Processo familiar

Uma releitura dos alimentos avoengos da pessoa idosa

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

12 de julho de 2020, 8h00

Quando dados recentes indicam que os casos de violência patrimonial contra a pessoa idosa, aumentaram com o isolamento social, impondo uma nova realidade crítica, a tanto provocar a Recomendação nº 62/CNJ, de 22 de junho/2020, inferem-se importantes juízos de ponderação.

Um deles situa-se nas variáveis do tema alimentar, ante o princípio da proteção integral do idoso defrontar-se a assumir as fidelidades avoengas, como a do cântico poético de Manuel Bandeira, tendo a casa do avô como um templo sinalagmático e impregnado de eternidade. Esse juízo de ponderação, inclusive para as tutelas urgentes, suscita questões jurídicas relevantes. Vejamos:

1. Obrigação alimentar subsidiária
A primeira questão que sobressai começa pela participação dos avós, enquanto idosos, à integração das obrigações alimentares insatisfeitas pelos filhos; a atender, de consequência, a necessidade imediata dos netos, nos atuais tempos de pandemia.

Consabido o inadimplemento, sob o pálio dos impactos econômicos provocados pela coronacrise, os alimentos agora têm sido buscados aos avós idosos, na represa dos seus proventos ou pensões, apesar dos parcos recursos que lhes são mais indispensáveis.

Nessa perspectiva, a problematização avoca três ponderações, de ordem sistêmica:

(i) A primeira delas é atinente às limitações do suplemento. A obrigação alimentar dirigida aos ascendentes de graus imediatos, diante da não exação paterna, já era tratada em Assento de 09 de abril de 1772, § 1; ali previsto que na falta dos pais, esta seria atribuída aos ascendentes paternos e, faltando esses, aos ascendentes maternos [1]. Ao depois, o Código Civil de 1916 estabeleceu que os ascendentes no mesmo grau, responderiam todos em conjunto, como também se extrai do art. 1.699 do atual Código.

O sentido pragmático do provimento complementar dos alimentos, pelos avós, volta-se a uma garantia do mínimo existencial, segundo o padrão de vida primário dos próprios pais. Mais precisamente: O suprimento de alimentos em face dos avós deverá dirigir-se às necessidades básicas do alimentando, não tendo eles de alcançar alimentos superiores à fortuna dos pais.

A jurisprudência, conforme leciona Belmiro Pedro Welter [2], tem orientado que "(…) os filhos têm direito aos alimentos segundo a fortuna dos pais, não sendo lícito cotejar fortunas entre os avós e destes com as dos pais para pedir contra quem for mais bem aquinhoado". [3]

Em ser assim, em melhor expressão, uma de duas: (a) os avós são chamados à falta dos pais ou quando estes incapazes de prover, por si mesmos, por motivos justificáveis, os alimentos aos filhos; (b) a responsabilidade secundária e sucessiva dos avós ocorre por hipossuficiência do alimentante de prover integralmente a obrigação, aditando-se o princípio da complementaridade, sempre no liame de corresponder a quantificação dos alimentos ao que razoável seria satisfazer os alimentos pelos principais obrigados.

De todo modo, o adimplemento parcial ou integral pelos avós subordina-se à premissa de os alimentos se destinarem apenas ao pensionamento das condições essenciais à dignidade do alimentando. Alimentos naturais, alimentos de subsistência, neles entendidos os necessários à sua sobrevivência e não os alimentos civis a assegurar ao beneficiário vida compatível com a sua condição social.

(ii) A segunda ponderação de relevo situa-se no que diz respeito à responsabilidade sucessiva do avô, enquanto ancião, de prover os alimentos integrais. Ou seja, a responsabilidade alimentar avoenga será preferencialmente acessória, ainda assim sem que haja um efetivo comprometimento das condições dele alimentante ancião.

Com a edição do Estatuto do Idoso, a doutrina expressou:

salvo casos especialíssimos, em que a outorga não prejudicará a dignidade humana dos avós, será inconstitucional a concessão dos alimentos sucessivos, mas, tão-somente, os complementares[4].

Essa posição doutrinária tem sua melhor formulação ou adequação finalística.

Diante da ponderação dos interesses em conflito, entre o prestador e o favorecido dos alimentos, ambos tutelados constitucionalmente por suas qualidades etárias, a responsabilidade subsidiária dos avós anciãos deve ser bem avaliada, admitindo-se, inclusive, a não incidência da prestação reclamada, no caso concreto.

(iii) Segue-se inevitável uma terceira ponderação, no tocante ao chamamento dos avós ao processo, a partir da previsão do artigo 1.696 do Código Civil, extensiva a “todos os ascendentes”, “recaindo a obrigação nos mais próximos em graus”.

A regra do artigo 1.698 do CC/2002, disciplina questões de direito material e de direito processual, possuindo natureza híbrida, a exigir interpretação conforme para a efetividade dos direitos. Precisamente, em face da cláusula ali contida, quando expressa: “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos”, importando coobrigação concorrente e não solidária, por todos aqueles sujeitos ao implemento.

