Opinião

O combate à pobreza é essencial à proteção de direitos sociais e políticos

Autor

  • Raquel Cavalcanti Ramos Machado

    é mestre em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará doutora em Direito pela USP advogada ex-coordenadora do mestrado e do doutorado em Direito na UFC ex-chefe do departamento de Direito Público por dois mandatos professora de Direito Eleitoral Direito Administrativo e Teoria da Democracia da UFC visiting research scholar da Wirtschaft Universistat Vienna (2015 e 2016) professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade Paris Descartes (2017) professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Firenze (2018) membro do Instituto Cearense de Direito Eleitoral (Icede) e da Comissão de Direito Eleitoral da OAB coordenadora da área acadêmica da Transparência Eleitoral Brasil e membro da Abradep.

12 de julho de 2020, 10h16

Diante das inúmeras acepções que a palavra democracia pode ter, e diante do anseio dos mais variados governos de se autodenominarem democracia, os cientistas políticos têm buscado apontar critérios para que uma sociedade seja considerada uma democracia. Robert Dahl, por exemplo, é conhecido por ter apontado em sua obra "Poliarquia" oito elementos (liberdade de formar e aderir a organizações, liberdade de expressão, direito de voto, elegibilidade para cargos públicos, direito de líderes políticos disputarem apoio, fontes alternativas de informação, eleições livres e idôneas e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferências) [1]. Em sua obra, é importante destacar, ele traz ainda um capítulo sobre a importância do desenvolvimento econômico para a democracia. A questão é compreender o que é desenvolvimento econômico e como relacioná-lo com os direitos políticos.

Para tanto, é importante recordar que a democracia pode ser conceituada do ponto de vista formal e do ponto de vista material, como nos ensina Norberto Bobbio. De fato, a democracia possui um conceito formal, referente ao "conjunto de regras cuja observância é necessária para que o poder político seja efetivamente distribuído entre a maior parte dos cidadãos", e outro substancial, ligado à ideia de igualdade [2]

Ou seja, o conceito formal está relacionado às questões procedimentais das eleições e da participação política. Já em seu conceito material, democracia relaciona-se à distribuição igualitária de bens, direitos, serviços.

Em tese, é possível realizar a distribuição igualitária de bens e prestar serviços públicos básicos com eficiência, como, por exemplo, serviços de educação, sem se atentar para o desenvolvimento de direitos políticos. Assim como é possível uma sociedade com o aparente desenvolvimento dos direitos políticos sem que os cidadãos tenham acesso igualitário a bens e serviços públicos básicos, e em que o desenvolvimento econômico não foi atingido por questões diversas. Diante dessa possível realidade dual, que pode inclusive ocorrer com gradações, põem-se as questões da relevância dos direitos econômicos em relação aos direitos políticos e vice-versa, assim como se há alguma noção de desenvolvimento econômico em uma democracia que seja inegociável, porque inerente ao próprio conceito de igualdade.

Alguns questionamentos podem então ser formulados:

a) Por que se preocupar com questões políticas diante da aparente premência de direitos econômicos relacionados a necessidades materiais? (Questionamento apresentado por Amartya Sen, quando reflete sobre a importância da democracia);

b) O combate à pobreza e a prestação de serviços sociais mínimos devem ser elementos considerados essenciais não apenas à democracia social, mas também à democracia em sua acepção política?;

c) O desenvolvimento econômico em uma democracia pode dispensar a tentativa de combate à pobreza?; 

d) Questões sobre a condição econômica mínima de um indivíduo são relacionadas à democracia em seu aspecto material/social ou também político?

Importa, a propósito, considerar que são pressupostos da democracia a liberdade, a igualdade, a previsibilidade normativa, a participação na Administração e seu controle. Uma sociedade sem qualquer um desses elementos impede que "o poder político seja distribuído entre a maior parte dos cidadãos", ou seja, prejudica a concretização da democracia, mesmo do seu ponto de vista formal.

