Populismo penal

"Não há evidência empírica de que o aumento de penas reduza crimes"

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12 de julho de 2020, 7h34

Spacca
"Não há evidência empírica de que o aumento abstrato de penas gere o efeito de reduzir crimes", afirma André Pacheco Teixeira Mendes, advogado e professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas. Ainda assim, parlamentares seguem apresentados projetos de lei para elevar penalidades.

Desvendar as razões desse fenômeno é o objetivo do livro Por que o legislador quer aumentar penas?: populismo penal na Câmara dos Deputados. Análise das justificativas das proposições legislativas no período de 2006 a 2014 (Del Rey).

Mendes analisou 191 PLs que propunham aumentar penas apresentados nesses oito anos. Desse total, 48,16% justificaram a medida com o argumento de que ela reduziria a prática de crimes. Já 31,93% das propostas argumentaram que a elevação das punições pune mais adequadamente os autores dos delitos. E 27,22% dos PLs não fizeram referência a finalidades da pena, "o que revela um empobrecimento do debate parlamentar", segundo o professor.

Essas medidas são reflexo de como o populismo penal se manifesta no Legislativo."Populismo penal seria um fenômeno representado por um conjunto de práticas e discursos que traduzem e reivindicam endurecimento penal, com afetação das instituições que compõem o sistema criminal", conceitua Mendes no livro.

O fenômeno vem crescendo no mundo e contribuiu para a eleição a presidente de Jair Bolsonaro, avalia o advogado. Não à toa, o capitão reformado do Exército foi um dos 11 deputados federais a ocupar o segundo lugar do pódio de mais projetos de aumento de pena apresentados de 2006 a 2014, com três PLs (a deputada Keiko Ota [PSB-SP] foi autora de quatro propostas no período). Bolsonaro sugeriu elevar as penalidades dos crimes de roubo, extorsão, associação criminosa, pichação, estupro e estupro de vulnerável.

No entanto, ainda que os discursos mais severos de endurecimento estejam ligados a políticos de direita, o populismo penal é um fenômeno suprapartidário, ressalta André Mendes. Tanto que os projetos analisados em sua pesquisa foram propostas por partidos dos mais diversos espectros. A legenda que mais apresentou propostas de aumento de pena foi o PMDB (22), seguida por PP (20), PSB (19), DEM (18), PT (16), PSDB (13), PDT (12) e PPS (11), além de outros 13 recomendados por comissões da Câmara.

Menos de um quinto dos PLs apresentou dados ou estudos que justificassem as elevações das penalidades. Para o professor, isso confirma o processo de desestatisticalização do populismo penal, a ausência do conhecimento técnico e a supremacia do senso comum.

Um aspecto positivo, na visão de Mendes, é que somente dois dos 191 projetos foram aprovados. Porém, isso não é tão importante para os deputados que os apresentaram. "O político apresenta o projeto de lei apenas como um símbolo, como um ato inerente à sua narrativa para obter eventual vantagem eleitoral", diz o docente.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o populismo penal se manifesta no Legislativo?
André Mendes —
O populismo penal representa um conjunto de práticas e discursos de apoio ao poder punitivo. Pretensamente apoiados em um público geral, como se o povo fosse um agregado social homogêneo — o que não é. Mas o populismo penal sempre recorre à figura narrativa do povo. "O povo quer isso", "o povo quer aquilo", "o povo está cansado", e por aí vai. O conjunto de práticas e discursos que reivindicam esse endurecimento penal acerta as instituições que compõem o sistema de Justiça Criminal. Então tem polícia, órgão de acusação, o legislador penal, o juiz penal e a execução penal. O Legislativo é um desses atores. E as suas práticas populistas se dariam por meio da aprovação de leis penais mais severas, com penas mais altas. Esse endurecimento pode ser considerado populista sempre que o legislador se mostra nada preocupado com a eficácia da alteração legislativa, e mais com a obtenção de vantagens eleitorais, como diz o professor Julian Roberts. Esse é um ponto chave. Essas leis acabam sendo simbólicas, responsivas a um ato de grande repercussão na mídia, e não propriamente versadas a resolver os conflitos sociais.

