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Raquel Machado: Combate à pobreza e direitos sociais e políticos

12 de julho de 2020, 10h16

Por Raquel Cavalcanti Ramos Machado

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Diante das inúmeras acepções que a palavra democracia pode ter, e diante do anseio dos mais variados governos de se autodenominarem democracia, os cientistas políticos têm buscado apontar critérios para que uma sociedade seja considerada uma democracia. Robert Dahl, por exemplo, é conhecido por ter apontado em sua obra "Poliarquia" oito elementos (liberdade de formar e aderir a organizações, liberdade de expressão, direito de voto, elegibilidade para cargos públicos, direito de líderes políticos disputarem apoio, fontes alternativas de informação, eleições livres e idôneas e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferências) [1]. Em sua obra, é importante destacar, ele traz ainda um capítulo sobre a importância do desenvolvimento econômico para a democracia. A questão é compreender o que é desenvolvimento econômico e como relacioná-lo com os direitos políticos.

Para tanto, é importante recordar que a democracia pode ser conceituada do ponto de vista formal e do ponto de vista material, como nos ensina Norberto Bobbio. De fato, a democracia possui um conceito formal, referente ao "conjunto de regras cuja observância é necessária para que o poder político seja efetivamente distribuído entre a maior parte dos cidadãos", e outro substancial, ligado à ideia de igualdade [2]

Ou seja, o conceito formal está relacionado às questões procedimentais das eleições e da participação política. Já em seu conceito material, democracia relaciona-se à distribuição igualitária de bens, direitos, serviços.

Em tese, é possível realizar a distribuição igualitária de bens e prestar serviços públicos básicos com eficiência, como, por exemplo, serviços de educação, sem se atentar para o desenvolvimento de direitos políticos. Assim como é possível uma sociedade com o aparente desenvolvimento dos direitos políticos sem que os cidadãos tenham acesso igualitário a bens e serviços públicos básicos, e em que o desenvolvimento econômico não foi atingido por questões diversas. Diante dessa possível realidade dual, que pode inclusive ocorrer com gradações, põem-se as questões da relevância dos direitos econômicos em relação aos direitos políticos e vice-versa, assim como se há alguma noção de desenvolvimento econômico em uma democracia que seja inegociável, porque inerente ao próprio conceito de igualdade.

Alguns questionamentos podem então ser formulados:

a) Por que se preocupar com questões políticas diante da aparente premência de direitos econômicos relacionados a necessidades materiais? (Questionamento apresentado por Amartya Sen, quando reflete sobre a importância da democracia);

b) O combate à pobreza e a prestação de serviços sociais mínimos devem ser elementos considerados essenciais não apenas à democracia social, mas também à democracia em sua acepção política?;

c) O desenvolvimento econômico em uma democracia pode dispensar a tentativa de combate à pobreza?; 

d) Questões sobre a condição econômica mínima de um indivíduo são relacionadas à democracia em seu aspecto material/social ou também político?

Importa, a propósito, considerar que são pressupostos da democracia a liberdade, a igualdade, a previsibilidade normativa, a participação na Administração e seu controle. Uma sociedade sem qualquer um desses elementos impede que "o poder político seja distribuído entre a maior parte dos cidadãos", ou seja, prejudica a concretização da democracia, mesmo do seu ponto de vista formal.

Não atentar para essas questões põe em risco não apenas a democracia em sentido material, mas também a democracia em sentido formal, como podemos analisar diante de exemplos contemporâneos enfrentados pelo Brasil, que deixam a questão mais nítida. Esses exemplos podem ser apontados como desafios e vícios da democracia brasileira.

a) A pobreza torna as pessoas mais vulneráveis à compra e venda do voto, viciando eleições;

b) A pobreza impede o acesso à educação, principalmente num cenário como o atual, em que a educação requer o uso da tecnologia. Sem educação não é possível participar corretamente da política;

c) A falta de verbas adequadas para áreas sociais fragiliza o financiamento da política, já que em democracias esta depende de financiamento público (por exemplo, pesquisa realizada no Brasil revelou que parte considerável da população deseja que a verba do Fundo para Financiamento de Campanha vá para a saúde e seja usado no combate ao coronavírus); e

d) A pobreza e a falta de investimento público adequado em áreas sociais essenciais tornam as pessoas mais sujeitas à prática de abuso do poder econômico, o que contribui para a manutenção do status quo.

Para cada um desses vícios, observa-se a possibilidade de alguma virtude para afastá-los, seja através de reações populares, seja através de medidas institucionais, ainda que estas sejam de difícil implementação, ou estejam ainda em vias de implementação. De fato, a sociedade brasileira parece estar reagindo ao cenário de indiferença econômica e social, ao mesmo tempo que as instituições parecem estar se fortalecendo, diante da necessidade de proteger e reafirmar preceitos democráticos. A democracia é uma realidade complexa que vive em constante dessimetria, mas que se enaltece pela simples tentativa de encontrar um equilíbrio.

Sem liberdades políticas não é sequer possível refletir sobre como o desenvolvimento econômico é alcançável, já que o desenvolvimento será uma pauta imposta e não deliberada pela sociedade. Ou seja, liberdades políticas e liberdades econômicas se relacionam. Liberdades políticas valem por si, além de terem caráter instrumental e construtivo [3]. Valem por si, por preencherem uma necessidade humana de participação política no meio em que se insere, valem instrumentalmente por aumentar o grau de relevância que se dá à voz dos indivíduos em suas reivindicações, valem como elemento construtivo porque ajudam a formar o conceito de necessidade econômica.

