Embargos culturais

Gilberto Freyre e as ambiguidades de Casa Grande & Senzala

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

12 de julho de 2020, 8h00

Spacca
É preciso estudar os autores brasileiros. Em uma carta endereçada a Oliveira Lima, redigida em Nova Iorque e datada de 27 de outubro de 1921, o então estudante Gilberto Freyre relata que entrevistaria uma senhora norte-americana de 80 anos que viveu no Brasil na década de 1870. Colheria reminiscências desse tempo, que então pesquisava. Chamamos hoje de história oral.

Chama a atenção em Gilberto Freyre a amplitude metodológica. Tem-se a impressão que leu tudo, que tudo reteve, que a todos entrevistou. Penso que é o criador da anunciologia, o estudo dos anúncios de jornal. De Casa Grande & Senzala (CG & S) foi tirada uma primeira edição, no Rio de Janeiro, em 1933. Nesse livro há história, sociologia, antropologia cultural, gastronomia, direito, sociolinguística, curiosidades, medicina e uma boa dose de intimidades da vida privada colonial. E há base para muita polêmica.

Gilberto Freyre é o dulcificador da condição escrava para uns. É o redentor de nossa autoestima para outros. Para esses últimos Freyre constatou os benefícios da miscigenação. É o fundador de uma identidade nacional. Para aqueles outros, Freyre leu o mundo a partir da Casa Grande, de onde se originava, filho que era de um magistrado e representante da elite. Seria o pai fundador de generalizações apressadas que mistificam nossa realidade, a exemplo dos conceitos de homem cordial (em Sérgio Buarque de Holanda), de patrimonialismo (em Raymundo Faoro) e de jeitinho brasileiro (em Roberto DaMatta). Jessé Souza é o seu mais expressivo crítico. A segunda parte de “A Modernização Seletiva” e “A Elite do Atraso” são livros de leitura também obrigatória nesse debate.

CG & S é um livro dividido em cinco partes: uma introdução (com as características gerais da colonização portuguesa), um capítulo sobre os índios (geralmente esquecido), um capítulo sobre o colonizador português (laudatório, de glorificação) e dois capítulos sobre o escravo africano. Esses dois últimos são marcados por uma obsessão com temas sexuais; é a maior parte das considerações priápricas do livro.

O autor tem como premissa as diferenças entre raça e cultura, o que revela a influência de Franz Boas, com quem estudou nos Estados Unidos. O leitor de Freyre deve levar em conta que há um racismo dito “científico”, que predominou até 1920. No Brasil, Nina Rodrigues, professor na Escola de Medicina na Bahia, foi seu maior representante. A partir de 1920 o paradigma transfere-se para um racismo cultural, de matiz norte-americano. Talcott Parsons, a partir de 1930, com a teoria da modernização, avança essa ideia, que santifica o cidadão norte-americano, com base em interpretações de Max Weber. Freyre transita entre os dois modelos, o que pode indicar indefinição metodológica que marca as generalizações desse importante livro. Freyre trabalha com dicotomias, opondo católico e herege, jesuíta e fazendeiro, bandeirante e senhor de engenho, paulista e emboaba, pernambucano e mascate, bacharel e analfabeto, senhor e escravo.

Comecemos com as passagens de sociolinguística. A experiência glotológica brasileira é marcada por uma dualidade: a língua do senhor dominador e a língua do dominado (do índio e depois do escravo). Essa quebra na expressão resulta em marcantes distinções entre línguas escrita e falada. Freyre aponta processos de reduplicação de sílabas tônicas, isto é, “a linguagem infantil brasileira (…) tem um sabor quase africano: cacá, pipi, bumbum, tentem, neném, tatá, papá, papato, lili, mimi (…)”. Para o autor, a origem estaria na ama negra, que “(…) fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes a espinha, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino as sílabas moles”. Quanto a colocação dos pronomes, segue Freyre, a ênclise é dos senhores (faça-me o favor), a próclise é dos dominados (me faça um favor).

CG & S, parece-me, dulcifica a escravidão. Freyre estudou no sul dos Estados Unidos no fim da década de 1910. Comparou as relações sociais que viu lá com as memórias que carregava do Pernambuco. Conjecturou uma “doçura no tratamento dos escravos”. Em outro ponto afirmou ter a honestidade de reconhecer “que só a colonização latifundiária e aristocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu (…) só a casa grande e a senzala (…) o senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo”. Para Freyre, “uma vez no Brasil, os negros tornaram-se, em certo sentido, verdadeiros donos da terra: dominaram a cozinha (…) conservaram em grande parte a sua dieta”. Enfatizou a doçura nas relações entre senhores e escravos domésticos, que reputou talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América”.

