Direito de defesa

Doação eleitoral não caracteriza ato de lavagem de dinheiro

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13 de julho de 2020, 8h00

Spacca
Em um regime democrático o exercício do poder passa pelo crivo popular. Mas se eleger não depende apenas de boas ideias, competência e capacidade de articulação. São necessários recursos para o pagamento da propaganda, do estúdio de televisão, do marqueteiro, do advogado e de toda uma estrutura para fazer chegar ao eleitor a mensagem, o plano político e o pedido de votos.

Uma parte desse dinheiro vem do Fundo Eleitoral. Outra de doações de cidadãos dispostos a disponibilizar parte de seu patrimônio para ajudar certo candidato. Uns o fazem por ideologia, outros por amizade, e há quem o faça com o interesse de aproximação, de compartilhar um pedaço do poder adquirido.

Nesse último caso, se a doação tiver por contrapartida a prática de um ato de ofício pelo candidato tão logo assuma o cargo, será indevida, pois decorrente de uma mercancia do futuro posto. Em outras palavras, será um ato de corrupção. A doação é ato lícito, mas o motivo é reprovável.

Mas, para além deste crime, discute-se a existência de lavagem de dinheiro nesse contexto. Há quem entenda que o pagamento da vantagem indevida – típica da corrupção – feito por meio da doação eleitoral será um ato de ocultação porque confere uma aparência de licitude ao recurso. O registro na prestação de contas, no imposto do doador, e nos recibos confeririam uma formalidade à transferência que em realidade tem por objetivo a compra de um ato de ofício daquele que pretende ser alçado ao cargo eletivo.

O Min. Edson Fachin, em seu voto nos autos da Apn 996, reconheceu a doação eleitoral proveniente da corrupção como lavagem de dinheiro porque nesses casos não há predisposição do corruptor de efetuar a doação – que só existe em decorrência da corrupção – , e com tal prática o agente corrompido passa a ter a livre disponibilidade da vantagem indevida negociada, com a chancela da Justiça Eleitoral, tornando desnecessário o autofinanciamento ou a obtenção de outros recursos para a campanha1.

No mesmo sentido, o Min. Celso de Mello, em voto proferido nos autos do Inq.3982 também admitiu que a doação eleitoral pode caracterizar lavagem de dinheiro porque a prestação de contas seria um típico expediente de ocultação da natureza das quantias doadas em caráter oficial, pois confere aparência de legitimidade a bens manchados em sua origem2.

A nosso ver, a lavagem de dinheiro não existe nesses casos.

Esse crime pressupõe a ocultação de produto de crime. E o produto da corrupção passiva só existe quando o funcionário público recebe os recursos ilícitos. Este é o ato que transforma aquele dinheiro em capital sujo. Por mais que a solicitação de vantagens também seja elemento do tipo penal, o produto do crime não existe antes do recebimento, que é ato constitutivo alternativo da corrupção. Assim, se a doação se confunde com este recebimento, se consubstancia um mesmo ato, não pode ser considerada lavagem de dinheiro, uma vez que esta necessariamente ocorre depois da prática do antecedente, e não de forma concomitante.

Tal argumento, no entanto, poderia ser superado quando revelados atos posteriores à doação, mas relacionados a esta, que confeririam aparência lícita aos recursos recebidos. Como apontou o Min. Celso de Mello nos autos da Ação Penal 996, é possível que não exista concomitância entre a doação eleitoral e o recebimento da vantagem indevida da corrupção pela verificação de atos de dissimulação posteriore inerentes à primeira, como o preenchimento de recibos eleitorais e a declaração de prestação de contas à Justiça Eleitoral3. Tais condutas subsequentes poderiam garantir autonomia à dissimulação e justificar a punição da lavagem de dinheiro, em concurso material com a corrupção passiva.

Mas ainda assim, não parece existir lavagem de dinheiro nesses casos.

Ainda que se admita que a doação eleitoral seja um ato distinto do recebimento, e que possa constituir um ato autônomo passível de valoração, não haverá crime de lavagem de dinheiro por um fato objetivo: não existe nesses casos a ocultação ou dissimulação dos bens ou de suas qualidades. Se a contrapartida negociada na corrupção for a própria doação eleitoral, não há dissimulação alguma, uma vez que o pagamento representa exatamente a vantagem indevida combinada.

Se a doação for feita pelo próprio corruptor, a natureza dos bens não é escamoteada: são recursos transferidos por ele ao corrompido justamente da forma combinada e pretendida. A procedência ou origem é clara e registrada, assim como a localização, a disposição, a movimentação e a propriedade. A razão da doação é criminosa, e isso caracterizará a corrupção, mas a forma é pública e registrada, sem dissimulação ou escamoteamento.

