegar a todos os brasileiros os valores, a ciência, a consciência histórica e a esperança confiante no porvir, que, assim, poderá ser muito melhor do que as tribulações atuais.

O Brasil pós-pandemia está por ser reconstruído. Vamos a ele!

 


[1] Sem prejuízo da previsão já na Constituição Imperial de 1824 (artigo 133).

[2] Especialmente, artigo 2º; artigos 25 e 26.

[3] Cf. nosso O desvio de finalidade das contribuições e o seu controle tributário e orçamentário no direito brasileiro, brasileiro {8. Crítica à teoria do orçamento como lei formal}, in Direito Tributário e Políticas Públicas. DOMINGUES, José Marcos (coord.). São Paulo: MP Ed., 2008, p. 299-351, esp. p. 321-332).

[4] ADI 2925: acórdão de 19.12.2003, publ. em 04/3/2005. 

[5] É assim nas democracias; parece que ainda não no Brasil, por que será? (cf. DOMINGUES, José Marcos. “Fixar despesa cabe ao Legislativo, não a cada integrante ( in https://www.conjur.com.br/2014-fev-14/jose-domingues-fixar-despesa-cabe-legislativo-nao-cada-integrante ).

[6] E, ainda assim, anteriormente à Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926 (§ 1º ao modificado artigo 34 da Constituição de 1981).

[7] Cf. DOMINGUES, José Marcos. “Fixar despesa cabe ao Legislativo, não a cada integrante (in https://www.conjur.com.br/2014-fev-14/jose-domingues-fixar-despesa-cabe-legislativo-nao-cada-integrante ).

[8] Artigo 174 da CF.

[9] Cf. nosso A atividade financeira do Estado e as políticas públicas para os direitos humanos {4.1 Principiologia orçamentária}, in Direito Financeiro e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2015, p. 29-66, esp. p. 50.

[10] Lei de Responsabilidade Fiscal, § 1º do artigo 1º.

[11] BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. Rio de Janeiro: 16ª edição, Forense, p. 274, 277.

[12] DOMINGUES, José Marcos. Responsabilidade fiscal e cidadania fiscal, in Responsabilidade Fiscal. Análise da Lei Complementar nº 101/2000. COÊLHO, Marcus V. N., ALLEMAND, Luiz C., ABRAHAM, Marcus (orgs.) – Brasília: OAB, Conselho Federal, 2016, p. 365-375.

[13] Artigo 110 do Código Penal alterado pela Lei nº 12.234, de 2010.

[14] Numa carga tributária bruta de 33,26% do PIB, cf. http://www.receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-no-brasil-capa, tabela 1, p. 1; e tabela 5, p. 4.

[15] Por todos, acórdão unânime da 1ª Turma do STJ, no REsp nº 1.836.364, de 2/6/2020.

[16] Cf. acórdão unânime da 1ª Seção do STJ no julgamento do RESP 1.299.303, de 08.08.2012, publicado em 14/8/2012.

[17] RE 593849, Plenário, julg. em 19/10/2016, publ. em 05/04/2017.

[19] Cf nossos, Direito Tributário e Meio Ambiente – 3ª edição – Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 138; e Direito Tributário. Capacidade Contributiva – 2ª edição – Rio de Janeiro: Renovar, pp. 115-118.

[20] Por todas, a Lei federal nº 13.988, de 14.04.2020, sobre a transação tributária no âmbito federal, e Portaria PGFN n. 9.917, de 14 de abril de 2020, especialmente artigos 18, 20 e seguintes.

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