CG & S, por outro lado, dá conta de violência e de sadismo, contra índios e escravos. “Sabinas pretas” aliciadas e violentadas. Freyre fala de “negras tantas vezes entregues virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres de sífilis das cidades”. Menciona violência doméstica, em forma de prostituição, que entende como “sempre menos higiênica do que a dos bordeis”. Ao afirmar que “a negra ou mulata [era] a antecipação da vida erótica e pelo desbragamento sexual do rapaz brasileiro” não se pode supor – – creio – – consentimento mútuo. Mais pesado ainda: “o que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço”.

Freyre noticia negros enterrados nas praias, em sepulturas rasas, “onde os cachorros quase sem esforço achavam o que roer e os urubus o que pinicar”. É de assustar: “às vezes negrinhas de dez, doze anos, já estavam na rua se oferecendo a marinheiros enormes, gangazás ruivos que desembarcavam dos veleiros ingleses e franceses (…)”. O menino rico tinha um moleque negro como saco-de-pancadas, em cima de quem cavalgava. A sinhá-moça “mandava arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira do doce e boiando em sangue ainda fresco”.

Dependendo do modo que lido, e por quem lido, e na época em que lido, CG & S pode aviar também generalizações e absurdos. Assim, segundo Freyre, “a índia e negra-mina a princípio, depois a mulata (…) tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil”. Índias que, “por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de pernas abertas, aos caraíbas gulosos de mulher”. Em CG & S tem-se o mundo visto da Casa Grande: mulheres índias que não se deram “tão boas escravas domésticas quanto as africanas, que mais tarde as substituiriam vantajosamente com cozinheiras e amas de menino do mesmo modo que os negros aos índios como trabalhadores de campo”. Para o autor, eram selvagens que sentiam “necessidade de práticas saturnais ou orgiásticas”. Está escrito.

Para o autor de CG & S os pajés eram provavelmente “(…) homens efeminados ou invertidos que a maior parte dos indígenas da América antes respeitavam do que temiam do que desprezavam ou abominavam”. E continua Gilberto Freyre: “o homem invertido, sabe-se que é às vezes um indivíduo à procura de sensações e atividades criadoras e dolorosas que lhe substituam as impossíveis de feminilidade e maternidade: o masoquismo, a flagelação, a arte da escultura, da pintura, da caligrafia (…)”. Tem-se uma generalização carregada de preconceitos, que não resiste a um cotejo com paradigmas científicos.

CG & S é também uma arca de curiosidades. Freyre explica a expressão “vá queixar-se ao bispo!”, apontando para o papel da Igreja e de seus representantes, ainda que subordinados aos senhores de escravo. Anéis de rubi, de uso dos bacharéis, seriam reminiscência de práticas de judeus sefarditas. Moças deixavam espigas de milho debaixo dos travesseiros: o pretendente escolhido seria aquele que em sonhos as viesse buscar. Barbeiros pediam que clientes colocassem caroços de macaíba na boca, as bochechas ficavam protuberantes e o barbear era mais seguro. Dejetos eram condicionados em barris e carregados por escravos; com a queda dos excrementos os transportadores ficavam com pingos e marcas, parecendo-se com os tigres. De onde o nome para esses escravos: tigres.

Em CG & S aprendemos sobre o beiju, a tapioca, a paçoca, a pipoca, o cuscuz, o feijão, a banana, o quiabo, o vatapá, que se usavam cinzas ao invés do sal. Aprendemos que “moqueca” significa “embrulho”, e que originalmente designava um embrulho de peixe em folhas, geralmente em folhas de bananeira.

Gilberto Freyre elogia Pontes de Miranda. Tem birra de Ruy Barbosa, a quem critica pela célebre ordem de queima dos arquivos da escravidão. Em 1985, no 2º Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado no Rio de Janeiro, em uma de suas últimas aparições públicas, Freyre implicava com Ruy, obcecado com sinônimos e com a forma, desinteressado do conteúdo. Freyre criticava Ruy, para quem as soluções eram sempre jurídicas. Para Gilberto Freyre as soluções são sociais e econômicas.

CG & S é um livro ambíguo. Afirma uma identidade nacional singular, predicada na mestiçagem, ao mesmo tempo em que enfatiza uma continuidade da experiência portuguesa. Essa última generalização é perigosa, justamente porque pode ser usada como explicação superficial para problemas que são sérios, muito sérios. Tem-se a impressão de que CG & S dulcifica a escravidão, ao que mesmo tempo em que há muita informação que substancializa forte denúncia, que poderia ser usada em um imaginário tempo futuro. Que chegou. De fato. É preciso estudar os autores brasileiros.

 

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