ConJur — Como o populismo penal se manifesta no Judiciário?
André Mendes —
O foco da minha pesquisa empírica não foi propriamente a manifestação do populismo penal no Judiciário, e sim no Legislativo. Mas ele existe também. Um indicador interessante do populismo penal no Judiciário é a adesão dos juízes ao encarceramento em massa. O Brasil é o terceiro país em número absoluto de pessoas presas, só perde para Estados Unidos e China. Além disso, está entre os 30 primeiros em taxa de aprisionamento, número de pessoas presas por 100 mil habitantes. Então o Brasil pode ser incluído no rol de países que têm encarceramento em massa. E as prisões do país ainda têm 160% de ocupação, ou seja, superlotação.

Outro indicador do populismo penal no Judiciário é uma certa desídia dos juízes com relação à garantia de direitos mínimos na prisão. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre alguns temas relevantes sobre direitos nos presídios. Um deles é a obrigatoriedade de o Executivo promover determinadas obras na prisão para garantir direitos mínimos dos presos. O STF reconheceu também um estado de coisas inconstitucional em relação ao sistema prisional brasileiro. O Judiciário também está envolto nesta chamada cultura punitivista, que caracteriza o nosso tempo. Então, é plenamente factível afirmar que há também populismo penal no Judiciário.

ConJur — Em 2018, Jair Bolsonaro e diversos governadores foram eleitos com um discurso de endurecer o tratamento conferido a supostos criminosos. O populismo penal tem crescido nos últimos tempos?
André Mendes —
Sim. Aqui há um recorte histórico importante. A expressão "populismo penal" remonta à literatura de 1995. Ou seja, final do século XX e início do século XXI. A literatura criminológica relativa ao populismo penal aponta um incremento do populismo penal nos fins do século XX e início do XXI. Então, a gente viveria hoje, pelo menos nas democracias ocidentais contemporâneas, uma cultura penal que é punitivista, como aponta o professor David Garland. Ele aponta alguns motivos. Tem um pouco da falência do sistema reabilitador da pena, que ganhou tanta força no pós-guerra, e o ressurgimento da pena como justo merecimento. Tem a alteração do tom da política criminal, que passou a ser mais emotivo. Isso também tem a ver com a revolução na forma como a gente se comunica, com a revolução nas comunicações — primeiro com a televisão, depois com as redes sociais. Há centralidade da vítima no discurso penal, o que gera uma falsa oposição entre direitos das vítimas e direitos fundamentais das pessoas que praticam os crimes. E há a prevalência de um discurso de proteção da sociedade. É uma série de indicadores dessa cultura do controle do crime, que explicam que o populismo penal vem aumentando e se consolidando no mundo.

O presidente [Jair Bolsonaro] é um representante do populismo penal pelos seus discursos e narrativas. É um entusiasta de políticas de tolerância zero, de endurecimento penal. Mas é importante notar que não foi esse o único ingrediente que contribuiu para a eleição de Jair Bolsonaro.

ConJur — Quais são os efeitos sociais desse aumento do populismo penal nos últimos tempos?
André Mendes —
Se a gente parte do conceito de que o fenômeno do populismo penal está associado às vantagens eleitorais do legislador ou à busca por apoio político dos atores e instituições penais, o que fica deixado de lado? A pretensa eficácia dessas alterações na ferramenta penal. Ou seja, investigações mais firmes, penas mais altas, sentenças mais duras, execução penal mais dura, de fato, não são necessariamente eficazes para o aperfeiçoamento do sistema de Justiça, a redução de taxas criminais, a melhora na percepção da criminalidade por parte da sociedade. Esse é o ponto-chave. Então, o populismo penal não é algo favorável a instituições mais sólidas, a uma sociedade menos violenta. Esta correlação não existe.

