Opinião

Covid-19 faz renascer discussão sobre equilíbrio do contrato administrativo

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12 de julho de 2020, 7h13

Inúmeros são os impactos da pandemia causada pelo coronavírus na economia, inclusive aumento exponencial do dólar. Volta-se à discussão: até que ponto o aumento do dólar poderia ensejar o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo?

Em alguns casos, o valor do dólar atinge diretamente a execução da contraprestação pelo administrado. É o caso, por exemplo, do fornecimento de produtos para a saúde, que são importados para o Brasil. Até que medida a alta do dólar possibilitaria a revisão ou a recomposição do preço do contrato administrativo?

O restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro em contrato administrativo é, formalmente, previsto no artigo 65, II, "d", da Lei 8.666/93. Segundo a doutrina [1], o fato deve ser:

"1 — Imprevisível quanto à sua ocorrência ou quanto às suas consequências;

2 — Estranho à vontade das partes;

3 — Inevitável;

4 — Causa de desequilíbrio muito grande no contrato".

Porém, na prática, há dificuldade em aplicar o instituto, com base nos entendimentos mais recentes do Tribunal de Contas da União e do Superior Tribunal de Justiça [2].

A desproporcionalidade superveniente em contrato administrativo, por conta de alteração abrupta do dólar, já foi analisada algumas vezes pelo TCU. O tribunal tende a ser rígido. Isto é:

I) Em geral, a variação da taxa cambial, como fator único, não seria considerada apta a ensejar o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo; 

II) Seria necessário [3]:

a) Ser fato com consequências incalculáveis (não passíveis de previsão pelo gestor quando da vinculação contratual);

b) Ocasionar rompimento severo na equação econômico-financeira, com onerosidade excessiva a uma das partes. A variação cambial deve fugir à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante; e

c) A elevação nos custos deve retardar ou impedir a execução do contrato.

III) Em regime de câmbio flutuante, seria esperado ocorrer variações cambiais. As alterações que refletirem tendência da economia não são consideradas suficientes para a repactuação do contrato.

Nesse sentido, em 2019 o TCU rejeitou o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, porque os fatos demonstravam que "a variação do dólar não foi imprevisível, mas, sim, ordinária, seguindo a tendência do que estava ocorrendo nas semanas anteriores à assinatura do contrato e ao pagamento dos serviços" [4].

No âmbito do STJ, a grande maioria das decisões sobre o tema não analisa o mérito, sob o fundamento de haver a necessidade de revistar fatos e cláusulas contratuais, esbarrando nas Súmulas 5 e 7.

Em 2018 [5], o STJ entendeu pelo reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, considerando as seguintes particularidades determinantes:

I) Aquisição do produto no exterior; e

II) Clara e significativa desvalorização do real frente ao dólar.

Na ocasião, a desvalorização do real frente ao dólar ocorreu em janeiro de 1999, por conta de alteração implementada pelo Banco Central na política interna de câmbio (houve a mudança do sistema de banda para o de livre flutuação do dólar).

Era clara e significativa a diferença apurada entre a taxa de câmbio projetada na proposta comercial (dólar a R$ 1,1929) e a efetivamente utilizada na operação de câmbio (dólar a R$ 2,1070).

Ainda assim, a decisão do STJ ocorreu por maioria. Houve o voto vencido do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que entendeu que a variação na taxa cambial integra o risco do negócio.

Especificamente no caso do coronavírus, a pandemia poderia ser considerada imprevisível (ocorrência ou efeitos)? Poderia se esperar ou prever efeitos com tanta magnitude? Definitivamente a pandemia é evento estranho à vontade das partes. Igualmente, é inevitável. Ocorreu em todo o globo, sem exceções, ainda que em magnitudes diferentes entre regiões e países. Agora, seria causa de grande desequilíbrio contratual?

Seria possível sustentar que houve alteração abrupta do valor dólar na pandemia causada pelo coronavírus? Em superficial e teórica análise, verifica-se que houve significativa diferença entre o valor do dólar em 3/1/20 (R$ 4,05) e o valor do dólar em 3/7/20 (R$ 5,33) [6]. As diferenças entre as taxas de câmbio seriam similares às do mencionado caso do STJ. O fato seria suficiente para autorizar o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, se considerarmos que os demais requisitos estariam presentes?

A princípio e considerando a jurisprudência, é questionável, com base única e exclusivamente, no aumento do valor do dólar, se utilizar do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, previsto no artigo 65, II, "d", da Lei 8.666/93.

Impõe-se analisar questões complementares, como: I) a existência de outro fator causador do desequilíbrio contratual; II) o valor efetivo da desproporcionalidade (se impede a execução do contrato); III) a época da licitação e da assinatura do contrato (em tese, relações jurídicas anteriores à pandemia possuiriam maiores chances de aplicação do instituto versus relações jurídicas ocorridas no início ou durante a pandemia); e IV) as cláusulas contratuais (é comum haver previsão específica que regule as hipóteses e a maneira do restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro).

Há, ainda, outro desafio, o de comprovar o desequilíbrio contratual. Em alguns casos, seria necessário disponibilizar documentos sensíveis às empresas, como notas fiscais de aquisição de insumos e guias de importação, bem como laudos e estudos comparativos que analisem o custo global, comprovando inviabilidade da manutenção do contrato e risco de danos irreparáveis.

Um fato é certo: a discussão renasceu. Qual será o novo posicionamento do TCU e STJ frente aos casos de desequilíbrio contratual ocasionados pela pandemia do coronavírus? Resta aguardar.

 


[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 331.

[2] Este artigo considera apenas o posicionamento mais recente do TCU e do STJ.

[3] Conforme entendimento esposado no Acórdão n° 1431/17, Plenário, Rel. Vital do Rêgo, j. em 5/7/17.

[4] TCU, Acórdão n° 4125/19, 1ª Câmara, Rel. Bruno Dantas, j. em 4/6/19.

[5] STJ, REsp n° 1.433.434, 1ª T., Rel. Min. Sérgio Kukina, j. 20/2/18.

[6] Valores conforme cotações e boletins do Banco Central do Brasil. Disponível em https://www4.bcb.gov.br/pec/taxas/port/ptaxnpesq.asp?frame=1. Acesso em 3/7/20.

Autores

  • é mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e especialista em Direito Sanitário e Direito Administrativo, atuando nas áreas desde 2014.

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