Induvidoso se torna poder o autor optar dentre eles, com eleição discricionária dos avós para a lide, deixando, sponte sua, de demandar contra os outros.

Em ser assim, o mecanismo de integração posterior do polo passivo tem natureza jurídica própria, em legitimação provocada no momento processual adequado. Seja admitida como hipótese de intervenção de terceiro atípica, de litisconsórcio facultativo, de litisconsórcio necessário ou de chamamento ao processo, as responsabilidades dos demais são bem delimitadas, em ampliação objetiva da lide (REsp n° 1.715.438).

Aliás, o min. Marco Aurélio Belizze, em decisão monocrática proferida no REsp n° 1.736.596-RS (5/6/2018), pronunciou:

“em se tratando de ação de alimentos que verse sobre obrigação avoenga complementar, figurando a avó paterna no polo passivo, a demandada tem o direito de chamar ao processo os demais avós do alimentando, conforme disposto no art. 1.698 do CC/2002, tendo inclusive a jurisprudência desta Corte Superior já proclamado que há litisconsórcio passivo necessário entre os avós paternos e maternos na ação de alimentos suplementares” (REsp. n° 958.513-SP).

O STJ pontuou, em 1994: “Ação de alimentos proposta por netos contra o avô paterno. Citação determinada dos avós maternos. Inocorrência de litisconsórcio passivo necessário. O credor não está impedido de ajuizar a ação apenas contra um dos coobrigados. Não se propondo a instauração do litisconsórcio facultativo impróprio entre devedores eventuais, sujeita-se ele às consequências de sua omissão” (REsp. nº 50.153-RJ).

Tem-se a premissa de um litisconsórcio facultativo impróprio, entre os devedores eventuais, quando suportaria o autor, o ônus da omissão do não chamamento dos demais, de modo que, em assim não agindo, sujeitar-se-ia a uma prestação incompleta dos alimentos necessários.

Todavia, o direito processual deve ser “a caixa de ressonância do direito material e não seu contrário” [5]. Com acerto, Fernanda Tartuce pondera que “revela-se mais apropriado cogitar que o autor (…) possa aditar a inicial para incluir no polo passivo os devedores subsidiários” [6]. Opera-se, na hipótese, um “redirecionamento da demanda” (Fredie Dider Jr.), certo o direito processual não ser reduzido à pura técnica; servindo, antes, a garantir o direito material da parte.

Bem de ver que a necessidade alimentar não deve ser pautada por quem paga, mas sim por quem recebe, representando para o alimentando maior provisionamento tantos quantos coobrigados houver no polo passivo da demanda” (REsp. nº 658.139-RS).

A par disso, o mesmo artigo 1.698 do CC, em cláusula seguinte, a da parte final, depõe no sentido de “intentada a ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”; desfigurando o litisconsórcio passivo obrigatório e criando um novo instituto processual de chamamento ao processo, com intervenção de terceiros, nos exatos termos do art. 130, inciso III do CPC/2015.

Assim, cuidamos que deve prevalecer a opção do alimentando em demandar contra aquele(a) avô(ó) que melhor apresente condições de suprir as suas necessidades, cumprindo a este(a), no caso, chamar os demais, para a repartição dos encargos, no sentido de serem distribuídas as cotas, na proporção da possibilidade dos outros, por se tratar de obrigação concorrente.

Em bom rigor, trata-se de faculdade do autor alimentando, escolher um ou outro dos avós, em prestígio do princípio da instrumentalidade do processo, de modo a assegurar a efetividade dos alimentos, por quem possa prestá-los, sem maior demora processual.

Não será caso de litisconsórcio necessário, embora possa a cláusula “sendo várias as pessoas obrigadas…”, sugerir a formação de relação processual apta ao desfecho meritório compatível; envolvendo todos pelo princípio ínsito da divisibilidade da obrigação.

Tal opção não obstará, todavia, o chamamento dos demais eventuais devedores, por aquele que for demandado, em alcance da mencionada cláusula.

2. Responsabilidade complementar secundária
Pelas mesmas razões antes referidas, problematiza-se a questão, para se admitir que o avô ancião, dentre os coobrigados do mesmo grau, em extensão do dever alimentar, há de merecer, porém, um tratamento privilegiado/diferenciado.

Ou seja, somente devendo vir ser demandado, quando o atendimento subsidiário dos demais, não se apresentar satisfatório. Denominamos, pois, configurada uma responsabilidade complementar secundária.

O princípio da divisibilidade da obrigação alimentar, acarretando a cada devedor do mesmo grau de parentesco responder pelo pagamento do seu quinhão da dívida, proporcionalmente fixado, segundo as possibilidades financeiras de cada um, poderá no caso, sofrer atenuação ou a dispensa da cota-parte; em prestígio à tutela integral do idoso.

Afinal, o direito é um sentimento palpitante de realidade, devendo considerar a reserva constitucional etária daquele pretenso obrigado, frente aos demais coobrigados, os avós que não sejam anciãos.