ConJur — O senhor aponta no livro que 48,16% dos projetos analisados indicam o efeito dissuasório da pena. Penas mais altas ajudam a reduzir crimes?
André Mendes —
Não há evidência empírica de que o aumento abstrato de penas gere o efeito de reduzir crimes. Na realidade brasileira, há algumas evidências de que é o contrário, inclusive. Pelo período que eu estudei no livro [2006 a 2014], mesmo havendo aumento de encarceramento e eventual aumento de penas de alguns crimes, não houve redução das taxas criminais no Brasil. Se pegarmos o último dado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre taxa de homicídio no Brasil, de 2017, e fizer a linha histórica de 1980 até 2017, vamos ver um aumento no índice. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), que representou um dos mais severos endurecimentos penais da história da legislação brasileira, os sistemáticos aumentos das penas de tráfico de drogas, o aumento das penas de crimes sexuais, todos esses aumentos de pena não ensejaram redução na taxa desses delitos — ainda que, paralelamente, tenha havido aumento do encarceramento por esses crimes. Então, é importante notar esses dados empírico e lembrar que a responsabilização concreta de atos tem mais chances de reduzir e gerar esse efeito de redução de crimes do que aumentos abstratos da pena na lei penal.

ConJur — Quase dois terços dos projetos analisados não apresentaram dados relacionados à norma que se pretende alterar. O que isso revela da elaboração e alteração de leis penais no Brasil? E como melhorar esse cenário?
André Mendes —
Pela análise que eu fiz, e em outras semelhantes, o legislador, em regra, é muito tímido na justificativa dos projetos. Enquanto um juiz escreve sentenças de laudas e laudas, projetos que pretendem alterar a lei penal, muitas vezes, têm meia lauda, uma lauda, para justificar a alteração. E, na maioria dos casos, esses projetos vêm desacompanhados, nas suas justificativas, de dados da realidade que possam confirmar ou apontar a necessidade da alteração daquela lei penal. Isso está associado a uma série de variáveis. Vou citar apenas duas.

A primeira é que, muitas vezes, o parlamentar está preocupado apenas com o efeito simbólico que ele vai gerar apresentando o projeto de lei de endurecimento penal. Então ele nem gasta muito tempo com a sua justificativa. Ao contrário do Judiciário, a Constituição e os regimentos internos do Senado e da Câmara dos Deputados exigem uma justificativa sem mais pormenores, que pode ser inclusive feita oralmente em plenário. Penso que isso deveria ser diferente.

O outro ponto sobre esse cenário de falta de dados nas justificativas é desestatisticalização, um dos cinco atributos do populismo penal, segundo o criminólogo John Pratt. O discurso do populismo penal aposta em um certo abismo entre as expectativas penais que as pessoas têm e como essas políticas e práticas são feitas de fato. Então, o fato de um projeto de lei vir desacompanhado de estatísticas está associado ao próprio fenômeno do populismo penal, que aposta no senso comum, e não em dados que comprovem a necessidade de uma tomada de decisão legislativa.

Muitas vezes, nos projetos de lei, nas justificativas, encontra-se o parlamentar dizendo que tem que alterar a pena sem dizer por quê, sem fazer um teste de proporcionalidade, sem elencar nenhum motivo pelo qual aquele aumento deveria ser realizado. Isso tem a ver com o simbolismo do populismo penal com a falta de exigência de justificativas mais robustas nos projetos e com a desestatisticalização, que caracteriza as práticas e discursos de políticas penais populistas.

ConJur — É viável estabelecer alguns tipos de requisitos para que esses projetos sejam mais fundamentados, por exemplo, em dados ou em teorias? Ou isso, de certa forma, já deveria já ser exercido pelo Congresso, pelas comissões especializadas no assunto?
André Mendes —
Já existe uma estrutura consultiva nas casas legislativas que poderia orientar os parlamentares, além da sua própria estrutura de gabinete, que sabemos que é grande, poderia orientar os parlamentares a apresentarem projetos mais robustos. Fazendo um paralelo, é muito difícil de se imaginar que um projeto de lei que pretenda alterar uma alíquota de tributo ou o salário mínimo venha desacompanhado de dados e estudos que recomendem a aquela alteração. Então, em primeiro lugar, as casas legislativas deveriam recorrer com mais freqüência a dados e estudos na elaboração dos projetos. Ou encomendar estudos para lastrear os projetos. O segundo ponto diz respeito a uma exigência que poderia vir dos próprios textos normativos. Ou seja, poderia ter uma alteração regimental ou até uma lei de responsabilidade legislativa que exigisse que projetos de lei penal deveriam estar lastreados e subsidiados em dados, estatísticas e estudos.