Não atentar para essas questões põe em risco não apenas a democracia em sentido material, mas também a democracia em sentido formal, como podemos analisar diante de exemplos contemporâneos enfrentados pelo Brasil, que deixam a questão mais nítida. Esses exemplos podem ser apontados como desafios e vícios da democracia brasileira.

a) A pobreza torna as pessoas mais vulneráveis à compra e venda do voto, viciando eleições;

b) A pobreza impede o acesso à educação, principalmente num cenário como o atual, em que a educação requer o uso da tecnologia. Sem educação não é possível participar corretamente da política;

c) A falta de verbas adequadas para áreas sociais fragiliza o financiamento da política, já que em democracias esta depende de financiamento público (por exemplo, pesquisa realizada no Brasil revelou que parte considerável da população deseja que a verba do Fundo para Financiamento de Campanha vá para a saúde e seja usado no combate ao coronavírus); e

d) A pobreza e a falta de investimento público adequado em áreas sociais essenciais tornam as pessoas mais sujeitas à prática de abuso do poder econômico, o que contribui para a manutenção do status quo.

Para cada um desses vícios, observa-se a possibilidade de alguma virtude para afastá-los, seja através de reações populares, seja através de medidas institucionais, ainda que estas sejam de difícil implementação, ou estejam ainda em vias de implementação. De fato, a sociedade brasileira parece estar reagindo ao cenário de indiferença econômica e social, ao mesmo tempo que as instituições parecem estar se fortalecendo, diante da necessidade de proteger e reafirmar preceitos democráticos. A democracia é uma realidade complexa que vive em constante dessimetria, mas que se enaltece pela simples tentativa de encontrar um equilíbrio.

Sem liberdades políticas não é sequer possível refletir sobre como o desenvolvimento econômico é alcançável, já que o desenvolvimento será uma pauta imposta e não deliberada pela sociedade. Ou seja, liberdades políticas e liberdades econômicas se relacionam. Liberdades políticas valem por si, além de terem caráter instrumental e construtivo [3]. Valem por si, por preencherem uma necessidade humana de participação política no meio em que se insere, valem instrumentalmente por aumentar o grau de relevância que se dá à voz dos indivíduos em suas reivindicações, valem como elemento construtivo porque ajudam a formar o conceito de necessidade econômica.

Importa considerar, porém, que, apesar de em uma democracia também ser possível deliberar e escolher os vários caminhos para o desenvolvimento econômico, o combate à pobreza deve ser pauta inegociável, porque interfere na noção de democracia, tanto em sentido material, como em sentido formal, o que é constatável através dos vícios apontados anteriormente. Talvez o maior deles seja o fato de que a fragilidade econômica do eleitor miserável facilita a compra e venda de voto. Como observou Saint Jus ainda no período da Revolução Francesa, "caso se deseje fundar uma república, primeiro se deve tirar o povo da condição de miséria que o corrompe. Não há virtudes políticas sem orgulho e ninguém pode se orgulhar quando está na indigência" [4].

Um país, portanto, em que há o aumento da pobreza revela estar se afastando dos preceitos democráticos dos pontos de vista formal e material. Veja-se: a questão ultrapassa o exame da desigualdade. A desigualdade deve ser combatida, mas ela é menos grave do um nível elevado de pobreza. Há países que podem ser desiguais porque têm poucos ricos e muitos pobres, mas esses pobres podem ter acesso a um mínimo que garanta dignidade. A questão da desigualdade tem mais relação com a democracia social do que imediatamente com a democracia política, no que diz respeito a ser uma ameaça aos direitos políticos. Não é o caso do Brasil.

No Brasil, o grupo de pessoas em pobreza extrema, que inclui os que vivem com menos de 1,9 dólar por dia, ganhou cerca de 170 mil novos integrantes em 2019 e encerrou o ano passado com 13,8 milhões de pessoas, o equivalente a 6,7% da população do país [5].