Imaginemos que o político corrompido, ao invés de pedir a vantagem na forma de doação eleitoral, solicitasse a doação de um imóvel a seu filho, recém casado, que precisa de uma casa própria. A realização do ato não dissimula sua natureza ou a origem dos recursos. A ilicitude do motivo da doação caracteriza a corrupção, mas a formalização do ato sem intermediários, documentos falsos ou estruturas em nome de terceiros não implica ocultação típica da lavagem de dinheiro.

Outro exemplo: um funcionário público pratica um ato de ofício em troca da reforma da casa de sua mãe. Ninguém dirá que existe lavagem de dinheiro se o corruptor pagar fornecedores de material e mão de obra em seu nome para a reforma. Mais uma vez, o motivo ilícito do pagamento caracterizará a corrupção, mas o fato de ser feito pelo próprio corruptor afasta a ocultação ou a dissimulação. Aqueles bens e serviços são exatamente a contrapartida requerida e concedida.

Da mesma forma, na doação eleitoral efetuada diretamente pelo corruptor não há escamoteamento, uma vez que essa é a contrapartida definida e acordada, é justamente o objeto da corrupção. Haverá o crime do art. 317 do CP, mas não lavagem de dinheiro.

Isso não ocorre se a doação for feita por interposta pessoa, por laranja, ou se os valores não forem usados na campanha eleitoral, mas dissimulados como gastos para depois retornarem ao candidato na forma de vantagens distintas. Nesses casos, para além da vantagem indevida na forma de doação, há ocultação da origem e da natureza dos recursos, e lavagem de dinheiro.

O STF, no julgamento da Apn 996, por maioria, entendeu que o recebimento de vantagem indevida proveniente de corrupção por doação eleitoral não caracterizou, naquele caso, lavagem de dinheiro. Os fundamentos usados por cada Ministro foram diversos. O Min. Dias Toffoli afastou o crime por considerar concomitantes os atos de recebimento dos recursos ilícitos e a ocultação, de forma que a última comporia a consumação ou o exaurimento da corrupção e não ato autônomo de lavagem de dinheiro4. Na mesma linha o Min. Gilmar Mendes, para quem “a doação declarada foi, ao mesmo tempo, a forma de repassar a propina e lavar os recursos” 5. O Min. Ricardo Lewandowski, por sua vez, entendeu ausente o dolo de lavagem, uma vez que a forma da doação teria sido compulsória, exigida pelo corruptor e não faria parte da vontade do corrompido6.

Ainda que corretas as fundamentações, todas elas reconhecem a possibilidade da doação eleitoral caracterizar lavagem de dinheiro quando não houver concomitância com a corrupção ou quando a forma do recebimento for determinada pelo corrompido e não pelo corruptor. Como já exposto, ainda nesses casos não existirá lavagem de dinheiro porque inexistente o elemento objetivo do tipo penal, a ocultação do bem ou de suas características e propriedades.

Em conclusão, quando a prática de corrupção envolver a doação eleitoral como vantagem indevida pretendida e paga, não haverá lavagem de dinheiro se a transferência de recursos foi efetuada pelo corruptor ao candidato corrompido, sem interpostas pessoas ou operações fraudulentas. Importante e necessário que se combata a corrupção, mas não pela ampliação de tipos penais para fatos por ele não abrangidos.

PS: O autor aproveita a oportunidade para compartilhar seu sentimento de pesar pela morte de Nelson Meurer, réu na Apn 996, comentada nesta coluna. Morte que poderia ter sido evitada não fosse a insistência de ver na prisão o remédio para todo e qualquer mal, ainda quando exista risco de morte. Não é a primeira e lamentavelmente não será a ultima morte por Covid-19 na prisão. O Judiciário precisa perceber o alcance trágico de certas decisões e que a preservação da vida é mais importante que qualquer razão política criminal. Pessoas de grupos de risco precisam ser transferidas para o regime domiciliar em caráter de urgência. Não existe qualquer motivo que justifique sua manutenção em unidades prisionais. A banalização da vida é um pecado que não pode ser cometido pelo estado brasileiro.


1 Apn 996, Rel, Min. Edson Fachin, j.15.2.2018. No mesmo sentido, ao votar pelo recebimento da denúncia nos autos do Inq.3982, Rel. Min. Edson Fachin, j.7.3.2017

2 No mesmo sentido também ao votar na Apn 996, op.Cit.

3 Op.Cit. No mesmo sentido, ao votar pelo recebimento da denúncia nos autos do Inq.3982

4 Op.Cit. No mesmo sentido, no Inq.3.982.

5 Op.Cit. No mesmo sentido, no Inq.3.982

6 Op.Cit.

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