ConJur — Quase um quinto dos projetos analisados fundamentou-se em episódios repercutidos na mídia. O senhor acredita que a imprensa ajuda a estimular o populismo penal?
André Mendes —
Em certa medida, sim. Há muita literatura sobre a relação entre mídia e criminalidade. A mídia pode ter o efeito de moldar, modelar, solidificar, dirigir o sentimento e a opinião pública sobre crime e punição, repetindo muitas vezes uma espécie de “voz autêntica das pessoas”. E hoje não há mais só a imprensa formal. As redes sociais permitem que pessoas comuns produzam notícias e informações, impactando a modelagem da percepção social que as pessoas têm em relação a crime, criminoso e criminalidade. O criminólogo neozelandês John Pratt aponta quatro fenômenos que propiciaram à mídia esse papel de fortalecer o populismo penal. O primeiro é a mudança nas notícias. A imprensa não retrata de forma fiel o número de crimes e criminosos em suas reportagens em relação aos que realmente existem. Essa seleção já produz uma certa distorção na percepção que as pessoas têm do crime, criminoso e criminalidade.

Outro ponto de influência da mídia é a glamourização das transmissões. Repare: no ensejo do movimento das manifestações do black lives matter (vidas negras importam), nos Estados Unidos, com repercussão aqui também no Brasil, um dos canais norte-americanos retirou um programa policial do ar (Cops), porque reconhecidamente é um programa que molda a figura do policial e a figura do criminoso, não retratando de forma fiel aquilo que eventualmente as polícias fazem ou como realmente o crime aconteceu. Essa glamourização da transmissão ajuda a modelar a percepção que as pessoas têm do crime e da criminalidade.

A outra forma de impacto da mídia são as novas tecnologias de informação e a democratização do seu acesso. A imprensa foi ampliada para plataformas das redes sociais. Isso pode ser bom por um lado, mas pode ter efeitos danosos também, pela maneira como as notícias são selecionadas e impulsionadas. E o outro aspecto da relação da mídia em relação a estimular o populismo penal é a globalização e a sloganização de discursos punitivos. Esse fenômeno da sloganização é muito presente nos Estados Unidos, que é o maior modelador da penalidade na sociedade contemporânea. Lá tem a “tolerância zero”, a lei do three strikes and you are out (três golpes e você está fora – após três condenações, o sujeito é automaticamente condenado à prisão perpétua).

ConJur — 19,37% dos PLs analisados citam o “enfrentamento da impunidade” no Brasil. Há impunidade no país? Se sim, o meio de combate-la é aumentado penas?
André Mendes —
Sempre que se fala nesse assunto, é importante perguntar: impunidade para quem? E para quais crimes? Todos os sistemas penais do mundo operam de acordo com uma categoria que é conhecida como cifra oculta da criminalidade. Ou seja, há uma enorme quantidade de fatos criminais que não chegam à ordem formal. Apenas uma parcela pequena dos crimes que acontecem chega ao conhecimento das autoridades e é capaz de deflagrar processos penais e de eventualmente chegar a condenações e execuções da pena e reparações inerentes ao processo.

Então, quando o parlamentar, em sua justificativa, fala que a lei penal tem que ser alterada para enfrentar a impunidade, é mais como um símbolo, como uma narrativa, do que propriamente como algo concreto. Por quê? O Direito Penal incide na realidade de acordo com a realização das agências de criminalização primária e secundária. As agências de criminalização primária, são, basicamente o legislador, que cria e altera crimes e penas. E a criminalização secundária são as instituições de controle agindo nos casos concretos. Tudo isso é fruto de política, de decisão, de escolha, da maneira pela qual as instituições funcionam. O Estado brasileiro, por exemplo, gasta muito dinheiro e energia com o combate ao tráfico de drogas. Isso é desejável? Aí dá outra discussão sobre o marco regulatório das drogas. Uma discussão importante, pois a proibição gera muita violência. Ao mesmo tempo, outros países têm feito escolhas penais diferentes sobre o enfrentamento das drogas. E outros crimes têm menos atenção dos órgãos de controle.