Importa considerar, porém, que, apesar de em uma democracia também ser possível deliberar e escolher os vários caminhos para o desenvolvimento econômico, o combate à pobreza deve ser pauta inegociável, porque interfere na noção de democracia, tanto em sentido material, como em sentido formal, o que é constatável através dos vícios apontados anteriormente. Talvez o maior deles seja o fato de que a fragilidade econômica do eleitor miserável facilita a compra e venda de voto. Como observou Saint Jus ainda no período da Revolução Francesa, "caso se deseje fundar uma república, primeiro se deve tirar o povo da condição de miséria que o corrompe. Não há virtudes políticas sem orgulho e ninguém pode se orgulhar quando está na indigência" [4].

Um país, portanto, em que há o aumento da pobreza revela estar se afastando dos preceitos democráticos dos pontos de vista formal e material. Veja-se: a questão ultrapassa o exame da desigualdade. A desigualdade deve ser combatida, mas ela é menos grave do um nível elevado de pobreza. Há países que podem ser desiguais porque têm poucos ricos e muitos pobres, mas esses pobres podem ter acesso a um mínimo que garanta dignidade. A questão da desigualdade tem mais relação com a democracia social do que imediatamente com a democracia política, no que diz respeito a ser uma ameaça aos direitos políticos. Não é o caso do Brasil.

No Brasil, o grupo de pessoas em pobreza extrema, que inclui os que vivem com menos de 1,9 dólar por dia, ganhou cerca de 170 mil novos integrantes em 2019 e encerrou o ano passado com 13,8 milhões de pessoas, o equivalente a 6,7% da população do país [5].

Nesse contexto de aumento da pobreza, a Administração Pública passa a ter o dever de:

a) demonstrar as medidas que está implementado para reverter a situação;

b) do mesmo modo, manter inalterados programas já existentes que têm por fim o combate à pobreza, sem revelar medida paralela que esteja tomando ou pretende tomar, a não ser que demonstre a ineficiência da medida; e

c) igualmente, nesse cenário, abster-se de adotar medidas orçamentárias que se revelem juridicamente inválidas, e indiquem que o poder público está diminuindo as verbas para áreas essenciais, destinando-as a outros fins (como ocorre aqui no Brasil em relação à chamada Desvinculação de Receitas da União).

Uma portaria publicada em junho de 2020, em meio à pandemia, suspendeu a transferência de R$ 83 milhões destinados ao Bolsa Família e alocou os valores para a comunicação institucional do governo [6]. Diante da repercussão negativa que a medida teve, a portaria foi revogada. Ela seria, de toda forma, inválida e esse é o ponto a ser frisado. No estado social em que nos encontramos, não é uma discricionariedade da Administração o manejo de verbas nesses termos.

O Brasil, portanto, tem se afastado dos preceitos democráticos políticos por questões relacionadas à desarmonia institucional, a falas próprias de exaltação de um regime ditatorial, e também à falta de cuidado com o combate à pobreza.

A necessidade de pagamento de ajuda emergencial durante a pandemia apenas revela que a questão da pobreza é intensa e grave no país. Seu combate, porém, não pode ser conjuntural.

Assim, pode-se concluir respondendo aos questionamentos acima formulados, nos seguintes termos: 

a) As questões políticas são essenciais e prementes às necessidades econômicas, porque, como destaca Hannah Arendt, o sentido da política é a liberdade [7]. O ser humano não se sacia apenas com a satisfação de suas necessidades físicas, mas também com a possibilidade de interagir com os que o cercam e com a sociedade, para decidir os rumos da vida, inclusive quanto à forma mais justa de pensar o desenvolvimento econômico;

b) Até como forma de garantir a liberdade política, o combate à pobreza e a prestação de serviços sociais mínimos devem ser elementos considerados essenciais não apenas à democracia social, mas também à democracia em sua acepção política, já que o indivíduo dificilmente terá liberdade de voto, subjugado à miséria e ao abuso de poder. A democracia brasileira não é uma democracia que aceita qualquer processo político, pois tem compromisso com os princípios da legitimidade e da normalidade do pleito, como está aliás expresso na CF;

c) O desenvolvimento econômico em uma democracia necessariamente deve ter compromisso com o combate à pobreza, devendo o governo revelar esse compromisso através de esforços orçamentários e atos concretos;

d) Questões sobre a condição econômica mínima de um indivíduo estão relacionadas, assim, à democracia em seu aspecto material/social e também político.

Esse reconhecimento de que o combate à pobreza faz parte do conceito de democracia, mesmo em sentido formal, pode tornar mais eficientes os programas sociais, bem como mais evidente a importância do financiamento para a política de combate à pobreza, além de ajudar no combate à compra e venda do voto eleitoral, pela força educativa que a ideia carrega.

 

Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. 3. ed. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Edipro, 2017.

DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: USP.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira.São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Saint-Just, “Discurs sur les subsistances”, in Oeuvres complètes de Saint-Just, T. I

 


[1] DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: USP, 2005.

[2] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Edipro, 2017. p. 61.

[3] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 175.

[4] Saint-Just, “Discours sur les subsistances”, in Oeuvres complètes de Saint-Just, T. I, p.374-375

[6] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/06/04/internas_economia,861040/governo-retira-r-83-milhoes-do-bolsa-familia-e-destina-a-comunicacao.shtml, acessado dia 2/7/20.

[7] ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. 3. ed. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002. p. 117.