Em suma, as disposições dos artigos 8° e 9° da Lei n° 10.741/03 (Estatuto do Idoso), relativizam a norma do art. 1.698 do Código Civil, no que couber, tornando claro que o direito assistencial ao idoso ultrapassa o modelo clássico da responsabilidade alimentar dos avós para assinalar novos paradigmas.

3. Alimentos senescentes
Noutro giro, com a mesma diretiva aqui sublinhada, retenha-se, com atenção, a norma especial do art. 12 da mesma Lei n° 10.741, configuradora da solidariedade da obrigação alimentar ao idoso e que lhe garante a opção entre os prestadores de pensão alimentícia. [7]

A obrigação alimentar, disciplinada no Código Civil, não reconhece a solidariedade dos obrigados por extensão, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros (art. 1.696).

Em se tratando, porém, de alimentando idoso, a obrigação alimentar é solidária, permitindo a lei que este proponha a ação somente contra o parente em melhores condições de prestar-lhes os alimentos; não incidindo a regra do art. 1.698 do Código Civil, permissiva de o demandado poder chamar ao processo os demais coobrigados. A definição incontroversa da natureza solidária da relação obrigacional de alimentos ao idoso, por vínculo parental, tem a conformidade da lei especial.

O STJ no RESp. n° 775.565/SP, sob a relatoria da Min. Nancy Andrighi, realçou que “o Estatuto do Idoso, cumprindo política pública (art. 3°), assegura celeridade no processo, proibindo intervenção de outros eventuais devedores de alimentos”. Assinala-se que o E.I. disciplinou de forma contrária à Lei Civil de 1916 e a de 2002 [8].

Aqui, mais uma vez, rompe-se o normativismo do Código Civil, o de o dever alimentar parental ser subsidiário, divisível e não-solidário, como observado no art. 1.698 do Código Civil, para assinalar-se a solidariedade do débito alimentar, que afinal prepondera, a despeito de uma aparente antinomia do art. 11 do mesmo Estatuto, ao prescrever que os alimentos serão prestados ao idoso na forma da lei civil.

A questão da legitimidade passiva na ação de alimentos em favor do idoso se torna incontroversa, a teor do art. 12 do Estatuto, recaindo a totalidade da obrigação, em qualquer dos coobrigados, em condições de responder pelo encargo, sem prejuízo deste se valer, ao depois, de uma ação regressiva.

Convenha-se pela aplicação do preceito, sub-rogando-se o alimentante, nos créditos do alimentando idoso, junto aos demais devedores, onde a pretensa unidade da prestação alimentícia, reportada aos coobrigados, haverá de ser repartida. Apurando-se, sim, na ação de regresso, a quota-parte na proporção dos recursos de cada um deles.

Esta, a melhor solução, sob a égide de assegurar plena efetividade do direito dos alimentos do idoso.

Do exposto, exorta-se em prol da autoridade parental avoenga idosa, a Pasárgada, de Manoel Bandeira, sob o imaginário poético de irmos embora aos “campos dos persas”. Nela, conduzimo-nos à assertividade das afirmações exatas de tempos e de idades.

Pasárgada será, então, a “casa do avô” de todos.


[1] A propósito, conferir: SIMÃO, José Fernando. Transmissibilidade dos alimentos: a lei, a doutrina e o STJ (parte 2). Consultor Jurídico, 08.05.2016. Web: https://www.conjur.com.br/2016-mai-08/processo-familiar-transmissibilidade-alimentos-lei-doutrina-stj-parte

O consagrado jurista sublinhou: “Candido Mendes já informava no século XIX, ao comentar as Ordenações Filipinas, que, por regra geral do Direito Natural, todo indivíduo deve alimentar-se a si mesmo, e somente recai a obrigação sobre seus pais ou parentes quando ele não pode alimentar-se por não ter bens, nem poder ganhar seu sustento. Pagar alimentos é exceção à regra geral do Direito Natural e Civil” (Assento 5, de 9 de abril de 1772, parágrafos 5º e 6º, confirmado pelo Alvará de 22 de agosto de 1776 (Comentários ao Título XCIX do Livro 4º das Ordenações; pg. 986, edição fac-símile do Senado).

[2] WELTER, Belmiro Pedro. Alimentos no Código Civil, Thompson/IOB, 2004, p. 230.

[3] Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 2ª Turma Cível, Apelação Cível 19980110345078, relator Des. Getúlio Moraes Oliveira, DJ de 25.10.2000, p. 18.

[4] WELTER, Belmiro Pedro. Obra cit., p. 223.

[5] HIDALGO, Daniela. Relação entre Direito Material e Processo. Uma compreensão hermenêutica; Porto Alegre: Liv. do Advogado Ed., 2011, p. 11.

[6] TARTUCE, Fernanda. Processo Civil aplicado ao Direito de Família; São Paulo: Método, 2012, p. 185.

[7] Estatuto do Idoso: Art. 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores.

[8] https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/relatorio-voto-min-nancy-andrighi.pdf

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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