Alguns crimes econômicos não estiveram sempre no foco de atenção das instituições de controle. Isso é uma realidade que vem mudando. Mas são escolhas das instituições de controle. Como isso pode ser alterado? Primeiro fortalecendo as instituições. Tendo instituições de controle com autonomia, instrumentalizadas para atuar. A gente também tem que investir na formação dos quadros que integram as instituições, mas também na cultura geral das pessoas. É aquilo: não existe político corrupto com sociedade honesta. Então, é trabalhar na educação das pessoas, na conscientização das pessoas a respeito das boas e más práticas cidadãs e éticas que levam muitas vezes à pequena corrupção, à grande corrupção. Isso é um ponto de enfrentamento importante. E as práticas diárias. Eventualmente, cada pessoa se corrompe na medida do alcance do seu braço. Uma pessoa pratica um pequeno ato de corrupção na rua, a outra pratica um pequeno ato de corrupção em uma empresa, uma terceira pratica um pequeno ato de corrupção no setor público. Essa escala vai aumentando até chegar às práticas e cifras que a gente vê muitas vezes retratadas nos grandes meios de comunicação.

ConJur — Jair Bolsonaro é um dos expoentes do populismo penal. O populismo penal é de direita?
André Mendes —
Essa é uma pergunta muito delicada. É objeto de muitas controvérsias na literatura criminológica nessa área. Autores como os que eu já citei, como Julian Roberts, John Pratt, reconhecem, também por meio de evidências empíricas nos países de língua inglesa, que partidos de centro, de centro-esquerda, mesmo partidos de esquerda aderem às medidas populistas punitivas. O populismo penal tem, em alguns casos, uma característica de ser suprapartidário. Na minha pesquisa isso apareceu em alguma medida, dado que é possível identificar que todos os partidos apresentam projetos de lei com essas características de populismo penal. No caso particular do populismo penal de esquerda, há uma discussão em relação à criminalização voltada às políticas identitárias. Essa é uma discussão muito presente. Alguns atores de esquerda divergem sobre o quão desejável é o Direito Penal criminalizando condutas por conta de políticas identitárias, de gênero, raça, etnia. Não é possível afirmar categoricamente que o populismo penal seja de direita, embora os discursos mais severos relativos ao emprego da ferramenta penal, à flexibilização de direitos fundamentais, estejam associadas a algumas lideranças de direita.

ConJur — Na sua pesquisa, apenas dois dos 191 projetos de lei analisados foram aprovados. Por que a maioria deles não foi para frente?
André Mendes —
Eu não testei empiricamente o motivo pelo qual os projetos não são aprovados. De forma que eu tenho duas hipóteses. A primeira é que o político não precisa aprovar o projeto de lei para obter o efeito que ele deseja, de ter apoio popular, de prestar contas ao seu eleitor, de apresentar a sua bandeira, seja ela penal, de luta contra a corrupção, de defesa dos direitos dos animais, de luta contra a redução do homicídio. O político apresenta o projeto de lei apenas como um símbolo, como um ato inerente à sua narrativa para obter eventual vantagem eleitoral. A segunda hipótese é que o próprio processo legislativo tem arranjos e é constituído por determinadas circunstâncias que brecam o avanço de determinados projetos de lei. Para aprovar um projeto de lei nas casas legislativas federais, há uma série de questões de agenda dos parlamentares, de discussão, de coordenação e arranjos políticos que permitem que determinados projetos frutifiquem. Agora, nós já vivemos um cenário de inflação legislativa em matéria penal. Imagine só como seria o nosso quadro normativo se todos esses projetos de lei apresentados fossem aprovados. Aumentariam a pena a toda hora. E com que objetivo? Com base em que dado da realidade que venha a lastrear a necessidade dessa alteração? Então, seria um quadro ainda mais caótico do que a gente já tem em matéria de inflação legislativa penal.