Nesse contexto de aumento da pobreza, a Administração Pública passa a ter o dever de:

a) demonstrar as medidas que está implementado para reverter a situação;

b) do mesmo modo, manter inalterados programas já existentes que têm por fim o combate à pobreza, sem revelar medida paralela que esteja tomando ou pretende tomar, a não ser que demonstre a ineficiência da medida; e

c) igualmente, nesse cenário, abster-se de adotar medidas orçamentárias que se revelem juridicamente inválidas, e indiquem que o poder público está diminuindo as verbas para áreas essenciais, destinando-as a outros fins (como ocorre aqui no Brasil em relação à chamada Desvinculação de Receitas da União).

Uma portaria publicada em junho de 2020, em meio à pandemia, suspendeu a transferência de R$ 83 milhões destinados ao Bolsa Família e alocou os valores para a comunicação institucional do governo [6]. Diante da repercussão negativa que a medida teve, a portaria foi revogada. Ela seria, de toda forma, inválida e esse é o ponto a ser frisado. No estado social em que nos encontramos, não é uma discricionariedade da Administração o manejo de verbas nesses termos.

O Brasil, portanto, tem se afastado dos preceitos democráticos políticos por questões relacionadas à desarmonia institucional, a falas próprias de exaltação de um regime ditatorial, e também à falta de cuidado com o combate à pobreza.

A necessidade de pagamento de ajuda emergencial durante a pandemia apenas revela que a questão da pobreza é intensa e grave no país. Seu combate, porém, não pode ser conjuntural.

Assim, pode-se concluir respondendo aos questionamentos acima formulados, nos seguintes termos: 

a) As questões políticas são essenciais e prementes às necessidades econômicas, porque, como destaca Hannah Arendt, o sentido da política é a liberdade [7]. O ser humano não se sacia apenas com a satisfação de suas necessidades físicas, mas também com a possibilidade de interagir com os que o cercam e com a sociedade, para decidir os rumos da vida, inclusive quanto à forma mais justa de pensar o desenvolvimento econômico;

b) Até como forma de garantir a liberdade política, o combate à pobreza e a prestação de serviços sociais mínimos devem ser elementos considerados essenciais não apenas à democracia social, mas também à democracia em sua acepção política, já que o indivíduo dificilmente terá liberdade de voto, subjugado à miséria e ao abuso de poder. A democracia brasileira não é uma democracia que aceita qualquer processo político, pois tem compromisso com os princípios da legitimidade e da normalidade do pleito, como está aliás expresso na CF;

c) O desenvolvimento econômico em uma democracia necessariamente deve ter compromisso com o combate à pobreza, devendo o governo revelar esse compromisso através de esforços orçamentários e atos concretos;

d) Questões sobre a condição econômica mínima de um indivíduo estão relacionadas, assim, à democracia em seu aspecto material/social e também político.

Esse reconhecimento de que o combate à pobreza faz parte do conceito de democracia, mesmo em sentido formal, pode tornar mais eficientes os programas sociais, bem como mais evidente a importância do financiamento para a política de combate à pobreza, além de ajudar no combate à compra e venda do voto eleitoral, pela força educativa que a ideia carrega.

 

Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. 3. ed. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Edipro, 2017.

DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: USP.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira.São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Saint-Just, “Discurs sur les subsistances”, in Oeuvres complètes de Saint-Just, T. I

 


[1] DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: USP, 2005.

[2] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Edipro, 2017. p. 61.

[3] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 175.

[4] Saint-Just, “Discours sur les subsistances”, in Oeuvres complètes de Saint-Just, T. I, p.374-375

[6] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/06/04/internas_economia,861040/governo-retira-r-83-milhoes-do-bolsa-familia-e-destina-a-comunicacao.shtml, acessado dia 2/7/20.

[7] ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. 3. ed. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002. p. 117.

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