ConJur — Qual foi o impacto da operação “lava jato” para o populismo penal?
André Mendes —
A operação “lava jato” tem uma série de particularidades e complexidades. Eu queria chamar atenção aqui para alguns detalhes. Primeiro: a “lava jato” não se fez possível por causa do endurecimento da lei penal. É lógico que houve duas alterações importantes que contribuíram para a “lava jato”. Uma foi a edição da Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), que possibilitou uma estruturação mais específica da colaboração premiada. Outra foi um ajuste legislativo na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998). Mas há outras variáveis que dizem respeito à escala que a operação “lava jato” tomou. A ampliação dos instrumentos de cooperação jurídica internacional, o emprego de novas tecnologias na investigação penal, a própria postura dos atores institucionais envolvidos, membros do Ministério Público, também a figura do juiz Sergio Moro e o apoio da mídia também contribuíram para que a “lava jato” tivesse essa representatividade.

A “lava jato” passou por aquilo que eu chamo de “sobrerrepresentação na mídia”. A Polícia Federal faz mais de 300 operações por ano. No entanto, as pessoas em geral e a própria mídia só se referem à “lava jato”. Ou sabem o nome do juiz da “lava jato”, do procurador da “lava jato”. Mas e das outras operações? Claro que a “lava jato” tem uma série de particularidades que levaram a conduzir um pouco essa sobrerrepresentação, como os políticos envolvidos. É claro que ela contribuiu para descortinar uma série de práticas de malfeitos que caracterizam a história brasileira.

Se nós considerarmos que o populismo penal se manifesta na investigação penal, na lei penal, na sentença penal e na execução penal, fica difícil dizer que a “lava jato” foi populista. Afinal, a investigação penal se deu dentro daquilo que se esperava com os novos mecanismos, como a colaboração premiada, a cooperação jurídica internacional, as novas tecnologias. A lei penal não teve mudança em relação à pena dos delitos. As sentenças do juiz Sergio Moro tiveram uma característica não propriamente pelo tamanho das penas, mas pela aplicação de regimes diferenciados de pena, por conta da colaboração premiada. Portanto, fica um pouco complicado dizer que foi populista. E as penas impostas aos condenados se deram dentro de algum grau de normalidade em relação à execução penal no Brasil, que é super difícil, dado o quadro de superpopulação prisional.

Talvez a “lava jato” tenha tido alguma característica de populismo penal em consequências como a apresentação do pacote de 10 medidas contra a corrupção, com o projeto de lei “anticrime” do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Temos nesses projetos algumas propostas com características de populismo penal.

ConJur — Em geral, operadores do Direito têm consciência do populismo penal? Ou reproduzem-no automaticamente em sua atuação?
André Mendes —
Os operadores do Direito, assim como o legislador, que é eventualmente populista punitivo, está imerso na mesma cultura punitivista na qual todos nós estamos. Há aqui uma dimensão de falta de consciência de que vivemos nessa cultura, porque isso não é algo dado, é algo que tem que ser refletido, pensado, problematizado, diagnosticado. Muitos operadores do Direito têm uma postura que é populista punitiva sem necessariamente sabê-lo. Outros concordam com essas práticas e discursos e os reivindicam. Como o populismo penal não é uma categoria propriamente jurídica, não está propriamente presente na formação desses quadros, quer na formação jurídica do ensino superior, quer depois na formação e aperfeiçoamento desses profissionais. E deveria sê-lo, porque todos nós devemos estar em constante estudo e qualificação. Então, muitas vezes, esses padrões e essa cultura do populismo penal são reproduzidos de forma irrefletida e inconsciente.

É importante destacar que esse é um tema que deve ser discutido, problematizado. A sociedade civil, os diversos atores que podem se relacionar com as instituições de controle, os que compõem a instituição da Justiça Criminal, devem debater, produzir dados, questionar, relacionar-se com políticos. São medidas que contribuem para a tomada de consciência desse fenômeno, que, ao fim ao cabo, não é saudável para as democracias contemporâneas. Não é saudável que instituições de controle atuem sem considerar os dados da realidade.

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